Quando a vida nos machuca

Quando a vida nos machuca

Quando o coração se me amargou

e as entranhas se me comoveram,

eu estava embrutecido e ignorante;

era como um irracional à tua presença.

Todavia, estou sempre contigo,

Quando a vida nos machuca

Philip Yancey

 

tu me seguras pela minha mão direita.

Tu me guias com o teu conselho

e depois me recebes na glória.

Quem mais tenho eu no céu?

Não outro em quem eu me compraza na terra.

Ainda que a minha carne e o meu coração

desfaleçam,

Deus é a fortaleza do meu coração

e a minha herança para sempre.

 

 

Um convite à esperança

Há três décadas escrevendo, já conversei com muitas pessoas vítimas da dor. Algumas delas, como um piloto adolescente cujo avião ficou sem combustível e caiu em um milharal, eram diretamente responsáveis por seu próprio sofrimento. Outras, como uma jovem que morreu de leucemia, seis meses após seu casamento, foram aparentemente escolhidas de forma aleatória, sem nenhum aviso prévio. Entretanto, todas, sem exceção, tinham profundas e inquietantes dúvidas sobre Deus por causa da dor pela qual passaram.

A dor coloca à prova nossas convicções mais elementares sobre Deus. Já ouvi, repetidas vezes, cinco perguntas ensejadas pela dor: Deus é suficientemente competente? Ele é, de fato, tão poderoso? Ele é justo? Por quê Ele parece não se importar com a dor? Onde está Deus quando mais preciso dele?

Conheço bem essas perguntas por já tê-las feito a mim mesmo, em momentos de sofrimento. Caso você ainda não tenha colocado diante de si as mesas questões, é provável que algum dia isso venha a acontecer, em momento de grande sofrimento ou dor. Se você está passando por intensas aflições, físicas ou emocionais, este pequeno livro é para você. Nesses tempos tão indesejados de busca e desespero, Deus anseia por nos oferecer algo de valor inestimável, algo que nunca pedimos. Cada pergunta pode ser um convite à esperança, a porta para os seus generosos dons divinos.

 

 

Na tua presença, Senhor,

estão os meus desejos todos,

e a minha ansiedade não te é

oculta.

Bate-me excitado o coração,

faltam-me as forças,

e a luz dos meus olhos,

essa mesma já não está contigo.

Salmo 38.9-10

 

 

Seção Um

Quando você se pergunta por que Deus criou a dor

 

Passeie por um jardim durante a primavera ou observe a neve cair sobre uma paisagem montanhosa, e, por um instante, você terá a impressão de que tudo parece justo no mundo. A criação reflete a generosidade de Deus assim como uma pintura reflete a generosidade do artista.

O mundo está repleto de belezas, convenhamos.

Mas, observando mais detidamente este adorável mundo, você começa a ver dor e sofrimento por toda parte. Os animais devoram uns aos outros em um cruel ciclo de sobrevivência, onde prevalece a lei do comer ou ser comido. Todo ser humano passa por profundos sofrimentos pessoais. Alguns se destroem mutuamente. Tudo o que tem vida enfrenta frustrações, acidentes ou doenças - e, por fim, a morte.

A "pintura" de Deus lhe parece falha; às vezes, até arruinada.

Confesso que cheguei a ver a dor como um grande erro divino, num mundo que, por outro lado, se mostra impressionante. Por quê teria Deus permitido que sua criação ficasse desordenada e a dor passasse a existir no mundo? Se não houvesse injustiças e sofrimentos, seria muito mais fácil para nós respeitarmos a Deus e acreditar nele. Por quê não poderia ter Ele criado todas as belezas deste mundo deixando de fora a dor?

Descobri a resposta para essas perguntas em um lugar inusitado. Para minha surpresa, descobri que, na verdade, existe um mundo onde não há dor - entre as paredes de um leprosário. Os leprosos, hoje chamados de hansenianos, não sentem dor física. Porém, é justamente aí que está a tragédia de sua condição. A medida que a doença se alastra, as terminações nervosas que emitem os sinais de dor silenciam. Praticamente toda a deformidade física ocorre porque a vítima da lepra não consegue sentir dor.

