História Eclesiastica - Eusébio de Cesaréia

História Eclesiastica - Eusébio de Cesaréia

HISTÓRIA

ECLESIÁSTICA

EUSÉBIO DE CESARÉIA

PREFÁCIO

O autor e a obra

Eusébio, bispo de Cesaréia, nasceu em cerca de 270, fale­ceu no ano 339/340. A data de seu nascimento só pode ser inferida de sua obra, pois ele narra a perseguição dos cristãos sob Valeriano (258-260) como sendo algo do passado, e os even­tos seguintes como sendo contemporâneos seus.

Não se sabe onde nasceu, mas passou a maior e mais impor­tante parte de sua vida em Cesaréia, na época a maior cidade romana da Palestina. Era de família desconhecida mas certa­mente cristã, como indica seu nome. Eusébio nada fala de si mesmo em sua extensa obra. Foi bispo de Cesaréia de 313 ou 315 em diante.

Em 303 começa a última e maior perseguição aos cristãos, durando até 311. Não se sabe em que circunstâncias Eusébio atravessou essa tormenta. Assistiu pessoalmente a martírios em Tiro e na Tebaida (Egito), ele próprio foi preso mas não executa­do, tendo sido posteriormente acusado de apostasia.

Sua formação teológica foi baseada no estudo da obra de Orígenes. Durante os debates contra o arianismo Eusébio foi um dos principais defensores de uma posição mediadora, que procurava manter unificada a indefinição dogmática dos pri­meiros pais da Igreja. Para a dogmática posterior ele é suspeito de ser semi-ariano, o que pode ter sido a causa do rápido desa­parecimento de muitos de seus escritos.

Sua obra se constitui de livros históricos, apologéticos, de exegese bíblica e doutrinários. Escreveu mais de 120 volumes, a maioria dos quais perdidos, alguns são conhecidos ape­nas por traduções. Dos originais restam nada mais do que frag­mentos.

Tratou de todos os temas e personalidades ligados à Igreja, citando extensamente e comentando cerca de 250 obras de muitos autores que de outra maneira estariam perdidos, sendo conhecidos apenas através de Eusébio.

Eusébio de Cesaréia

 

 

A HISTÓRIA ECLESIÁSTICA

Não se trata de uma História da Igreja, como seria enten­dida hoje. A Igreja não é, para ele e seus contemporâneos, objeto de história, já que é uma entidade criada por Deus, e portanto transcendente. O que o historiador pode fazer é relatar os fatos, as pessoas e as instituições com ela relacionados. Dessa forma, relatam-se acontecimentos, mas não se analisa um desenvol­vimento histórico.

A motivação da obra, como explicitada no início do pri­meiro livro, é registrar a sucessão dos "santos apóstolos", os grandes feitos, os que se sobressaíram, as heresias, as perse­guições e a proteção de Deus sobre seu povo.

A obra é dividida em dez livros com a seguinte estrutura: I-VII: Uma contínua sucessão de temas iniciada talvez an­tes da perseguição, com material reunido até mais ou menos o ano 311.

VIII: Atualização da obra com os acontecimentos mais recentes.

IX-X: Longa extensão do livro VIII, com desfecho escrito após a inauguração da Igreja de Tiro.

A forma final da obra foi atingida após quatro edições, tendo os nove primeiros livros sido publicados antes do Edito de Milão (311) e o décimo livro em 323/5.

A importância da obra nos dias de hoje é múltipla: Para o estudo da historia antiga é uma rica fonte de referências e uma compilação de obras anteriores. Para a Igreja, tem o valor de registro dos primórdios de sua história. Para os cristãos traz o testemunho daqueles que viveram as perseguições dos primeiros séculos, que com seu martírio nos dão uma lição de perseverança e fé, e ao mesmo tempo nos mostram um sinal de esperança em qualquer época de crise.

**

 

 

Sumário

Livro I

  1. Propósito da Obra..........................................................................................................13
  2. Resumo da doutrina sobre a preexistência de Nosso Salvador e Senhor, o Cristo

              de Deus, e da atribuição da divindade...........................................................................13

  1. III.                                             De como os nomes de Jesus e de Cristo já eram conhecidos desde a antigüidade e

              honrados pelos profetas inspirados por Deus.......... .....................................................17

  1. De como o caráter da religião anunciada por Cristo a todas as nações não era novo

              nem estranho            ..................................................................................................................19

  1. De quando Cristo se manifestou aos homens.................................................................21
    1. De como, segundo as profecias, em seus dias terminaram os reis por linha hereditária

              que regiam a nação judia e começou a reinar Herodes, o primeiro estrangeiro................21

  1. Da suposta discrepância dos evangelhos acerca da genealogia de Cristo.......................... .22
  2. Do infanticídio cometido por Herodes e o final catastrófico de sua vida.............................24
  3. Dos tempos de Pilatos....................................................................................................26
  4. Dos sumos sacerdotes dos judeus sob os quais Cristo ensinou......................................26
  5. Testemunhos sobre João Batista e Cristo................. .....................................................27
  6. Dos discípulos de nosso Salvador..................................................................................28
  7. Relato sobre o rei de Edessa..................................... ......................................................29

 

Livro II

  1. Da vida dos apóstolos depois da ascensão de Cristo........ .......................................................33
  2. Da emoção de Tibério ao ser informado por Pilatos dos feitos referentes a Cristo..............34

III.            De como a doutrina de Cristo em pouco tempo se propagou por todo o mundo.............35

  1. De como, depois de Tibério, Caio estabeleceu Agripa como rei dos judeus e castigou Herodes com o desterro perpétuo..................................................... .......................................................36
  2. De como Fílon foi embaixador junto a Caio em favor dos judeus....................................36

VI.        Dos males que desabaram sobre os judeus depois de sua maldade contra Cristo............37

VII.       De como Pilatos também se suicidou...............................................................................38

VIII.      Da fome nos tempos de Cláudio......................................................................................38

IX.        Martírio do apóstolo Tiago...............................................................................................38

X.          De como Agripa, também chamado Herodes, perseguiu os apóstolos e logo sentiu a vingança divina..................................................................................................................38

XI.        Do impostor Teudas...................................... ..................................................................39

XII.       De Elena, rainha de Adiabene...................... ..................................................................39

XIII.      De Simão Mago............................................ ..................................................................40

XIV.      Da pregação do apóstolo Pedro em Roma... ..................................................................41

XV.       Do evangelho de Marcos.............................. ..................................................................41

XVI.      De como Marcos foi o primeiro a pregar aos egípcios o conhecimento de Cristo............42

XVII.     O que Fílon conta sobre os ascetas do Egito...................................................................42

XVIII.   Obras de Fílon que chegaram até nós..............................................................................44

XIX.      Calamidades que se abateram sobre os judeus de Jerusalém no dia da Páscoa................45

XX.       Do que ocorreu em Jerusalém nos dias de Nero..............................................................45

XXI.      Do egípcio, também mencionado pelos Atos dos Apóstolos          ...........................................46

XXII.     De como Paulo, enviado preso da Judéia a Roma, fez sua defesa e foi absolvido de toda acusação...........................................................................................................................46

XXIII.   De como Tiago, chamado irmão do Senhor, sofreu o martírio.........................................47

XXIV.   De como Aniano foi nomeado primeiro bispo da Igreja de Alexandria depois

de Marcos.........................................................................................................................49

XXV.    Da perseguição nos tempos de Nero, na qual Paulo e Pedro foram adornados com

o martírio pela religião em Roma.....................................................................................49

XXVI.   Dos inumeráveis males que envolveram os judeus e da última guerra que eles

moveram contra os romanos            ..........................................................................................50

 

Livro III

I. .......... Em que partes da terra os apóstolos pregaram sobre Cristo...........................................52

II. ........ Quem foi o primeiro que presidiu a Igreja de Roma          ......................................................52

III. ....... Sobre as cartas dos apóstolos.........................................................................................52

IV. ....... Sobre a primeira sucessão dos apóstolos.......................................................................53

V. ........ Sobre o último assédio dos judeus depois de Cristo          ......................................................54

VI. ....... Sobre a fome que os oprimiu......................... ................................................................54

VII. ..... Sobre as profecias de Cristo.......................... ................................................................57

VIII. .... Dos sinais que precederam a guerra.............. ................................................................58

IX. ....... De Josefo e os escritos que deixou................ ................................................................59

X. ........ De que maneira cita os livros divinos............ ................................................................59

  1. De como Simeão dirige a Igreja de Jerusalém depois de Tiago.....................................60
  2. De como Vespasiano ordena que se busquem os descendentes de Davi..........................60
  3. De como o segundo bispo de Roma é Anacleto...... ......................................................61
  4. De como o segundo a dirigir os alexandrinos é Abílio ..................................................61
  5. De como o terceiro bispo de Roma, depois de Anacleto, é Clemente............................61
  6. Da carta de Clemente.....................................................................................................61
  7. Da perseguição sob Domiciano......................................................................................61
  8. Sobre o apóstolo João e o "Apocalipse".........................................................................61
  9. De como Domiciano ordena a morte aos descendentes de Davi....................................62
  10. Dos parentes de nosso Salvador....................................................................................62
  11. De como o terceiro a dirigir a Igreja de Alexandria é Cerdon.......................................62
  12. De como o segundo na de Antioquia é Inácio...............................................................63
  13. Relato sobre o apóstolo João.........................................................................................63
  14. Da ordem dos evangelhos.............................................................................................64
  15. Das divinas Escrituras reconhecidas e das que não o são.............................................66
  16. Sobre o mago Menandro...............................................................................................66
  17. Da heresia dos ebionitas................................................................................................67

XXVIII.Do heresiarca Cerinto....................................................................................................67

  1. De Nicolau e dos que dele tomam o nome....................................................................68
  2. Dos apóstolos cujo matrimônio está comprovado.........................................................68
  3. Da morte de João e de Felipe........................................................................................69
  4. De como sofreu o martírio Simeão, bispo de Jerusalém................................................69

XXXIII.De como Trajano impediu que se perseguisse os cristãos.............................................70

XXXIV.De como o quarto a dirigir a Igreja de Roma é Evaristo...............................................71

  1. De como o terceiro na de Jerusalém é Justo.................................................................71

XXXVI.Sobre Inácio e suas cartas............................................................................................71

XXXVII.Dos evangelistas que ainda então se distinguiam........................................................73

XXXVIII.Da carta de Clemente e os escritos que falsamente lhe atribuem...............................73

XXXIX.Dos escritos de Papias............................................. ....................................................74

 

Livro IV

  1. Quais foram os bispos de Roma e de Alexandria sob o reinado de Trajano........................77
  2. O que padeceram os judeus nos tempos de Trajano......................................................77
  3. Os que saíram em defesa da fé nos tempos de Adriano...............................................77
  4. Os bispos de Roma e de Alexandria nos tempos deste     .................................................78
  5. Os bispos de Jerusalém, desde o Salvador até os tempos de Adriano...........................78
  6. O último assédio de Jerusalém, nos tempos de Adriano...............................................78
  7. Quem foram neste tempo os líderes da gnosis de enganoso nome...............................79
  8. Quem foram os escritores eclesiásticos nos tempos de Adriano..................................80
    1. Uma carta de Adriano dizendo que não se deveria perseguir-nos sem julgamento         ....81