Certa vez, conheci um portador de lepra que havia perdido todos os dedos do pé direito por insistir em usar sapatos apertados, menores do que os que ele precisava usar. Conheço outro que chegou quase a perder o polegar por causa de uma ferida que se desenvolveu em decorrência da força com que ele segurava o cabo de um esfregão. Muitos pacientes naquele hospital ficaram cegos em virtude de a lepra ter silenciado as células da dor, cuja função era alertá-los no momento em que piscassem.

Meus encontros com vítimas da lepra serviram para me mostrar que, em mil e um aspectos, grandes e pequenos, a dor nos é útil a cada dia. Enquanto formos saudáveis, as células da dor nos alertarão sobre quando devemos trocar de sapatos, sobre quando devemos segurar com menos força o cabo de um esfregão ou de um ancinho, ou quando precisamos piscar. Enfim, a dor nos permite levar uma vida livre e ativa. Em um livro escrito anteriormente, Where Is God When It Hurts, descrevo algumas das notáveis características da corrente da dor no corpo humano. Não posso reproduzi-las todas aqui, mas vale a pena mencionar algumas:

- Sem os sinais da dor, a maioria dos esportes seria demasiadamente arriscada.

-  Sem a dor, não haveria sexo, uma vez que o prazer sexual é transmitido principalmente pelas células da dor.

-  Sem a dor, a arte e a cultura seriam muito limitadas. Musicistas, dançarinos, pintores e escultores, todos dependem da sensibilidade do corpo à dor e à pressão. Um guitarrista, por exemplo, precisa sentir exatamente a posição de seus dedos nas cordas e a pressão exercida sobre elas.

-  Sem a dor, nossas vidas estariam correndo constantes perigos fatais. Não receberíamos, por exemplo, o aviso da ocorrência de um apêndice supurado, de um enfarto ou de um tumor cerebral.

- Em suma, a dor é essencial à preservação da vida normal neste planeta. Não se trata de uma inovação inventada por Deus no último instante da criação só para tornar infeliz a vida das pessoas. Nem se constitui ela num grande erro do Criador. Hoje vejo no incrível rede de milhões de sensores da dor existentes por todo o corpo humano, precisamente adaptados à nossa necessidade de proteção, um exemplo da competência de Deus, e não de sua incompetência.

 

* * *

 

 

 

 

Deus meu,

clamo de dia,

e não me respondes.

Salmo 22.2

 

 

Seção Dois

Quando você duvida do poder de Deus.

É claro que a dor física é apenas a camada externa daquilo que chamamos de sofrimento. A morte, as doenças, os terremotos, os tornados - tudo suscita duros questionamentos sobre o envolvimento de Deus na terra. Pode ser que, originalmente, Ele tenha criado a dor como um meio de advertência eficaz para nós. Mas ao que dizer do mundo hoje?

Será que Deus pode se sentir satisfeito com toda a insensatez dos males da humanidade, com as catástrofes naturais e as fatais doenças infantis? Por quê Ele não atua com toda a sua competência e põe fim a algumas das piores formas de sofrimento? Ele tem poderes suficientes para isso? Ele tem capacidade para reorganizar o universo de modo a aliviar nosso sofrimento?

Certa vez, um famoso filósofo expressou o problema da dor da seguinte maneira: "Ou Deus é todo-poderoso, ou é todo-generoso. Ele não pode ser as duas coisas e permitir a dor e o sofrimento". Essa linha de pensamento geralmente leva à conclusão de que Deus é bondoso, de que Ele nos ama e detesta nos ver sofrer; mas, infelizmente, suas mãos estão atadas. Ele simplesmente não tem poder suficiente para solucionar os problemas deste mundo. Mas não é isso que a Bíblia ensina. Há no Antigo Testamento um livro sobre um homem que, sem merecer, sofria uma grande dor - Jó. No caso de Jó, Deus teve uma plataforma perfeita para discutir sua falta de poder, se é que esse era, na verdade, o problema. Certamente, Jó teria recebido de bom grado as seguintes palavras de Deus: "Jó, lamento profundamente o que está acontecendo. Espero que você entenda que eu nada tive a ver com a maneira como as coisas ocorreram. Gostaria de poder ajudá-lo, Jó, mas realmente não tenho como".

Deus não disse nada disso. Falando a um homem ferido e completamente desmoralizado, Ele enalteceu toda a sua sabedoria e o seu poder (Jó 38-41).

 

 

 

 

* * *

 

 

 

 

"Cinge, pois, os lombos, homem", começou Deus.

"Pois eu te perguntarei, e tu me farás saber."

Então, Deus se pôs a explorar o cosmo.

"Onde estavas tu, quando eu lançava os funda­mentos da terra?

Dize-mo, se tens entendimento.

Quem lhe pôs as medidas, se é que o sabes?"

 

* * *

 

 

 

Passo a passo, Deus conduziu Jó pelo processo da criação: o projeto do planeta Terra, a escavação de canais para depositar os mares, a colocação do sistema solar em movimento, a criação da estrutura cristalina dos flocos de neve. Em seguida, Ele se voltou para o reino animal, ressaltando, com orgulho, o bode montes, o boi selvagem, o avestruz, o cavalo e o falcão. O escritor Frederick Buechner sintetizou as comparações que figuram no livro de Jó da seguinte maneira "[Deus] diz que tentar explanar os tipos de coisas que Jó quer explicar seria como tentar explicar Einstein comparando-o a uma cabeça de bagre... Deus não revela seu grande plano. Ele se revela a si mesmo."

Outras partes da Bíblia me convencem de que talvez devêssemos ver o problema da dor como uma questão de ocasião, e não de poder. Temos muitos indícios da insatisfação de Deus com o estado em que este mundo se encontra. Certamente, sua insatisfação em vê-lo é tão grande quanto o nosso desagrado em assistir à sua decadência. E Ele planeja, um dia, tomar alguma atitude em relação a essa situação.

Toda a vida dos profetas e de Jesus e todo o Novo Testamento são permeados pela esperança de que chegará o grande dia em que serão criados um novo céu e uma nova terra com a finalidade de substituir o antigo céu e a antiga terra. O apóstolo Paulo expressou a questão da seguinte maneira:

 

"Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós. A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus... Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora" (Romanos 8.18-19-22).

 

 Às vezes, vivendo nessa criação que "geme e suporta angústias", não podemos deixar de nos sentir como o pobre e velho Jó, que procurava aliviar sua dor, esfregando com cacos de argila as chagas que lhe cobriam o corpo, e se perguntava por que Deus, permitia que ele sofresse. Como Jó, podemos confiar em Deus, mesmo quando todas as evidências parecem estar contra nós. Podemos acreditar que Ele controla o universo e promete que, um dia, existirá um mundo muito melhor, um mundo onde não haverá dores, males ou angústias.

 

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Até quando,

SENHOR

Esquecer-te-ás de mim

para sempre?

Até quando ocultarás

de mim o rosto?

Salmo 13.1

 

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SEÇÃO TRÊS

Quando Deus parece injusto.

"Por quê eu?", perguntamos quase instintivamente ao enfrentar uma grande tragédia.

Veja com atenção as seguintes perguntas, e você poderá detectar um traço comum entre elas.

 

Havia dois mil carros trafegado abaixo de chuva na estrada. Por quê justamente o meu foi derrapar e se chocar contra uma ponte?

 

Entre todas as crianças que freqüentam a escola, por quê justamente o meu filho foi baleado por um louco?

 

Um tipo raro de câncer ataca apenas uma em cada cem pessoas. Por quê justamente o meu pai tem de estar entre as vítimas?

 

Cada questionador pressupõe que, de alguma forma, Deus seja o responsável, o causador direto da dor. Se, de fato, Ele é todo-competente e todo-poderoso, isso não significa que Ele controla cada aspecto da vida? Teria Deus escolhido, pessoalmente, o carro que deveria derrapar na auto-estrada? Teria Ele direcionado o pistoleiro para a sua vítima? Teria Ele escolhido, de maneira aleatória, uma vítima do câncer, a partir, por exemplo, de uma lista telefônica?

Poucas pessoas conseguem evitar esse tipo de pensamento, quando a dor as atinge. Imediatamente, começamos a fazer um exame de consciência, na tentativa de encontrar algum pecado pelo qual Deus possa nos estar punindo. O quê Deus está me dize por meio da dor? E, se nada encontramos de definido, começamos a questionar a justiça de Deus. Por quê estou sofrendo mais do que o meu vizinho que é um ímpio?