X.           Quem foram os bispos de Roma e de Alexandria sob o reinado de Antonino...........81

XI. .......  Dos heresiarcas daqueles tempos................................................................................81

XII. .....  Da Apologia de Justino dirigida a Antonino..............................................................82

XIII.       Uma carta de Antonino ao concilio da Ásia sobre a nossa doutrina...........................83

XIV. ....  O que se recorda sobre Policarpo, discípulo dos apóstolos........................................83

XV.        De como, nos tempos de Vero, Policarpo sofreu o martírio junto com outros da

   Cidade de Esmirna......................................................................................................84

XVI.      De como Justino o Filósofo, sendo de avançada idade, sofreu martírio pela doutrina

    de Cristo na cidade de Roma.....................................................................................88

XVII.... Dos mártires mencionados por Justino em sua própria obra......................................89

XVIII... Que tratados de Justino chegaram a nós.....................................................................90

XIX.      Quem esteve frente à frente das igrejas de Roma e de Alexandria sob o reinado de

   Vero............................................................................................................................91

XX....... Quem esteve à frente da igreja de Antioquia...............................................................91

XXI...... Dos escritores eclesiásticos que brilharam naquele tempo.........................................91

XXII.... De Hegesipo e dos que ele menciona.........................................................................91

XXIII... De Dionísio, bispo de Corinto, e das cartas que escreveu..........................................92

XXIV... De Teófilo, bispo de Antioquia..................................................................................93

XXV.... De Felipe e de Modesto.............................................................................................93

XXVI... De Meliton e dos que ele menciona...........................................................................94

XXVII. De Apolinário............................................................................................................95

XXVIII.................................................................... De Musano.................................................................................................................95

XXIX... Da heresia de Taciano................................................................................................95

XXX.... De Bardesanes o Sírio e das obras que se diz serem suas...........................................96

 

Livro V

  1. Quantos foram e de que modo lutaram nos tempos de Vero pela reli­gião na Gália...98
  2. De como os mártires, amados de Deus, acolhiam e cuidavam dos que haviam

              falhado na perseguição............................................ .................................................104

  1. Que aparição teve em sonhos o mártir Atalo.............................................................105
  2. De como os mártires recomendavam Irineu em sua carta..........................................105
    1. De como Deus atendeu as orações dos nossos e fez chover do céu para o

              imperador Marco Aurélio..........................................................................................106

  1. Lista dos bispos em Roma....................................... .................................................107
  2. De como inclusive até aqueles tempos realizavam-se por meio dos fiéis

              grandiosos milagres...................................................................................................107

  1. De como Irineu menciona as diversas Escrituras......................................................108
  2. Os que foram bispos sob Cômodo........................... .................................................109
  3. De Panteno, o filósofo...............................................................................................109

XI,         De Clemente de Alexandria.................................... ..................................................110

XII.        Dos bispos de Jerusalém.......................................... ..................................................110

XIII       De Ródon e as dissensões que mencionados marcionitas............................................110

  1. Dos falsos profetas catafrigas.................................. ..................................................111
  2. Do cisma de Blasto em Roma................................. ..................................................111
    1. O que se menciona sobre Montano e os pseudoprofetas de sua com­panhia..............112
    2. De Milcíades e os tratados que compôs.....................................................................114
    3. Em que termos Apolônio refutou aos catafrigas e quem ele menciona.......................115
    4. De Serapion sobre a heresia dos frígios.....................................................................116
    5. O que Irineu discute por escrito com os cismáticos de Roma....................................116
    6. De como Apolônio morreu mártir em Roma..............................................................117
    7. Que bispos eram célebres naquele tempo..................................................................118
    8. Da questão então movida sobre a Páscoa........................................... ......................118
    9. Sobre a dissensão na Ásia........................................ .................................................118
    10. De como houve acordo unânime entre todos sobre a Páscoa....................................120
    11. Quanto chegou a nós de Irineu................................ ................................................120
    12. Quanto chegou dos outros que floresceram naquela época           .......................................121

XXVIII.Dos que acolheram a heresia de Artemon desde o princípio, qual foi seu

              comportamento e de que modo ousaram corromper as Escrituras..............................121

 

Livro VI

  1. Da perseguição de Severo........................................................................................124
  2. Da educação de Origines desde menino..................................................................124
  3. De como Orígenes, sendo ainda um rapaz, ensinava a doutrina de Cristo...................125
    1. Quantos dos instruídos por Orígenes foram elevados à categoria de mártires........126
    2. De Potamiena.......................................................... ...............................................127
    3. De Clemente de Alexandria.................................... ...............................................128
    4. Do escritor Judas..................................................... ...............................................128
    5. Da façanha de Orígenes........................................... ...............................................128
    6. Dos milagres de Narciso.......................................... ...............................................129

X.          Dos bispos de Jerusalém.......................................... ...............................................129

XI.         De Alexandre.......................................................... ...............................................130

  1. De Serapion e das obras que dele se conservam...... ...............................................130
  2. Das obras de Clemente............................................ ...............................................131
  3. De quantas escrituras Clemente faz menção........... ...............................................132

XV        De Heraclas............................................................. ...............................................132

XVI. De como Orígenes havia se ocupado com afã das divinas Escrituras............................133

  1. Do tradutor Símaco................................................. ...............................................133
  2. De Ambrósio........................................................... ...............................................133
  3. Quantas coisas se mencionam sobre Orígenes......... ................................................134
  4. Quantas obras subsistem dos homens de então....... ................................................135
  5. Quantos bispos eram célebres naqueles tempos....... ................................................136
  6. Quantas obras de Hipólito chegaram a nós.............. ................................................136
    1. Do zelo de Orígenes e como foi julgado digno do presbiteriado ecle­siástico..........136
    2. Que comentários Orígenes escreveu em Alexandria ................................................137
    3. Como Orígenes mencionou as escrituras canônicas..................................................137
    4. Como era considerado pelos bispos......................... ................................................138
    5. De como Heraclas recebeu em sucessão o episcopado de Alexandria......................138

XXVIII.Da perseguição de Maximino.................................. ................................................139

  1. De como Fabiano foi milagrosamente assinalado por Deus como bispo de Roma.....139
  2. Quantos discípulos teve Orígenes............................ ................................................139
  3. De Africanus............................................................ ................................................140
  4. Que comentários escreveu Orígenes em Cesaréia da Palestina.................................140

XXXIII.Sobre o descaminho de Berilo................................. ................................................140

XXXIV  O ocorrido no tempo de Felipe................................ ................................................141

XXXV     De como Dionísio sucedeu Heraclas no episcopado ................................................141

XXXVI.Que outras obras escreveu Orígenes........................ ................................................141

XXXVII.Da discórdia dos árabes......................................... ................................................141

XXXVIII.Da heresia dos helcesaítas.................................... ................................................141

XXXIX.Dos tempos de Décio.............................................. ................................................142

XL.        Do acontecido a Dionísio........................................ ................................................142

XLI.       Dos que sofreram martírio na mesma Alexandria... ................................................143

XLII.     De outros mártires mencionados por Dionísio........ ................................................145

XLIII.   De Novato, sua conduta e sua heresia..................... ................................................146

XLIV.   Relato de Dionísio acerca de Serapion.................... ................................................148

XLV.    Carta de Dionísio a Novato..................................... ................................................149

XLVI.   Das outras cartas de Dionísio.................................. ................................................149

 

Livro VII

  1. Da perversidade de Décio e de Galo...................... ................................................151
  2. Os bispos de Roma nos tempos de Décio e de Galo ................................................151
    1. De como Cipriano, com seus bispos, foi o primeiro a sustentar a opi­nião de

              que deveriam ser purificados pelo batismo os que se conver­tiam do erro herético..151

IV          Quantas cartas Dionísio compôs sobre este assunto................................................151

  1. Da paz depois da perseguição................................. ................................................151
  2. Da heresia de Sabelio.............................................. ................................................152

VII         Do abominável erro dos hereges, da visão que Deus enviou a Dionísio e da regra

              eclesiástica que este havia recebido...........................................................................152

VIII                               Da heterodoxia de Novato...................................... .................................................153

IX                                         Do ímpio batismo dos hereges ................................ .................................................153

X           De Valeriano e sua perseguição............................... .................................................154

  1. Do que ocorreu a Dionísio e aos do Egito na perseguição.........................................155
  2. Dos que morreram mártires em Cesaréia da Palestina...............................................158
  3. Da paz em tempos de Galieno................................. ..................................................158
  4. Os bispos que floresceram naquele tempo............... .................................................158
  5. De como em Cesaréia morreu mártir Marino........... .................................................158
  6. A história de Astirio................................................ .................................................159

XVII....................................................................................... .................................................159

X VIII.   Dos sinais da magnificência de nosso Salvador existentes em Paneas........................159

  1. Do trono de Tiago................................................... .................................................160
    1. Das "cartas festivas" de Dionísio, nas quais fixa também um cânon sobre a

              Páscoa...................................................................... .................................................160

  1. Do que aconteceu em Alexandria............................ .................................................160
  2. Da doença que sobreveio em Alexandria................ .................................................161
  3. Do império de Galieno............................................ .................................................162
  4. De Népos e seu cisma.............................................. .................................................163
  5. Sobre o Apocalipse de João..................................... .................................................164
  6. Das cartas de Dionísio............................................. .................................................166
  7. Sobre Paulo de Samosata e a heresia que suscitou em Antioquia..............................167

XXVIII.Os bispos ilustres que eram célebres naquele tempo .................................................167

XXIX.   De como se rebateu Paulo e este foi excomungado..................................................167

XXX...................................................................................... .................................................168

  1. Da heterodoxa perversão dos maniqueus, iniciada precisamente então........................170
    1. Dos varões eclesiásticos que se distinguiram em nosso tempo e quais deles

              viveram até o ataque às igrejas................................ .................................................171

 

LIVRO VIII

  1. Da situação anterior à perseguição de nossos dias.. ................................................176
  2. Da destruição das igrejas......................................... ................................................177

III          Do modo de conduzir-se dos que combateram na perseguição.................................177

  1. Dos mártires de Deus dignos de serem celebrados, como encheram cada lugar

com sua memória depois de cingir-se variadas coroas em defesa da religião..........178

V           Dos mártires de Nicomedia..................................... ................................................178

VI          Dos mártires das casas imperiais............................. ................................................179

VII         Dos mártires egípcios da Fenícia............................ ................................................180