Ao entrevistar pessoas que se encontram em meio a sofrimentos, constatei que elas se atormentam a si mesmas com perguntas como essas. Enquanto se contorcem na cama, se questionam sobre Deus. Embora bem-intencionados, geralmente os cristãos fazem com que as vítimas da dor se sintam ainda em pior estado. Eles chegam aos leitos hospitalares levando presentes de culpa - "Você deve ter feito algo para merecer isso" - e frustração - "Você não deve estar orando o suficiente."

 

* * *

 

"Ser absolutamente obrigado a amar a Deus,

no meio do deserto, é como ser obrigado

a estar bem quando se está doente, a cantar

de alegria quando se está morrendo de sede,

a correr quando se tem as pernas quebradas.

Todavia, esse é o primeiro e grande

mandamento. Mesmo no meio do deserto -

e especialmente no meio do deserto -

devemos amá-lo."

Frederick Buechner

 

* * *

 

 

Mais uma vez, a única maneira de colocar à prova as suas dúvidas em relação a Deus é procurar solvê-las à luz da Bíblia. O que encontramos lá? Será que Deus, em algum momento, usa a dor como punição? Sim, usa. A Bíblia registra muitos exemplos, especialmente de castigos impostos à nação de Israel do Antigo Testamento. Mas note bem: em todos os casos, a punição seguiu-se a repetidas advertências contra o comportamento que levou alguém a merecê-la. Os livros proféticos do Antigo Testamento, com centenas de páginas, fazem uma enérgica e eloqüente advertência ao povo de Israel para que se afastasse do pecado antes do juízo final. Pense no pai ou na mãe que castiga seu filho pequeno. De pouco valeria a correção feita intempestivamente por esse pai ou por essa mãe, se não houvesse, de sua parte, qualquer explicação diante daquele filho. Essa tática produziria uma criança neurótica, desobediente. Para ser eficaz, o castigo deve ter clara relação com o comportamento.

A nação de Israel sabia por que estava sendo punida; os profetas haviam advertido o povo judeu de forma pungente e detalhada. O faraó do Egito sabia exatamente por que as dez pragas se desencadearam contra a sua terra: Deus as havia predito, mostrando-lhe a razão por que elas ocorreriam e como uma mudança nos sentimentos e atitude daquele governante poderia evitá-las.

Os exemplos bíblicos do sofrimento como forma de punição, portanto, tendem a seguir um padrão. A dor vem depois de muita advertência. Depois de advertido, ninguém fique por aí se perguntando: "Por quê?" As pessoas sabem muito bem por que estão sofrendo.

Mas será que esse padrão nos faz lembrar aquilo que acontece à maioria de nós hoje? Recebemos alguma revelação direta de Deus nos advertindo sobre alguma catástrofe iminente? O sofrimento pessoal vem acompanhado de clara explicação da parte do Senhor? Se não conhecemos a razão do sofrimento, devemos questionar se as dores por que passa a maior das pessoas - um acidente aéreo, um caso de câncer na família, uma fatalidade no trânsito - são realmente castigos de Deus?

Francamente, creio que, a menos que Deus se revele especialmente de outra forma, seria melhor recorrermos a outros exemplos bíblicos de pessoas que enfrentaram o sofrimento. A Bíblia contém algumas histórias de pessoas que sofreram, mas para quem o sofrimento não era, absolutamente, punição divina.

 

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"Não acredito que o sofrimento, puro e

simples, ensine.

Se o sofrimento por si só ensinasse, o

mundo inteiro seria sábio, uma vez que todos

sofrem. Ao sofrimento devem-se

acrescentar o profundo pesar, a compreensão,

a paciência, o amor, a receptividade e

a disposição para permanecer vulnerável

ao próprio sofrimento."

Anne Morrow Lindberg

 

 

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Jesus ressaltou essa questão em duas passagens diferentes do Novo Testamento. Certa vez, seus discípulos apontaram para um cego e perguntaram quem havia pecado a ponto de produzir tamanho sofrimento - o cego ou seus pais. Jesus respondeu que nem o cego nem seus pais havia pecado (João 9.1-5).

Em outra ocasião, Jesus comentou sobre dois acontecimentos recentes de sua época: a queda de uma torre, provocando a morte de 18 pessoas, e a matança de alguns fiéis no interior do templo, determinada pelo governo. Aqueles que morreram com a queda da torre, disse Ele, não eram mais culpados do que qualquer outra pessoa (Lucas 13.1-5). Eles nada haviam feito para merecer aquela dor.

Existem exceções, é claro. Em alguns casos, a dor esta nitidamente relacionada aos erros de comportamento: as vítimas de doenças sexualmente transmissíveis e as pessoas atingidas por enfermidades relacionadas ao fumo e ao álcool não precisam perder seu tempo tentando descobrir a "mensagem" de sua dor. Entretanto, a maior parte de nós, na maioria das vez, não está sendo punida por Deus. Ao contrário, o nosso sofrimento segue um padrão de dores inesperadas e inexplicáveis, como aquelas vivenciadas por Jó e pelas vítimas das catástrofes descritas por Jesus.

 

* * *

 

 

 

 

Justo é o SENHOR em todos

os seus caminhos, benigno

em todas as suas obras.

Salmo 145.17

 

 

* * *

 

 

Contaste os meus passos

quando sofri perseguições;

recolheste as minhas lágrimas

no teu odre; não estão elas

inscritas no teu livro?

Salmo 56.8

 

 

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SEÇÃO QUATRO

Quando você se pergunta se Deus se importa

A última grande dúvida que surge em meio à dor é sutilmente diferente.

Trata-se de uma dúvida de natureza pessoal. Por quê Deus não demonstra maior interesse por nós nos momentos de necessidade? Se Ele se preocupa com a minha dor, por quê não me faz ver isso?

Um grande autor cristão, C. S. Lewis, escreveu um livro clássico sobre a dor, intitulado The Problem of Pain. Nesse livro, ele responde, de forma convincente, a muitas das dúvidas com que os cristãos se deparam diante do sofrimento. Centenas de milhares de pessoas encontraram consolo no livro de Lewis.

Mas anos depois de Lewis ter escrito o livro, sua esposa contraiu câncer. Ele a viu consumir-se, aos poucos, em um leito de hospital, acabando por morrer. Após sua morte, ele escreveu outro livro sobre a dor, esse de caráter muito pessoal e emocional. E nesse livro, A Grief Observed, C. S. Lewis diz o seguinte:

"Enquanto isso, onde está Deus? Este é um dos sintomas mais perturbadores. Quando você está feliz, tão feliz a ponto de não ter a sensação de precisar dele, ao recorrer a Ele com louvor, você é recebido de braços abertos. Mas recorra a Ele em um momento de desespero, quando todos os demais tipos de ajuda se mostram inúteis, e o que você encontra? Uma porta se bate no seu rosto, e você ouve o som da tranca que a fecha por dentro. Depois, segue-se o silêncio. Você pode tratar de ir embora."

C. S. Lewis não questionou a existência de Deus, mas, sim, o amor divino. Em nenhum outro momento, Deus pareceu mais distante ou desinteressado. Será que Deus tinha amor para dar? Se o tinha, então onde Ele estava nesse momento de tanta dor?

Nem todos têm a sensação de abandono descrita por C. S. Lewis. Alguns cristãos expressam que Deus se lhes revelou de forma particularmente real em seus momentos de dor. Ele é capaz de proporcionar um misterioso conforto que nos ajuda a suportar a dor por que estamos passando. Mas nem sempre é assim. Às vezes, Deus parece silenciar totalmente. E aí? Será que Ele só se importa com as pessoas que, de alguma forma, sentem o seu conforto? Já conversei suficientemente com pessoas que estavam sofrendo e pude perceber que as experiência diferem. Não posso generalizar a maneira como alguém sente, individualmente, a proximidade ou a distância de Deus. Porém, existem duas expressões de preocupação divina aplicadas a todos nós, em qualquer ocasião. Uma é a resposta de Jesus à dor. A outra envolve todo aquele que se diz cristão.