  1. Dos mártires do Egito.............................................. ................................................181
  2. Dos mártires de Tebaida.......................................... ................................................181
  3. Informes escritos do mártir Fileas acerca do ocorrido em Alexandria......................182
  4. Dos mártires da Frígia.............................................. ................................................183
    1. De muitíssimos outros, homens e mulheres, que combateram de diver­sas maneiras..183
    2. Dos presidentes das igrejas, que por meio de seu sangue mostraram a verdade da

              religião de que eram embaixadores.......................... ................................................185

  1. Do caráter dos inimigos da religião.......................... ................................................186
  2. Do acontecido aos de fora....................................... ................................................188
  3. Da mudança e melhora da situação.......................... ................................................188
  4. Da palinódia dos soberanos..................................... ................................................189

 

Livro IX

  1. Da fingida distensão................................................ ................................................192
  2. Da posterior piora.................................................... ................................................193
  3. Da estátua recém-erigida em Antioquia.................. ................................................193

IV                    Das decisões votadas contra nós............................. ................................................193

V                       Das "Memórias" fingidas......................................... ................................................194

  1. Dos que neste tempo sofreram martírio................... ................................................194
  2. Do edito contra nós afixado nas colunas................. ................................................195
  3. Dos acontecimentos que seguiram entre fome, peste e guerras................................196
    1. Da morte catastrófica dos tiranos e palavras que pronunciaram antes de morrer....198
    2. Da vitória dos imperadores amigos de Deus........... ................................................200
    3. Da destruição final dos inimigos da religião........... ................................................202

 

Livro X

  1. Da paz que Deus nos outorgou............................... ................................................205
  2. Da restauração das igrejas....................................... ................................................205
  3. Das dedicações em todo lugar................................ ................................................206

IV                    Panegírico ante o esplendor de nossos assuntos...... ................................................206

V                       Cópias das leis imperiais referentes aos cristãos...... ................................................216

VI.              ........................................................................... ................................................219

  1. Da imunidade dos clérigos ..................................... ................................................219
  2. Da posterior perversidade de Licínio e de sua morte...............................................220
    1. Da vitória de Constantino e do que este permitiu aos súditos do poder romano........222

 


 


 

 

 

 

 

 

 

LIVRO I

 

I

(Propósito da obra)

  1. 1.           É meu propósito consignar as sucessões dos santos apóstolos e os tempos transcorridos desde nosso Salvador até nós; o número e a magnitude dos feitos registrados pela história eclesiástica e o número dos que nela se sobressaíram no governo e presidência das igrejas mais ilustres, assim como o número daqueles que em cada geração, de viva voz ou por escrito, foram os embaixadores da palavra de Deus; e também quantos, quais e quando, absorvidos pelo erro e levando ao extremo suas fantasias, proclamaram publicamente a si mesmos introdutores de um mal-chamado saber[1] e devastaram sem piedade, como lobos cruéis[2], o rebanho de Cristo;
  2. 2.           e mais, inclusive as desventuras que se abateram sobre toda a nação judia depois que concluíram sua conspiração contra nosso Salvador, assim como também o número, o caráter e o tempo dos ataques dos pagãos contra a divina doutrina, e a grandeza de quantos por ela, segundo a ocasião, enfrentaram o combate em sangrenta tortura; também os martírios de nosso próprio tempo e a proteção benévola e propícia de nosso Salvador. Ao empreender a obra não tomarei outro ponto de partida que o princípio dos desígnios de nosso Salvador e Senhor Jesus, o Cristo de Deus.

3. Mas, por isso mesmo, a obra pede a compreensão benevolente para mim, que declaro ser superior a nossas forças apresentar acabado e inteiro o prometido, posto que somos até agora os primeiros a abordar o tema, como quem enfrenta um caminho deserto e sem pistas. Rogamos ter a Deus como guia e o poder do Senhor como colaborador, porque de homens que nos tenham precedido por este mesmo caminho, na verdade, não conseguimos encontrar uma simples pegada; apenas, se tanto, pequenos indícios através dos quais, cada um a sua maneira, nos deixaram como herança relatos parciais dos tempos transcorridos e de longe nos estendem como tochas suas próprias palavras; desde lá em cima, como de uma atalaia distante, nos chamam e nos mostram por onde se deve caminhar e por onde devemos encaminhar os passos da obra sem erro e sem perigo.

4.  Para tanto nós, depois de reunir o que achamos de aproveitável para nosso tema daquilo que estes autores mencionam aqui e ali, e colhendo, como de um prado espiritual, as frases oportunas dos velhos autores, tentaremos dar corpo a uma trama histórica e estaremos satisfeitos por poder preservar do esquecimento as sucessões, se não de todos os apóstolos de nosso Salva­dor, ao menos dos mais importantes nas Igrejas mais ilustres que ainda hoje são lembradas.

5.   Acredito que é de toda forma necessário que me ponha a trabalhar este tema, pois não sei de nenhum escritor eclesiástico até hoje que se tenha preocupado com este gênero literário. Espero ainda que se mostre utilíssimo para todos quantos se ocupem em adquirir uma sólida instrução histórica.

6.   Já anteriormente, nos Cânones cronológicos por mim redigidos, compus um resumo de tudo isso, ainda assim, na presente obra lançar-me-ei a uma exposição mais completa.

7.   E começarei, como disse, pelas disposições e a teologia de Cristo, que em elevação e grandeza excedem ao homem.

8.   Já que, efetivamente, quem se disponha a escrever as origens da história eclesiástica deve necessariamente começar por remontar-se à primeira dis­posição de Cristo mesmo - pois foi d'Ele mesmo que tivemos a honra de receber o nome - mais divina do que possa aparecer ao vulgo.

 

II

[Resumo da doutrina sobre a preexistência de Nosso Salvador e Senhor,

o Cristo de Deus, e da atribuição da divindade]

  1. 1.            Sendo a índole de Cristo dupla: uma, semelhante à cabeça do corpo, e por esta o reconhecemos como Deus, e outra, comparável aos pés, mediante a qual, e para nossa salvação ele se revestiu de homem, sujeito ao mesmo que nós, nossa exposição a seguir será perfeita se iniciarmos o discurso de toda sua história partindo dos pontos principais e dominantes. Deste modo, a anti­güidade e o caráter divino dos cristãos ficará patente aos olhos de todos que pensam que [o cristianismo] é algo novo, estranho, de ontem e não de antes.
  2. 2.     Nenhum tratado poderia bastar para explicar em pormenores a própria subs­tância e natureza de Cristo, por isso o Espírito divino diz: Sua linhagem, quem a narrará?[3]; pois na verdade ninguém conheceu o Pai senão o Filho, e ninguém conheceu alguma vez ao Filho, segundo sua dignidade, se não o próprio Pai que o engendrou.[4]
  3. 3.            E quem, a não ser o Pai, poderia conceber sem impureza a luz que é anterior ao mundo e a sabedoria inteligente e substancial que precedeu aos séculos,[5]o Verbo vivente no Pai e que desde o princípio é Deus, o primeiro e único que Deus engendrou antes de toda a criação e de toda a produção de seres visíveis e invisíveis, o general do exército espiritual e imortal do céu, o anjo do grande conselho, o servidor do pensamento inefável do Pai, o fazedor de todas a coisas junto ao Pai, a causa segunda de tudo depois do Pai, o Filho de Deus, genuíno e único, o Senhor, o Deus e Rei de todos os seres, que recebeu do Pai a autoridade soberana e a força, junto com a divindade, o poder e a honra? Porque, em verdade, segundo o que dizem d'Ele os miste­riosos ensinamentos das Escrituras: No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi feito.[6]
    1. 4.             E isto mesmo que ensina o grande Moisés, como o mais antigo dos profe­tas, ao descrever, sob a inspiração do espírito divino, a criação e a ordena­ção do universo: o criador e fazedor do universo cedeu a Cristo e apenas a Cristo, seu divino e primogênito Verbo, o fazer os seres inferiores; e com Ele o vemos conversando acerca da formação do homem; Disse também Deus: Façamos o homem à nossa imagem e à nossa semelhança?[7]
    2. 5.             Fiador desta sentença é outro profeta, ao falar assim de Deus em certa pas­sagem de seus hinos: Pois ele falou, e foi feito; ele ordenou, e foi criado.[8]Introduz aqui o Pai e criador dispondo com gesto régio, na qualidade de soberano absoluto, e o Verbo divino, não outro que o mesmo que nos foi anunciado, como segundo depois d'Ele e ministro executor das ordens paternas.
    3. 6.      A este já desde o alvorecer da humanidade, todos quantos nos foi dito que sobressaíram por sua retitude e sua religiosidade: os companheiros do grande servidor Moisés, e antes dele Abraão, o primeiro, assim como seus filhos e todos que se mostraram justos e profetas, ao contemplá-lo com os olhos límpidos de sua inteligência, o reconheceram e renderam-lhe o culto devi­do como o Filho de Deus.
    4. 7.             E Ele mesmo, sem desviar em nada de sua piedade para com o Pai, tornou-se para todos o mestre do conhecimento do Pai. E assim lemos que o Senhor Deus foi visto por Abraão, que estava sentado no carvalhal de Manré, sob a forma de um homem comum.[9] Abraão se prostra de pronto e, ainda que o olhe com seus olhos de homem, ainda assim o adora como Deus, suplica-lhe como Senhor e confessa saber de quem se tratava, ao dizer textualmen­te: Senhor, tu que julgas toda a terra, não vais fazer justiça?[10]

8. Porque, se nenhuma razão pode admitir que a substância não criada e imutável de Deus todo-poderoso se transforme na forma de homem, nem que com a aparência de homem criado engane os olhos dos que o vêem, nem que a Escritura forje enganosamente tais coisas, um Deus e Senhor que julga toda a terra e faz justiça, e que é visto sob a aparência de homem, nem se permitindo dizer que se trata da causa primeira do universo, que outro poderia ser proclamado como tal, senão seu único e preexistente Verbo? Sobre ele também se diz nos salmos: Mandou seu Verbo e os sanou e os livrou de sua corrupção[11].

  1. 9.             Moisés o proclama claramente segundo Senhor depois do Pai quando diz: Fez o Senhor chover enxofre e fogo, da parte do Senhor sobre Sodoma e Gomorra[12]. Também a Sagrada Escritura o proclama Deus quando apareceu a Jacó na figura de um homem e falou a ele dizendo: Já não te chamarás Jacó, e sim, Israel, pois lutaste com Deus[13], e então Jacó chamou àquele lugar "Visão de Deus", dizendo: Porque vi Deus face a face, e a minha vida se salvou[14].
  2. 10.      E não se pode supor que estas aparições divinas mencionadas sejam de anjos inferiores e servidores de Deus, pois quando algum destes aparece aos homens, não se cala a Escritura, mas chama-os por seu nome, não Deus nem sequer Senhor, mas anjos, como é fácil provar com incontáveis passagens.
  3. 11.      E a este Verbo, Josué, sucessor de Moisés, depois de havê-lo contemplado não de outra maneira que em forma e figura de homem também, chama-o príncipe do exército de Deus[15], como fazendo-o chefe dos anjos e arcanjos do céu e dos poderes superiores, e como sendo poder e sabedoria do Pai[16]e a quem foi confiado o segundo posto do reinado e do principado sobre todas as coisas.
    1. 12.     Porque está escrito: Estando Josué perto de Jericó, levantando os olhos, viu diante dele um homem que trazia na mão uma espada nua; chegou-se Josué a ele, e disse-lhe: És tu dos nossos, ou dos nossos adversários? Respondeu ele: Eu sou o general do exército do Senhor; acabo de chegar. Então Josué se prostrou sobre o seu rosto na terra e disse-lhe: Que diz meu Senhor ao seu servo ? Respondeu o general do exército do Senhor a Josué: Descalça as sandálias de teus pés, porque o lugar em que estás é santo[17].