Mesmo os cristãos mais fiéis podem, assim como C. S. Lewis, questionar a preocupação pessoal de Deus. Nessa ocasião, as orações parecem palavras lançadas ao vento.

Poucas pessoas recebem a milagrosa aparição de um Deus misericordioso que venha a amenizar suas dúvidas. Mas, pelo menos, podemos ter uma visão real de como Deus, de fato, se sente em relação à dor.

 

"Era desprezado e o mais rejeitado

entre os homens; homem de dores

e que sabe o que é padecer."

Isaías 53.3

 

Jesus passou grande parte de sua vida ente pessoas sofredoras, e suas respostas a essas pessoas demonstram como Ele se sente em relação à dor. Quando Lázaro, o amigo de Jesus morreu, Ele chorou. Muitas vezes - e todas as vezes em que a sua interferência e atuação eram requeridas - Ele curou a dor.

Como Deus se sente em relação à dor? Olhe para Jesus. Ele respondia àqueles que sofriam com tristeza e pesar. Em seguida, com poder sobrenatural, Ele estendia a mão e eliminava as causas da dor. Não acredito que os discípulos de Jesus se atormentassem com perguntas como esta: "Será que Deus se importa"? Eles tinham provas cabais da preocupação de Deus todos os dias. Eles simplesmente olhavam para o rosto de Jesus e o viam desempenhar a missão de Deu na terra.

Em Jesus, encontramos o fato histórico de como Deus respondia à dor na terra. Ele expressa o lado íntimo e pessoal da resposta de Deus ao sofrimento humano. Todas as nossas dúvidas em relação a Deus e sobre o sofrimento devem, na realidade, ser filtradas pelo que sabemos sobre Jesus.

Jesus não só respondeu à dor com compaixão, como, surpreendentemente, o próprio Deus experimentou a dor. O mesmo Deus que, diante de Jó, se "jactou" de seu poder demonstrado na criação do mundo optou por se sujeitar a esse mundo e a todas as suas leis naturais, inclusive à dor. Outra escritora cristã, Dorothy Sayers, disse o seguinte:

Qualquer que tenha sido a razão pela qual Deus optou por fazer o homem como ele é - limitado, sofredor e sujeito a dores e à morte -, teve a honestidade e a coragem de lhe oferecer as suas próprias soluções para as limitações humanas. Qualquer que seja o jogo de que está participando com a sua criação, qualquer que seja a maneira como se relaciona com o homem, Deus segue as suas próprias regras e age de maneira clara e justa, Ele nada exige do homem que não tenha exigido de si mesmo. Ele próprio passou por toda sorte de experiências humanas, desde as mais banais tributações da vida familiar e restrições impostas pela vida profissional e a falta de dinheiro até os piores horrores da dor, da humilhação, da derrota, do desespero e da morte. Quando homem, Ele agia como homem, Ele nasceu pobre, morreu miserável e achou que, realmente, seus esforços e sofrimentos tiveram valor.

 

"Porque Deus amou ao mundo de tal maneira", diz o versículo mais conhecido da Bíblia, "que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (João 3.16).

 

O fato de Jesus ter vindo à terra, sofrido e morrido não exclui a dor de nossas vidas. Nem nos garante que nos sentiremos sempre confortados. Mas isso não demonstra que Deus se tenha sentado ao acaso, assistindo-nos sofrer sozinhos. Ele se juntou a nós e, durante a sua passagem pela terra, suportou uma dor muito maior do que qualquer grande dor que a maioria de nós pode suportar. Com isso, Ele conquistou uma vitória capaz de tornar possível a existência de um mundo futuro sem dor.

 

* * *

 

 

A palavra "compaixão" provém de duas palavras latinas que significam "sofrer com".

Jesus demonstrou compaixão no sentido mais profundo, ao descer voluntariamente à terra para experimentar a dor.

Ele  sofreu conosco e por nós.

 

* * *

 

 

Mostra as maravilhas da tua bondade,

ó Salvador dos que à tua

destra buscam refúgio...

Guarda-me como a menina dos

olhos, esconde-me à sombra das tuas asas.

Salmo 17.7-8

 

 

SEÇÃO CINCO

Quando você precisa sentir o amor de Deus.

Mas Jesus, o nosso Salvador sofredor e Médico, não ficou na terra. Hoje, não podemos até Jerusalém, alugar um carro e agendar com Ele uma visita particular. Como podemos, hoje, sentir o amor de Deus de forma concreta?

Temos o Espírito Santo, é claro, um símbolo real da presença de Deus em nós. E temos a promessa do futuro, quando Deus criará o mundo perfeito, e quando nos encontraremos face a face com Ele. Mas, como viver ainda o momento presente? O que pode nos tranqüilizar e nos mostrar, de maneira física e visível, o amor de Deus na terra?

É aí que entra em cena a Igreja, a comunidade que inclui todos os verdadeiros seguidores de Deus na terra. A Bíblia usa a expressão "o corpo de Cristo", que expressa aquilo que devemos realmente significar.

Os cristãos devem refletir a imagem de Cristo - suas palavras, seu toque, seu cuidado - especialmente para aqueles que têm necessidade de ajuda.

Só existe uma boa maneira de compreender como o corpo de Cristo pode prestar assistência a uma pessoa que sofre: vê-lo em ação. Eu já tenho testemunhado e experimentado isso em minha própria vida. E já tenho visto a sua atuação na vida dos outros também. Deixe-me contar-lhe a história de Martha, uma pessoa que conviveu com uma grande dor e grandes dúvidas.

Martha era uma atraente mulher de 26 anos, quando a conheci. Mas sua vida mudou para sempre no dia em que ela tomou conhecimento de que havia contraído ALS, ou "mal de Lou Gehrig". O ALS destrói o controle do sistema nervoso. Primeiro, a doença ataca os movimentos voluntários, como o controle sobre os braços e as pernas, depois as mãos e os pés, progredindo até finalmente afetar a respiração, sucumbe rapidamente ; outras vezes, não.

Martha parecia perfeitamente normal quando me falou pela primeira vez sobre sua doença. Porém, um mês depois, ela estava numa cadeira de rodas. Foi demitida de seu emprego na biblioteca de uma universidade. Passado mais um mês, seu braço direito perdeu os movimentos. Logo, seu outro braço seguiu o mesmo caminho, e ela mal conseguia manejar os controles da nova cadeira de rodas elétrica.

Comecei a visitar Martha no hospital de reabilitação. Eu a levava para pequenos passeios em sua cadeira de rodas e em meu carro. Tomei conhecimento da gravidade e da impiedade de seu sofrimento. Ela necessitava de ajuda para cada movimento: para se vestir, para acomodar a cabeça no travesseiro, para fazer sua higiene. Quando ela chorava, alguém tinha de enxugar suas lágrimas e segurar um lenço de papel em seu nariz.

Seu corpo estava completamente rebelado contra a sua vontade e não obedecia a qualquer de seus comandos.

Conversamos brevemente sobre a morte e a fé cristão. Confesso sinceramente que, para Martha, as grandes esperanças cristãs da vida eterna, da cura fundamental e da ressurreição pareciam vazias, frágeis e inconsistentes como a fumaça quando usadas como bandeira para alguém em dificuldade. Ela não queria asas de anjo, mas um braço que caísse coordenadamente para o lado, uma boca que não babasse e pulmões que não lhe faltassem. Confesso que a eternidade, mesmo pensando na eternidade onde não haverá dor, parecia ter uma estranha irrelevância para o sofrimento por que Martha estava passando. Ela pensava em Deus, é claro; mas mal conseguia vê-lo com amor. Ela resistia a qualquer forma de conversão em seu leito de morte, insistindo que só recorreria a Deus por amor, e não por medo. E de que maneira ela poderia amar um Deus que lhe permitia sofrer tanto?

No mês de outubro, mais ou menos, ficou claro que o ALS completaria rapidamente o seu terrível ciclo de vida de Martha. Ela já tinha grande dificuldade para respirar. Por causa da dificuldade na chegada do oxigênio ao cérebro, geralmente adormecia no meio de uma conversa. Às vezes, durante a noite, ela acordava em pânico, com a sensação de sufocamento, e não conseguia pedir socorro.