13. De onde, partindo das próprias palavras, observarás que este é o mesmo que se revelou a Moisés, pois efetivamente a Sagrada Escritura refere-se a ele nos mesmos termos: Vendo o Senhor que ele se aproximava para ver, o Senhor, do meio da sarça, o chamou, e disse: Moisés, Moisés! Ele respondeu:

Eis-me aqui. E disse o Senhor: não te chegues para cá; tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra santa. E lhe disse: Eu sou o Deus de teu pai, Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó[18].

14. E que ao menos há uma substância anterior ao mundo, viva e subsistente, que serviu de ajuda ao Pai e Deus do universo na criação de todos os seres, chamada Verbo de Deus e Sabedoria. Além das provas expostas, nos foi dado ouvi-lo da própria Sabedoria em pessoa que, pela boca de Salomão, nos inicia claramente em seu próprio mistério: Eu, a Sabedoria, plantei minha lenda no conselho e invoquei o conhecimento e a inteligência; por meu intermédio reinam os reis, e os potentados administram justiça; por meu intermédio os grandes são engrandecidos; e por meu intermédio os soberanos dominam a terra[19].

15. Ao que acrescenta: O Senhor me criou como princípio de seus caminhos em suas obras, antes dos séculos assentou meus fundamentos. No princípio, antes que fizesse a terra, antes que brotassem as fontes das águas, antes de firmar os montes e antes de todos os outeiros, engendrou a mim. Quando preparava os céus, eu estava com Ele; e quando tornava perenes os mananciais que estão sob o céu, eu estava com Ele a dirigir. Eu me sentava ali onde a cada dia Ele se agradava e me encantava estar diante d'Ele em toda ocasião, quando Ele se congratulava por ter terminado o universo[20].

16. Brevemente pois, está exposto que o Verbo divino existia antes de tudo, e também a quem apareceu, já que não o fez a todos.

17. Mas por que não foi isto ensinado antes, antigamente, a todos os homens e a todas as nações, assim como é agora? Talvez possa explicá-lo esta resposta: a vida primitiva dos homens era incapaz de encontrar um lugar para o ensinamento de Cristo, todo sabedoria e virtude.

18. De fato, logo no início, depois de seu primeiro tempo de vida feliz, o primeiro homem se afastou dos mandamentos divinos e lançou-se nesta vida mortal e perecível, trocando as delícias divinas do começo por esta terra maldita.

E seus descendentes povoaram toda nossa terra, e com exceção de uns poucos aqui e ali, foram manifestamente degenerando e chegaram a ter uma conduta própria de animais e uma vida intolerável[21].

19. Não lhes ocorria sequer pensar em cidades, nem em normas, nem em artes, nem em ciências. De leis e juízos, assim como da virtude e da filosofia não

conheciam nem o nome. Como gente rude e selvagem, levavam vida nômade por lugares desertos. Com a excessiva maldade a que livremente se entregaram, corrompiam o raciocínio natural e toda semente de inteligência e j suavidade próprias da alma humana. E a tal ponto se entregavam sem reservas a toda iniqüidade, que por vezes se corrompiam mutuamente, às vezes se matavam uns aos outros, ocasionalmente praticavam a antropofagia, levaram sua ousadia até a combater contra Deus e travar estas guerras de gigantes por todos conhecidas, e pensaram em fortificar a terra contra o céu e preparar-se, em seu louco desvario, para fazer guerra àquele que está sobre tudo.

  1. 20.  Aos que levavam tal vida, Deus, que tudo controla, perseguiu com inun­dações e incêndios devastadores, como se fossem uma floresta selvagem espalhada pela terra, e os abateu com fomes contínuas, com pestes e guerras, e ainda fulminando-os do alto, como se com estes remédios tão amargos tentasse eliminar uma espantosa e gravíssima enfermidade das almas.
  2. 21.  Então pois, quando estavam realmente a ponto de chegar ao estupor da maldade, como o de uma tremenda embriaguez que obscurecesse e afundas­se em trevas as almas de quase todos os homens, a Sabedoria de Deus, sua primeira e primogênita criatura, o próprio Verbo preexistente, por um excesso de amor aos homens, se manifestou aos seres inferiores, algumas vezes por meio de visões de anjos e outras por si mesmo, como poder salvador de Deus, a alguns poucos dos antigos varões amigos de Deus, e não de outra maneira que em forma de homem, a única em que poderia aparecer para eles.
  3. 22.  Mas uma vez que, por meio destes, a semente da religião se estendeu a uma multidão de homens, e surgiu dos primeiros hebreus da terra uma nação inteira que se apegou à religião, Deus, por meio do profeta Moisés, entregou a estes, como a homens que continuavam em seu antigo estilo de vida, imagens e símbolos de certo misterioso sábado e da circuncisão, e iniciou-os em outros preceitos espirituais, mas não revelou-lhes o próprio mistério.
  4. 23.  Mas a sua lei ficou famosa, e como uma brisa perfumada difundiu-se entre os homens. Então, a partir deles, as mentes da maioria dos povos se foi suavizando por influência de legisladores e filósofos daqui e d'acolá, e a própria condição de animais rudes e selvagens foi-se transformando em suavidade, ao ponto de chegarem a uma paz profunda, amizade e trato de uns com os outros. Pois bem, assim é que finalmente, no início do império romano e por meio de um homem que em nada diferia de nossa natureza quanto à substância corporal, se manifestou a todos os homens e a todas as nações espalhadas pelo mundo considerando-os preparados e dispostos já a receber o conhecimento do Pai, aquele mesmo mestre de virtudes em pessoa, o colaborador do Pai em toda boa obra, o divino e celestial Verbo de Deus, e tão grandes coisas realizou e padeceu quantas se achavam nas profecias; estas haviam proclamado de antemão que um homem e Deus ao mesmo tempo viria a habitar nesta vida e realizaria maravilhas e seria reconhecido como mestre da religião de seu Pai para todas as nações; também haviam proclamado a maravilha de seu nascimento, a novidade de seus ensinamentos, suas obras admiráveis e, como se isto fosse pouco, a forma de sua morte, sua ressurreição de entre os mortos e sobretudo sua divina restauração nos céus.
  5. 24.     Quanto ao reinado final do Verbo, o profeta Daniel, contemplando-o sob influência do espírito divino, sentiu-se divinamente inspirado e descreveu assim, bem ao estilo humano, sua visão: Porque eu - disse - estava olhando até que foram colocados tronos, e um ancião de muitos dias se assentou. E sua roupa era alva como a neve, e seu cabelo como lã limpa; seu trono era uma chama de fogo, e suas rodas, fogo ardente. Um rio de fogo brotava diante d'Ele e milhares de milhares o serviam e miríades e miríades estavam diante d'Ele. Sentou-se o tribunal e se abriram os livros[22].
  6. 25.     Após poucas linhas continua dizendo: Eu estava olhando, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do homem que dirigiu-se ao Ancião de muitos dias, e o fizeram chegar até ele. Foi-lhe dado domínio e glória e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, não passará, e o seu reino não será destruído[23].
  7. 26.     Pois bem, está claro que todas estas coisas não poderiam referir-se a outro que a nosso Salvador, ao Deus-Verbo, que no princípio estava em Deus e que, por causa de sua encarnação nos últimos tempos, foi chamado Filho do homem.

27. Mas fiquemos contentes com o que foi dito, para a presente obra, pois em comentários especiais já reuni as profecias que tangem a Jesus Cristo, nosso Salvador, e em outros escritos dei uma melhor demonstração de tudo que expusemos acerca d'Ele.

 

III

(De como os nomes de Jesus e de Cristo já eram conhecidos desde a antigüidade e honrados pelos profetas inspirados por Deus)

  1. 1.  É chegado o momento de demonstrar que também entre os antigos profetas, amigos de Deus, já se honravam os nomes de Jesus e de Cristo.
  2. 2.      Moisés mesmo foi o primeiro a conhecer o nome de Cristo como o mais augusto e glorioso quando fez entrega de figuras, símbolos e imagens misteriosos das coisas do céu, conforme a voz que lhe dizia: Vê pois, farás todas as coisas segundo o modelo que te foi mostrado no monte[24]; e celebrando ao sumo sacerdote de Deus tanto quanto é possível a um homem, proclama-o "Cristo"[25]. A esta dignidade do supremo sacerdócio, que para ele ultrapassa a qualquer dignidade dos homens, sobre a honra e a glória, adiciona o nome de Cristo. Portanto, ele conhecia o caráter divino de Cristo.
  3. 3.             Mas o mesmo Moisés, por obra do espírito divino, conhecia de antemão bem claramente também o nome de Jesus, considerando-o mesmo digno de um privilégio único. Na verdade, nunca se havia pronunciado este nome entre os homens antes de ser conhecido por Moisés. Este aplica o nome de Jesus pela primeira e única vez àquele que, novamente conforme a figura e o símbolo, ele sabia que viria a sucedê-lo depois de sua morte no comando supremo[26].
  4. 4.      Nunca antes seu sucessor havia usado o nome de Jesus, mas era chamado por outro nome, Ausé, exatamente o que lhe haviam dado seus pais[27]. Moisés deu-lhe o nome de Jesus como um privilégio precioso, muito maior do que o de uma coroa real. Deu-lhe este nome porque, em realidade, o próprio Jesus, filho de Navé, era portador da imagem de nosso Salvador, o único que, depois de Moisés e depois de haver concluído o culto simbólico por ele transmitido, o sucederia no comando da verdadeira e sólida religião.
  5. 5.             E desta maneira Moisés, dando-lhes a maior honra, aplicou o nome de Jesus Cristo nosso Salvador aos dois homens que, segundo ele, mais sobressaíam em virtude e glória sobre todo o povo, a saber, o sumo sacerdote e aquele que haveria de sucedê-lo no comando.
  6. 6.      Está claro também que os profetas posteriores anunciaram a Cristo por seu nome e deram testemunho adiantadamente, não apenas da conspiração do povo judeu que seria levantada contra Ele, mas também do chamamento que Ele faria a todas as nações. Uma vez será Jeremias, quando assim diz: O espírito de nosso rosto, o Cristo Senhor, de quem havíamos dito: "A sua sombra viveremos entre os povos ", caiu preso em sua armadilhas[28]. Outra vez será Davi, que exclama perplexo: Por que se amotinaram as nações e os povos imaginaram planos vãos? Levantaram-se os reis da terra e os príncipes se uniram contra o Senhor e seu Cristo[29]; e logo acrescenta, falando na própria pessoa de Cristo: O Senhor me disse: Tu és meu filho, eu, hoje, te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações em herança e os confins da terra em possessão[30] .
  7. 7.      Mas, deve-se saber que, entre os hebreus, o nome de Cristo não era ornamento apenas dos que estavam investidos do sumo sacerdócio e eram ungidos simbolicamente com óleo preparado, mas também dos reis, que eram ungidos pelos profetas por inspiração divina e faziam deles imagens de Cristo, pois efetivamente estes reis já levavam em si mesmos a imagem do poder real e soberano do único e verdadeiro Cristo, Verbo divino, que reina sobre todas as coisas.

8. Além disso, a tradição nos faz saber igualmente que também alguns profetas foram convertidos em Cristos, figuradamente, por meio da unção com o óleo[31], de forma que todos estes fazem referência ao verdadeiro Cristo, o Verbo divino e celestial, único sumo Sacerdote do universo, único rei de toda a criação e, entre os profetas, único sumo Profeta do Pai.

9. Prova disto é que nenhum dos que antigamente foram ungidos simbolica­mente: nem sacerdotes, nem reis, nem profetas, possuíram tão alto poder de virtude divina como está demonstrado que possuiu Jesus, nosso Salvador e Senhor, o único e verdadeiro Cristo.

  1. 10.      Ao menos nenhum deles, por mais que brilhasse por sua dignidade e por sua honra entre os seus em tantas gerações, deu jamais o nome de cristãos aos seus súditos, aplicando-lhes figuradamente o nome de Cristo. Nem tampouco seus súditos renderam-lhes a honra de culto, nem foi de nenhum deles a disposição de que após a sua morte estivessem preparados para morrer pelo mesmo a quem honravam. E por nenhum deles houve tamanha comoção de todas as nações do vasto mundo. E assim é, que a força do símbolo que havia neles era incapaz de operar como operou a presença da verdade demonstrada através de nosso Salvador.
  2. 11.      Este não tomou de ninguém os símbolos e figuras do sumo sacerdócio, nem descendia, quanto à carne, de família sacerdotal, nem foi elevado à dignidade real por um corpo de guarda composto de homens; nem mesmo foi um profeta igual aos de antigamente nem obteve entre os judeus nenhuma precedência de honra ou de qualquer outro tipo; e, ainda assim, está adornado pelo Pai de todas estas prerrogativas, e não por figura, mas em verdade mesmo.
  3. 12.      Assim, sem ter sido objeto de nada semelhante ao que descrevemos, está proclamado Cristo com mais razão que todos aqueles, e sendo Ele mesmo o único e verdadeiro Cristo de Deus, encheu o mundo inteiro de cristãos, isto é, de seu nome realmente venerável e sagrado. Já não são figuras e imagens o que Ele entrega a seus seguidores, mas as próprias virtudes em sua pureza e uma vida no céu com a própria doutrina da verdade.

13. E a unção que recebeu não foi preparada com substâncias materiais, mas algo divino pelo Espírito de Deus, por sua participação na divindade incriada do Pai. É justamente isto que ensinava Isaías quando clamava, como se o fizesse com a própria voz de Cristo: O Espírito do Senhor está sobre mim, por isto me ungiu: enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres, a apregoar aos cativos a liberdade e aos cegos o ver de novo[32].

  1. 14.     E não apenas Isaías. Também Davi dirige-se ao mesmo Cristo e lhe diz: Teu trono é, ó Deus, eterno e para sempre; o cetro do teu reino, cetro de retidão. Amaste a justiça e odiaste a maldade, por isso te ungiu Deus, o teu Deus, com óleo de alegria, mais que aos teus companheiros[33]. Aqui, o primeiro versículo do texto o chama Deus; o segundo honra-o com o cetro real.
  2. 15.     Em continuação, depois de seu poder divino e real, mostra o mesmo Cristo, em terceiro lugar, ungido não com o óleo que procede de matéria física, mas com o óleo divino da alegria, representando sua excelência, sua superio­ridade e sua diferença em relação aos antigos, ungidos mais corporeamente e figuradamente.
  3. 16.     Em outra passagem, o mesmo Davi revela as coisas que se referem a Cristo com estas palavras: Disse o Senhor ao meu senhor: Senta-te à minha destra enquanto ponho teus inimigos sob os teus pés[34]. E também: Do meu seio te criei antes do alvorecer. Jurou o Senhor e não se arrependerá: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque[35].

17. Pois bem, este Melquisedeque aparece nas Sagradas Escrituras como sacerdote do Deus Altíssimo[36] sem que fosse assinalado com algum óleo preparado e sem que fosse aparentado com o sacerdote hebreu por sucessão hereditária alguma. Por isso é que nosso Salvador é proclamado com juramento Cristo e Sacerdote segundo sua ordem e não segundo a de outros, que haviam recebido símbolos e figuras.

  1. 18.     E por isso que a história tampouco nos transmitiu que Cristo tivesse sido ungido corporeamente entre os judeus, nem que tivesse nascido de uma tribo sacerdotal, pelo contrário, que recebeu seu ser de Deus mesmo antes do alvorecer, isto é, antes da criação do mundo, e que tomou posse de um sacerdócio imortal e duradouro pela eternidade sem fim.

19. Uma prova sólida e patente desta unção incorpórea e divina é que, de todos os homens de seu tempo e dos que se seguiram até hoje, unicamente Ele, entre todos e no mundo inteiro, foi chamado e proclamado Cristo; somente a Ele reconhecem sob este nome, dão testemunho d'Ele e se recordam d'Ele todos, tanto gregos quanto bárbaros; e até hoje seus seguidores, espalhados por toda a terra habitada, seguem dando-lhe honras de rei, honrando-o mais do que aos profetas e glorificando-o como o verdadeiro e único sumo Sacerdote de Deus, e acima de tudo isto, por ser Verbo de Deus, preexistente e nascido antes de todos os séculos, e por haver recebido do Pai as honras divinas, adoram-no como a Deus.

20. E o que é mais extraordinário: que aqueles que a Ele estamos consagrados não somente o honramos com a voz e com palavras, mas também com a plena disposição da alma, ao ponto de estimar mais o martírio por Ele do que nossa própria vida.

 

IV

(De como o caráter da religião anunciada por Cristo a todas as nações não era novo nem estranho)

1. É bastante o que foi dito, para iniciar minha narração, para que ninguém pense que nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo é algo novo devido a sua época de vida em carne mortal. Mas, para que ninguém possa ainda supor que sua doutrina é nova e estranha, como se tivesse sido criada por um homem recente e em nada diferente dos demais homens, explicaremos também brevemente este ponto.

2. Não faz muito tempo, efetivamente, que brilhou sobre todos os homens a presença de nosso Salvador Jesus Cristo, e um povo, novo no conceito de todos, fez sua aparição assim, de repente, conforme as inefáveis pre­dições dos tempos; um povo não pequeno, nem fraco, nem localizado em algum recanto da terra, mas ao contrário, o mais numeroso e o mais reli­gioso de todos os povos, indestrutível e invencível por ser em todo momento objeto do favor divino, o povo ao qual todos honram com o nome de Cristo.

3. Um dos profetas que contemplou antecipadamente com os olhos do Espírito de Deus a futura existência deste povo encheu-se de tal assombro que se pôs a gritar: Quem viu semelhante coisa? E quem falou assim? Nasce uma terra em um dia e nasce um povo de uma vez![37] E o mesmo profeta faz também alusão em outro lugar ao nome futuro deste povo, quando diz: E os meus servos serão chamados por um nome novo, que será bendito sobre a terra[38].

4. Mas se está claro que nós somos novos, e que este nome de cristãos só foi realmente conhecido entre todas as nações recentemente, ainda assim e apesar disto demonstraremos aqui que nossa vida e o caráter de nossa conduta, adaptada aos próprios preceitos da religião, não é invenção nossa de ontem, mas que, por assim dizer, manteve-se em vigor desde a primeira criação do homem, graças ao bom senso daqueles antigos varões amigos de Deus.

  1. 5.             O povo hebreu não é um povo novo, pelo contrário, é sabido por todos que os homens sempre o reconheceram por sua antigüidade. Pois bem, seus documentos e escritos mencionam alguns homens antigos, escassos e espaçados no tempo, é certo, mas em troca, excelentes em religiosidade, em justiça e em todas as demais virtudes. Destes, alguns viveram antes do dilúvio, outros depois. E dentre os filhos e descendentes de Noé destaca-se especialmente Abraão, de quem os filhos dos hebreus se gabam de ter por autor e primeiro pai.
  2. 6.             Se, remontando-se desde Abraão até o primeiro homem, alguém dissesse que todos estes varões, cuja justiça está bem documentada, foram cristãos, ainda que não por nome mas por suas obras, não estaria enganado.
  3. 7.             Porque o que este nome significa é que o cristão, devido ao conhecimento de Cristo e de sua doutrina, sobressai por sua sobriedade, por sua justiça, pela firmeza de seu caráter, pelo valor de sua virtude e pelo reconhecimento de um só e único Deus de todas as coisas, e a atitude daqueles homens em relação a estas coisas em nada era inferior à nossa.
  4. 8.      Não se preocuparam com a circuncisão corporal, como tampouco nós; nem da guarda do sábado, como tampouco nós; nem da abstenção destes ou daqueles alimentos, nem de afastar-se de tantas outras coisas, como Moisés deixou por tradição para que se cumprissem como símbolos, e que nós, os cristão de agora, tampouco guardamos. Em troca, claramente conheceram ao Cristo de Deus que, como demonstramos antes, apareceu a Abraão, tratou com Isaac, falou a Israel e conversou com Moisés e com os profetas posteriores.
  5. 9.             Por isso poderás ver que aqueles amigos de Deus são também dignos do sobrenome de Cristo, conforme a sentença que diz sobre eles: Não toqueis a meus Cristos, nem façais mal a meus profetas[39].

 

  1. 10.     Daí se percebe claramente a necessidade de crer que aquela religião, a primeira, a mais antiga e mais venerável de todas, tesouro daqueles mesmos varões amigos de Deus e companheiros de Abraão, é a mesma que recente­mente foi anunciada a todos os povos pelos ensinamentos de Cristo.
  2. 11.        Talvez se possa alegar que Abraão recebeu muito tempo depois o manda­mento da circuncisão, mas também se proclama e se dá testemunho de sua justificação por sua fé, anterior a este mandamento, pois diz assim a divina Escritura: E creu Abraão em Deus, e foi-lhe imputado para justiça[40].