O último pedido de Martha foi para sair do hospital e passar, pelo menos, duas semanas em seu apartamento, em Chicago, para que tivesse a oportunidade de chamar os amigos, um a um, a fim de se despedir e encarar sua morte. Mas essas duas semanas em seu apartamento apresentavam um problema: como poderia ela receber, durante 24 horas do dia, a assistência de que necessitava para permanecer viva, somente se ela estivesse em um quarto de hospital, e não em casa.

Assim sendo, um grupo de voluntárias cristãs se ofereceu para prestar a assistência pessoal gratuita e generosa de que Martha necessitava. Elas adotaram Martha como um alvo de vida e providenciaram tudo o que era necessário para satisfazer seus últimos desejos. Dezesseis mulheres reestruturaram suas vidas em função de Martha, e, após se dividirem em equipes de trabalho e providenciarem serviços de babá para seus próprios filhos, elas mudaram-se para o apartamento de Martha. Faziam companhia a Martha, ouviam seus delírios e queixas, davam-lhe banho, ajudavam-na a se sentar, mudavam-na de posição, passavam a noite inteira acordadas com ela, oravam por ela e lhe demonstravam o seu amor. Elas se colocaram à sua disposição, oferecendo-lhe um lugar e dando sentido ao seu sofrimento.

Para Martha, aquelas mulheres passaram a ser o corpo de Cristo e lhe mostraram claramente o que é a esperança cristã. Por fim, vendo o amor de Deus encarnado em seu corpo, em sua Igreja, e assistindo à demonstração de amor por parte das pessoas à sua volta - embora, para ela, Deus parecesse impiedoso e até mesmo cruel -, Martha veio à presença desse Deus em Cristo e se entregou, verdadeiramente, àquele que morreu para salvá-la. Ela não foi à presença de Deus com medo; Martha havia finalmente, encontrado o amor divino. Nos rostos daquelas mulheres cristãs, ela acabou conseguindo ler o amor de Deus. Durante cerimônia muito emocionante, realizada em Evanston, Martha, mesmo tão debilitada, deu seu testemunho de conversão e foi batizada.

 

Não se turbe o vosso coração;

credes em Deus, crede também em mim.

Na casa de meu Pai há muitas moradas.

Se assim não fora, eu vo-lo teria dito

Pois vou preparar-vos lugar,

E, quando eu for e vos preparar lugar,

voltarei e vos receberei para mim mesmo

para que, onde eu estou, estejais vós também.

João 12.1-3

 

Na véspera do Dia de Ação de Graças, Martha morreu. Seu corpo, enrugado, deformado e atrofiado, era uma sombra patética de sua antiga beleza. Quando aquele corpo finalmente cessou sua atividade, Martha se foi.

Hoje, Martha vive em um outro corpo, de forma vitoriosa. Ela vive, graças à vitória de Cristo sobre a dor, sobre o pecado, sobre o sofrimento e sobre a morte. E Martha descobriu essa vitória porque o corpo de Cristo - a sua Igreja - fez com que ela pudesse conhecê-la de maneira clara e definida. Por meio de seu sofrimento, ela pôde conhecer verdadeiramente o Senhor. No amor e na compaixão dos cristãos à sua volta, ela viu e recebeu o amor de Deus. E, assim, as suas dúvidas em relação a Ele foram gradativamente se dirimindo.

O apóstolo Paulo devia ter em mente algo semelhante a essa experiência quando escreveu as seguintes palavras:

 

"Porque, assim como os sofrimentos de Cristo se manifestam em grande medida a nosso favor, assim também a nossa consolação transborda por meio de Cristo."

2 Coríntios 1.5

 

As melhores repostas para as questões levantadas quando a vida nos machuca são encontradas no corpo de Cristo, a Igreja. Prestando assistência àqueles que sofrem, permitimos que a consolação de Cristo transborde por nosso intermédio. Com isso, revelamos ao mundo o que Deus realmente é.

 

 

"Se amarmos a Deus e nele amarmos os outros,

teremos prazer em deixar que o sofrimento

destrua em nós qualquer coisa que Deus

queira que por Ele seja destruída,

porque sabemos que tudo o que o sofrimento

destrói não tem importância.

Preferiremos deixar que o lixo acidental da vida

seja consumado pelo sofrimento

para que a glória de Deus possa

transparecer em tudo o que fazemos."

 

Thomas Merton