12.E a ele, assim justificado, mesmo antes da circuncisão, Deus, que lhe apareceu (e este Deus era o próprio Cristo, o Verbo de Deus), comunicou um oráculo a respeito dos que em tempos futuros seriam justificados do mesmo modo que ele; os termos da promessa são: E em ti serão benditos todos os povos da terra[41]; e também: E se fará um povo grande e numeroso, e nele serão benditos todos os povos da terra[42].

13. Agora pois, pode-se estabelecer que isto foi cumprido em nós, porque

efetivamente Abraão foi justificado por sua fé no Verbo de Deus, o Cristo que lhe apareceu, depois que deu adeus às superstições de seus pais e ao erro de sua vida anterior, e após confessar um só Deus, que está sobre todas as coisas, e de honrá-lo com obras de virtude, não com as obras da lei de Moisés, que veio mais tarde. E sendo assim, a ele foi dito que todas as tribos da terra e todos os povos seriam benditos nele.

14. Pois bem, nos dias de hoje esta mesma forma de religião de Abraão só é praticada, com obras mais visíveis do que as palavras, entre os cristãos espalhados por todo o mundo habitado.

15. Portanto, o que poderia ainda impedir-nos de reconhecer uma única e idêntica vida e forma de religião para nós, os que procedemos de Cristo, e para aqueles antigos amigos de Deus? Deste modo teremos demonstrado que a prática da religião que nos foi transmitida pelo ensinamento de Cristo não é nova nem estranha, mas, para dizermos a verdade, a primeira e única verdadeira. E baste-nos isto.

 

V

(De quando Cristo se manifestou aos homens)

1. Bem, depois deste preâmbulo, necessário para a história eclesiástica a que me propus, só nos resta começar nossa espécie de viagem, partindo da mani­festação de nosso Salvador em sua carne e depois de invocar a Deus, Pai do Verbo, e ao mesmo Jesus Cristo, nosso Salvador e Senhor, Verbo celestial de Deus, como nossa ajuda e nosso colaborador na verdade da exposição.

2. Corria pois o ano 42 do reinado de Augusto e o vigésimo oitavo desde a submissão do Egito e da morte de Antonio e de Cleópatra (com a qual se extinguiu a dinastia egípcia dos Ptolomeus), quando nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo nasceu em Belém da Judéia, conforme as profecias a seu respeito[43], nos tempos do primeiro recenseamento, e sendo Quirino governador da Síria[44].

  1. 3.             Este recenseamento de Quirino também é registrado pelo mais ilustre dos historiadores hebreus, Flavio Josefo, ao relatar outros feitos referentes à seita dos galileus, surgida naquela ocasião, e a qual também é mencionada pelo nosso Lucas nos Atos quando diz: Depois deste se levantou Judas a, galileu, nos dias do recenseamento, e arrastou o povo atrás de si. Também este pereceu, e todos os que o seguiram se dispersaram[45].
  2. 4.      A estas indicações o mencionado Josefo acrescenta literalmente no livro XVIII de suas Antigüidades o seguinte: "Quirino, membro do senado, homem que havia desempenhado já os outros cargos pelos quais passou, sem omitir um só, até chegar a cônsul e grande por sua dignidade em todos; os demais, assumiu na Síria acompanhado por uns poucos, enviado por César como juiz da nação e censor dos bens."
  3. 5.      E pouco depois diz: "Mas Judas o gaulanita - da cidade chamada Gaula -, tomando consigo a Sadoc, um fariseu, andava instigando à rebelião; dizia que o censo não conduziria a outra coisa que não uma escravidão declarada, e exortava o povo a aferrar-se à liberdade."
  4. 6.      E sobre o mesmo escreve no livro II de suas Histórias da guerra judaica: "Por esse tempo certo galileu, chamado Judas, provocou a rebelião dos habitantes do país, reprovando-lhes a submissão ao pagamento do tributo aos romanos e ao submeter-se a amos mortais além de Deus." Assim escre­veu Josefo.

VI

[De como, segundo as profecias, em seus dias terminaram os reis por linha hereditária que regiam a nação judia e começou a reinar Herodes, o primeiro estrangeiro]

  1. 1.            Foi nesse tempo que assumiu o reinado sobre o povo judeu, pela primeira j vez, Herodes, de família estrangeira, e cumpriu-se a profecia feita por meio de Moisés, que dizia: Não faltará chefe saído de Judá nem governante nascido de sua carne até que chegue aquele para quem está reservado[46], e sinaliza-o como esperança das nações.
  2. 2.     Esta predição efetivamente não havia sido cumprida durante o tempo em que ainda lhes era permitido viver sob governantes de sua própria nação, começando com o próprio Moisés e continuando até o império de Augusto. Nos tempos deste é que pela primeira vez um estrangeiro, Herodes, se vê investido pelos romanos com o governo dos judeus: segundo nos informa Josefo, era idumeu por parte de pai e árabe por parte de mãe. Mas, segundo Africanus - que não era mau historiador —, os que dão informação exata sobre Herodes dizem que Antípatro (este era seu pai) era filho de um certo Herodes de Ascalon, um dos chamados hieródulos[47], que servia no templo de Apolo.

3. Este Antípatro, ainda criança, foi raptado por bandidos idumeus e viveu com eles, porque seu pai, pobre como era, não podia oferecer resgate por ele. Criado em meio a seus costumes, mais tarde firmou amizade com Hircano, sumo sacerdote judeu. Dele nasceu o Herodes dos tempos de nosso Salvador...

4. Tendo pois o reino judeu vindo às mãos de tal pessoa, a expectativa das nações, conforme a profecia, estava também à porta; haviam desaparecido do reino os príncipes e mandatários descendentes por via de sucessão entre si do próprio Moisés.

5. Ao menos tinham reinado antes do cativeiro e da migração para a Babilônia, começando com Saul - o primeiro - e por Davi. E antes dos reis, foram governados por mandatários chamados juízes, que tinham começado também depois de Moisés e de seu sucessor, Josué.

6. Pouco depois do regresso da Babilônia serviram-se ininterruptamente de um regime político de oligarquia aristocrática (eram os sacerdotes que estavam à frente dos assuntos), até que o general romano Pompeu atacou Jerusalém, assaltou-a à força e profanou os lugares santos entrando até a parte mais escondida do templo. E àquele que até esse momento havia se mantido por sucessão hereditária, na qualidade de rei e de sumo sacerdote - chamava-se Aristóbulo - mandou acorrentado a Roma, junto com seus filhos, e entregou o sumo sacerdócio a seu irmão Hircano. A partir daquele momento o povo judeu inteiro tornou-se tributário dos romanos.

7. Desta forma, assim que Hircano, último a quem chegou a sucessão dos sumos sacerdotes, foi levado cativo pelos partos, o senado romano e o imperador Augusto colocaram a nação judia nas mãos de Herodes, o primeiro estrangeiro, como já foi dito.

8. Em seu tempo ocorreu visivelmente a vinda de Cristo e, segundo a profecia, seguiu-se a esperada salvação e vocação dos gentios. A partir desse tempo, efetivamente, os príncipes e mandatários originários de Judá, quero dizer, os que vinham do povo judeu, desapareceram, e em seguida naturalmente viram perturbados também os assuntos do sumo sacerdócio, que até então vinha sendo passado de modo estável de pais a filhos em cada geração.

9. Encontramos importante testemunho de tudo isso em Josefo, que explica como Herodes, assim que os romanos lhe confiaram o reino, deixou de instituir sumos sacerdotes vindos da antiga linhagem, pelo contrário, distribuiu esta honra entre gente sem expressão. E diz ainda que na instituição dos sacerdotes Herodes foi imitado por seu filho Arquelau e depois dele pelos romanos, quando tomaram para si o governo dos judeus.

  1. O mesmo Josefo explica como Herodes foi o primeiro a fechar sob seu próprio selo as vestimentas sagradas do sumo sacerdote, não permitindo mais aos sumos sacerdotes levá-las sobre si, e que o mesmo foi feito por seu sucessor Arquelau, e depois deste pelos romanos.
  2. Tudo o que foi dito sirva também como prova do cumprimento de outra profecia referente à manifestação de Jesus Cristo nosso Salvador. No livro de Daniel[48], a Escritura determina clara e expressamente um número de semanas até o Cristo-príncipe - acerca do que fiz uma exposição detalhada em outra obras - e profetiza que, depois de cumpridas estas semanas, seria extinta por completo a unção entre os judeus. Agora, pois, demonstra-se claramente que também isto se cumpriu com o nascimento de nosso Salva­dor Jesus Cristo. Sirva o dito como exposição necessária para a verdade das datas.

VII

[Da suposta discrepância dos evangelhos acerca da genealogia de Cristo]

  1. 1.            Posto que ao escrever seus evangelhos Mateus e Lucas nos transmitiram[49]genealogias diferentes acerca de Cristo, que para muitos parecem ser discrepantes, e como cada crente, por ignorância da verdade, se esforça por inventar sobre estas passagens, vamos adicionar as considerações sobre este tema que chegaram a nós e que Africanus, mencionado a pouco, recorda em carta a Aristides, acerca da concordância das genealogias nos evangelhos. Refuta as opiniões dos demais como forçadas e mentirosas, e expõe o parecer que recebeu, nestes mesmos termos:
  2. 2.            "Porque, efetivamente, em Israel os nomes das famílias se enumeravam segundo a natureza ou segundo a lei. Segundo a natureza, por sucessão de nascimento legítimo; segundo a lei[50], quando um morria sem filhos e seu irmão os engendrava para conservar seu nome (a razão é que ainda não se havia dado uma esperança clara de ressurreição, e arremedavam a prometida ressurreição futura com uma ressurreição mortal, para que se perpetuasse o nome do falecido).
  3. 3.            Como queira, pois, que os incluídos nesta genealogia uns se sucederam por via natural de pais a filhos, e os outros, ainda que gerados por uns, recebiam o nome de outros, de ambos os grupos se registra a memória: dos que foram gerados e dos que passaram por sê-lo.
  4. 4.            Deste modo, nenhum dos evangelhos engana: enumeram segundo a natu­reza e segundo a lei. De fato, duas famílias, que descendiam de Salomão e de Natã respectivamente, estavam mutuamente entrelaçadas por causa das ressurreições dos que haviam morrido sem filhos, das segundas núpcias e da ressurreição da descendência, de forma que é justo considerar os mes­mos indivíduos em diferentes ocasiões filhos de diferentes pais, dos fictí­cios e dos verdadeiros, e também que ambas genealogias são estritamente verdadeiras e chegam até José por caminhos complicados, mas exatos.
  5. 5.             Mas para que fique claro o que foi dito, vou explicar a transposição das lin­hagens. Quem vai enumerando as gerações a partir de Davi e através de Salomão encontra que o terceiro antes do final é Matã, o qual gerou a Jacó, pai de José [51]. Mas, partindo de Natã, filho de Davi, segundo Lucas[52], também o terceiro para o final é Melqui, pois José era filho de Heli, filho de Melqui.
  6. 6.             Portanto, sendo José nosso ponto de atenção, deve-se demonstrar como é que nos é apresentado como seu pai um ou outro: Jacó, que traz sua linha­gem de Salomão, e Heli, que descende de Natã; e de que modo, primeira­mente os dois, Jacó e Heli, são irmãos; e ainda antes, como é que os pais destes, Matã e Melqui, sendo de linhagens diferentes, aparecem como avós de José.
  7. 7.             Assim é que Matã e Melqui se casaram sucessivamente com a mesma mulher e tiveram filhos, filhos de uma mesma mãe, pois a lei não impedia que uma mulher sem marido - porque este a houvesse repudiado ou porque houvesse morrido - se casasse com outro.
  8. 8.             Pois bem, de Esta (pela tradição era assim que se chamava a mulher), Matã, o descendente de Salomão, foi o primeiro, gerando a Jacó; tendo morrido Matã, casou-se a viúva com Melqui, cuja ascendência remonta a Natã e que, sendo, como dissemos antes, da mesma tribo, era de outra família. Este teve um filho: Heli.
  9. 9.             E assim encontramos que, sendo de duas linhagens diferentes, Jacó e Heli são irmãos por parte de mãe. Morrendo Heli sem filhos, seu irmão Jacó casou-se com sua mulher, e dela teve um terceiro filho, José, o qual, segundo a natureza, era seu (e segundo o texto, pois por isso está escrito: Jacó gerou a José [53]), mas, segundo a lei, era filho de Heli, já que Jacó, sendo seu irmão, suscitou-lhe descendência.

10. Portanto não se tirará autoridade a sua genealogia. Ao fazer a enumeração, o evangelista Mateus diz: Jacó gerou a José; mas Lucas procede ao contrário: O qual era, segundo se cria (porque também acrescenta isso), filho de José, que era filho de Heli, filho de Melqui[54]. Não seria possível expressar mais corretamente o nascimento segundo a lei: vai remontando um a um até Adão, que foi de Deus[55], e até o final omite o "gerou", para não aplicá-lo a este tipo de paternidade.

  1. 11.     E isto não está sem provas nem é improvisado. Efetivamente, os parentes carnais do Salvador, por geração ou simplesmente pelo ensino, mas sendo verdadeiros em tudo, transmitiram também o que segue. Uns ladrões idumeus assaltaram Ascalom, cidade da Palestina; de um templo de Apolo, construído diante dos muros, levaram cativo, junto com os despojos, a Antípatro, filho de certo hieródulo chamado Herodes. Não podendo o sacerdote pagar um resgate por seu filho, Antípatro foi educado nos costumes dos idumeus, e mais tarde fez amizade com Hircano, o sumo sacerdote da Judéia.

12. Logo tornou-se embaixador junto a Pompeu em favor de Hircano, para quem conseguiu o reino devastado por seu irmão Aristóbulo; e ele mesmo prosperou muito, pois logo conseguiu o título de epimeletés da Palestina[56]. A Antípatro, assassinado por inveja de sua grande fortuna, sucedeu seu filho Herodes, que mais tarde, por decisão de Antônio e Augusto e por decreto senatorial, reinaria sobre os judeus. Este teve como filhos Herodes e os outros tetrarcas. Todos estes dados coincidem com as histórias dos

gregos.

13.   Além disso, estando inscritas até então nos arquivos as famílias hebréias, inclusive as que remontavam aos prosélitos, como Aquior[57] o amonita, Rute a moabita[58] e os que saíram do Egito misturados aos hebreus[59], Herodes, por não ter nada com a raça dos israelitas e magoado pela consciência de seu baixo nascimento, fez queimar os registros de suas linhagens, acreditando que passaria por nobre, já que outros também não poderiam remontar sua linhagem, apoiados em documentos públicos, aos patriarcas ou aos prosélitos ou aos chamados "geyoras", os estrangeiros misturados.

14. Em realidade, uns poucos mais cuidadosos, que tinham para si registros privados ou que se lembravam dos nomes ou haviam-nos copiado, se ufanavam de ter a salvo a memória de sua nobreza. Ocorreu que entre estes estavam aqueles de que falamos antes, chamados despósinoi por causa de seu parentesco com a família do Salvador e que, desde as aldeias judias de Nazaré e Cocaba, visitaram o resto do país e explicaram a referida genealogia, começando pelo Livro dos dias, até onde alcançaram.

  1. 15.     Seja assim ou de outro modo, ninguém poderia encontrar uma explicação mais clara. Eu ao menos penso assim, e assim também todo aquele que tenha boa vontade. Ainda que não esteja comprovada, ocupemo-nos dela, porque não é possível expor outra melhor e mais clara. Em todo caso, o Evangelho diz inteiramente a verdade."
  2. 16.     E ao final da mesma carta adiciona o seguinte: "Matã, da linhagem de Salomão, gerou a Jacó. Morto Matã, Melqui, o da linhagem de Natã, gerou da mesma mulher a Heli. Portanto Heli e Jacó são irmãos uterinos. Morto Heli sem filhos, Jacó dá-lhe uma descendência gerando a José, filho seu segundo a natureza, mas de Heli segundo a lei. Assim é que José era filho de ambos". Assim diz Africanus.
  3. 17.     Estabelecida desta maneira a genealogia de José, também Maria aparece junto a ele, obrigatoriamente, como sendo da mesma tribo, já que, ao menos segundo a lei de Moisés, não era permitido misturar-se às outras tribos[60], pois é prescrita a união em matrimônio com um do mesmo povo e da mesma tribo, para que a herança familiar não rodasse de tribo em tribo. Que seja isto o bastante.

 

VIII

[Do infanticídio cometido por Herodes e o final catastrófico de sua vida]

  1. 1.            Nascido Cristo em Belém de Judá, conforme as profecias[61] no tempo men­cionado, Herodes, ante a pergunta dos magos vindos do Oriente que queriam saber onde se achava o nascido rei dos judeus - porque tinham visto sua estrela, e o motivo de sua viagem tão longa era seu empenho em adorar como Deus ao recém-nascido -, bastante perturbado pelo assunto, como se estivesse em perigo sua soberania - ao menos era o que ele realmente pensava -, depois de informar-se com os doutores da lei dentre o povo onde esperavam que haveria de nascer o Cristo, assim que soube que a profecia de Miquéias indicava Belém, ordenou mediante um edito matar os meninos de peito de Belém e redondezas, de dois anos para baixo, segundo o tempo exato indicado pelos magos, pensando que também Jesus, como era natu­ral, teria certamente a mesma sorte que os outros meninos de sua idade.
  2. 2.            Mas o menino, levado para o Egito, adiantou-se ao plano: um anjo apareceu a seus pais indicando-lhes de antemão o que iria acontecer. Isto é o que nos ensina a Sagrada Escritura do Evangelho[62].
  3. 3.            Mas, além disso, é conveniente dar uma olhada na resposta pelo atrevimento de Herodes contra Cristo e os meninos de sua idade. Imediatamente depois, sem a menor demora, a justiça divina o perseguiu quando ainda transbordava de vida e lhe mostrou o prelúdio do que o aguardava para depois de sua saída desta vida.
  4. 4.            Não é possível resumir agora as sucessivas calamidades domésticas com que se enevoou a suposta prosperidade de seu reino: os assassinatos de sua mulher, de seus filhos e de outras pessoas muito próximas a sua família por parentesco e por amizade. O que se pode supor a respeito disso deixa à sombra qualquer representação trágica. Josefo o explica extensamente em seus relatos históricos.
  5. 5.            Mas sobre como um flagelo divino o arrebatou e ele começou a morrer já desde o momento em que conspirou contra nosso Salvador e contra os demais meninos, será bom escutar as palavras do próprio escritor, que no livro XVII de suas Antigüidades judaicas descreveu o final catastrófico da vida de Herodes como segue:

"A doença de Herodes fazia-se mais e mais virulenta. Deus vingava seus crimes.

  1. 6.            Com efeito, era um fogo suave que não denunciava ao tato dos que o apal­pavam um abrasamento como o que por dentro aumentava sua destruição; e logo uma vontade terrível de comer algo, sem que nada lhe servisse, ulcerações e dores atrozes nos intestinos, e sobretudo no ventre, com inchaço úmido e reluzente nos pés.
  2. 7.     Em torno do baixo-ventre tinha uma infecção parecida; mais ainda, suas partes pudendas estavam podres e criavam vermes. Sua respiração era de uma rigidez aguda e extremamente desagradável pela carga de supuração e por sua forte asma; em todos os membros sofria espasmos de uma força insuportável.
    1. 8.      O certo é que os adivinhos e os que têm sabedoria para predizer estas coisas diziam que Deus estava fazendo-se pagar pelas muitas impiedades do rei." Isto é o que o autor citado anota na mencionada obra.
    2. 9.      E no livro segundo de seus relatos históricos nos dá uma tradição parecida acerca do mesmo assunto, escrevendo assim:

"Então a enfermidade se apoderou de todo o seu corpo e foi destroçando-o com variados sofrimentos. A febre na verdade era fraca, mas era insuportável a comichão em toda a superfície do corpo, as dores contínuas do ventre, os edemas dos pés, como de um hidrópico, a inflamação do baixo-ventre e a podridão verminosa de suas partes pudendas, ao que se deve acrescentar a asma, a dispnéia e espasmos em todos seus membros, ao ponto de os adivinhos dizerem que estes sofrimentos eram um castigo.

10. Mas ele, mesmo lutando com tais padecimentos, ainda se aferrava à vida, e
esperando salvar-se imaginava curas. Atravessou o Jordão e utilizou as águas termais de Calirroe. Estas vão desaguar no mar do Asfalto[63], e como são doces são também potáveis.

  1. 11.     Ali os médicos decidiram aquecer com azeite quente todo seu purulento corpo em uma banheira cheia de azeite; desmaiou e revirou os olhos, como se estivesse acabado. Armou-se grande alvoroço entre os criados, e com o ruído voltou a si. Renunciando desde então à cura, mandou distribuir a cada soldado 50 dracmas e muito dinheiro aos chefes e a seus amigos.
  2. 12.     Regressou então e chegou a Jericó, já vítima da melancolia e ameaçado pela morte. Pôs-se a tramar uma ação criminosa. De fato, fez reunir os notáveis de cada aldeia de toda a Judéia e mandou encerrá-los no chamado hipódromo.
  3. 13.     Chamando depois sua irmã Salomé e seu marido Alexandre, disse: Sei que os judeus festejarão minha morte, mas posso ainda ser pranteado por outros e ter uns funerais esplêndidos se vocês atenderem minhas ordens. Assim que eu expirar, fazei com que cada um dos homens aqui detidos seja imediatamente cercado por soldados e fazei com que os matem, para que a Judéia inteira e cada casa, ainda que à força, chore por mim."
  4. 14.     E um pouco mais adiante diz:

"Depois, torturado também pela falta de alimento e por uma tosse espasmódica e abatido pelas dores, tramava antecipar a hora fatal. Pegou uma maçã e pediu uma faca, pois tinha o costume de cortá-la para comê-la. Depois, olhando em volta por medo de que houvesse alguém para impedi-lo, levantou sua mão direita com a intenção de ferir-se."

  1. 15.     Além destes detalhes, o mesmo escritor refere que, antes de morrer de todo, mandou que matassem outro de seus filhos legítimos, terceiro que somou aos outros dois já assassinados anteriormente[64], e no mesmo momento, de repente e entre enormes dores, expirou[65].

16. Assim foi o final de Herodes, justo e merecido pelo infanticídio perpetrado em Belém por atentar contra nosso Salvador. Depois disto, um anjo se apresentou em sonhos a José, que vivia no Egito, e ordenou-lhe partir com o menino e sua mãe para a Judéia, explicando-lhe que estavam mortos os que buscavam a morte do menino, ao que acrescenta o evangelista: Porém, ouvindo que Arquelau reinava no lugar de seu pai Herodes, temeu ir para lá, mas avisado em sonhos, retirou-se para a região da Galiléia[66].

 

IX

[Dos tempos de Pilatos]

  1. 1.           O historiador acima citado corrobora a notícia da subida de Arquelau ao poder depois de Herodes e descreve de que maneira, por testamento de seu pai Herodes e por decisão de César Augusto, recebeu em sucessão o reino judeu, e como, tirado do poder após dez anos, seus irmãos Felipe e Herodes o Jovem, junto com Lisanias, governaram suas próprias tetrarquias.
  2. 2.     O mesmo Josefo, no livro XVIII de suas Antigüidades, declara que no ano 12 do império de Tibério (pois foi este o sucessor no Império, depois dos cinqüenta e sete anos de reinado de Augusto), Pôncio Pilatos obteve o governo da Judéia, no qual se manteve por dez anos completos, quase até a morte de Tibério.
  3. 3.           Portanto está claramente refutada a patranha dos que agora, ultimamente, divulgaram umas Memórias contra nosso Salvador, nas quais a própria data anotada é a primeira prova da mentira de tal farsa.
  4. 4.     De fato, situam suas atrevidas invenções acerca da paixão do Salvador no quarto consulado de Tibério, que coincide com o sétimo ano de seu reinado, tempo no qual está demonstrado que Pilatos não tinha ainda se apresentado na Judéia, ao menos se tomarmos Josefo como testemunha, que claramente assinala em seu livro já citado que Tibério instituiu Pilatos governador da Judéia justamente no décimo segundo ano de seu império.

 

X

[Dos sumos sacerdotes dos judeus sob os quais Cristo ensinou]

  1. 1.            Foi portanto nestes tempos, segundo o evangelista[67], estando Tibério César no décimo quinto ano de seu império e Pilatos no quarto ano de sua procuração, e sendo tetrarcas do resto da Judéia Herodes, Lisanias e Felipe, que nosso Salvador e Senhor Jesus, o Cristo de Deus, tendo cerca de trinta anos[68], se apresentou para o batismo com João[69] e deu início então à procla­mação do Evangelho[70].
  2. 2.     Diz ainda a divina Escritura que todo o tempo de seu ensino transcorreu durante o sumo sacerdócio de Anás e Caifás[71], mostrando que efetivamente todo o tempo de seu ensino se cumpriu nos anos em que estes exerceram seus cargos. Portanto, começou durante o sumo sacerdócio de Anás e continuou até o começo do de Caifás, o que não chega a dar um intervalo de quatro anos completos.
  3. 3.             De fato, como as normas legais naquele tempo estavam já de certa forma relaxadas, havia-se quebrado aquela segundo a qual os cargos referentes ao culto de Deus seriam vitalícios e por sucessão hereditária, e os governadores romanos investiam com o sumo sacerdócio pessoas diferentes e em tempos também diferentes, sem que durassem no cargo mais de um ano.
  4. 4.      Relata pois Josefo, que depois de Anás se sucederam quatro sumos sacerdotes até Caifás. Na mesma obra Antigüidades escreve o seguinte:

"Valério Grato destituiu do sacerdócio a Anás e tornou sumo sacerdote a Ismael, filho de Fabi; mas trocando também este ao cabo de pouco tempo, designa como sumo sacerdote a Eleazar, filho do sumo sacerdote Anás.

  1. 5.             Mas transcorrido um ano, destituiu também a este e entregou o sumo sacerdócio a Simão, filho de Camito. Mas nem para este durou a honra do cargo mais de um ano, sendo seu sucessor José, também chamado Caifás."
  2. 6.             Por conseguinte, está demonstrado que todo o tempo do ensino de nosso Salvador não chega a quatro anos completos, posto que desde Anás até a nomeação de Caifás foram quatro os sumos sacerdotes que, em quatro anos, exerceram o cargo anual. Tem razão o texto evangélico ao menos em apontar Caifás como sumo sacerdote do ano que se cumpriu a paixão do Salvador[72]. Por não discordar da observação precedente, fica também corroborada a duração do ensino de Cristo.
  3. 7.             Além disso, nosso Salvador e Senhor chama os doze apóstolos pouco depois do início de seu ensino, e somente a eles dentre os demais discípulos, por privilégio especial, deu o nome de apóstolos[73]. Depois designou outros setenta, e também a estes enviou, de dois em dois, adiante dele a todo lugar e cidade por onde ele iria[74].

 

XI

[Testemunhos sobre João Batista e Cristo]

1. Não muito depois, Herodes o Jovem mandou decapitar João o Batista. O texto sagrado do Evangelho também o menciona[75] e Josefo o confirma, ao menos quando faz referência a Herodias e de como Herodes se casou com ela, apesar de ser mulher de seu irmão, depois de repudiar sua pri­meira e legítima esposa (filha de Aretas, rei de Petra) e de separar Hero­dias de seu marido, que ainda vivia; menciona também que por causa dela deu morte a João e promoveu uma guerra contra Aretas, cuja filha tinha desonrado.

  1. 2.             E diz ainda que nesta guerra, durante a batalha, o exército de Herodes foi desbaratado por inteiro, e que tudo isso aconteceu por ter atentado contra João.
  2. 3.             O mesmo Josefo confessa que João era um homem extremamente justo e que batizava, confirmando assim o que está escrito sobre ele no texto dos evangelhos. Menciona ainda que Herodes foi destronado por culpa da mesma Herodias, e com ela foi desterrado, condenado a habitar na cidade de Viena, na Gália[76].
  3. 4.      Isto é o que narra no mesmo livro XVIII das Antigüidades, onde escreve sobre João o que segue textualmente:

"Para alguns judeus parece que foi Deus que desbaratou o exército de Herodes, fazendo-o pagar muito justamente pelo que fez a João, chamado o Batista.

  1. 5.      Porque Herodes havia-lhe dado morte. Era um homem bom e que exortava os judeus ao exercício da virtude, a usar da justiça no trato de uns com os outros e da piedade para com Deus, e a aceitar o batismo. Porque desta maneira também o batismo lhe parecia aceitável, não como instrumento de perdão para alguns pecados, mas para a purificação do corpo, desde que a justiça já de antemão houvesse purificado a alma.
  2. 6.             E como outros se fossem aglomerando em torno de João (pois ficavam suspensos escutando suas palavras), Herodes, temeroso de que uma tal força de persuasão sobre os homens conduzisse a alguma revolta (já que em tudo pareciam proceder segundo os conselhos de João), pensou que o melhor era antecipar-se e fazê-lo matar antes que armasse uma revolução, em vez de ver-se envolto em dificuldades por uma mudança de situação e ter que se arrepender mais tarde. E João, devido à suspeita de Herodes, foi mandado prisioneiro a Maqueronte, a célebre fortaleza mais acima, e ali foi executado."

7.   Depois de explicar tudo isto a respeito de João, na mesma obra histórica menciona também nosso Salvador nos seguintes termos:

"Por este mesmo tempo viveu Jesus, homem muito sábio se é que de homem devemos chamá-lo, porque realizava obras portentosas, era mestre dos homens que recebiam com prazer a verdade e atraiu não somente muitos judeus, mas também muitos gregos.

8.    Este era o Cristo. Havendo-lhe infligido Pilatos o suplício da cruz, instigado por nossos líderes, os que primeiro o haviam amado não cessaram de amá-lo, pois ao fim de três dias novamente apareceu-lhes vivo. Os profetas de Deus tinham dito estas mesmas coisas e outras incontáveis maravilhas sobre ele. A tribo dos Cristãos, que dele tomou o nome, ainda não desapareceu até hoje."

9.  Quando um escritor saído dentre os próprios judeus transmite desde o começo em suas próprias obras estas coisas referentes a João Batista e a nosso Salvador, que subterfúgio resta aos que tramaram contra eles as Memórias, sem que fique evidente seu descaramento? Mas seja bastante o que foi dito.

 

XII

[Dos discípulos de nosso Salvador]

  1. 1.            Dos apóstolos do Salvador, pelo menos os nomes aparecem claramente em todos os evangelhos[77]. Dos setenta discípulos por outro lado, em nenhum lugar se encontra lista alguma; mesmo assim, sabe-se ao menos que Barnabé era um deles; dele fazem menção especial os Atos dos Apóstolos[78], igual­mente Paulo quando escreve aos Gálatas[79]. Dizem ainda que também Sóstenes, um dos que escrevem com Paulo aos Coríntios, era um deles[80].
  2. 2.            A referência se encontra em Clemente, no livro V das Hypotyposeis, onde afirma que também Cefas - de quem Paulo diz: Mas quando Cefas veio a Antioquia, enfrentei-me com ele[81]-, era um dos setenta discípulos e que sua homonímia com o apóstolo Pedro era casual.
  3. 3.            E um documento[82] ensina também que Matias - o que foi juntado à lista dos apóstolos em substituição a Judas - e o outro que com ele teve a honra de disputar a sorte foram dignos de serem dos setenta[83]. Diz-se ainda[84] que também Tadeu era um deles, sobre este chega a nós um relato que exporei em seguida[85].
  4. 4.     Mas observando bem, encontraremos que os discípulos do Salvador eram muito mais do que os setenta, aceitando o testemunho de Paulo, que diz que depois de sua ressurreição dentre os mortos apareceu primeiro a Cefas, depois aos doze, e depois destes a mais de quinhentos irmãos juntos, sobre os quais afirmava que alguns já tinham morrido, mas que a maior parte ainda vivia no tempo em que ele escrevia estas coisas[86].
  5. 5.     Depois diz que apareceu a Tiago. Pois bem, este era também um dos men­cionados irmãos do Salvador. Portanto, de qualquer forma, os apóstolos à imagem dos doze eram muitos mais - o próprio Paulo o era -, prossegue dizendo: depois apareceu a todos os apóstolos. Sobre este tema, baste o que foi dito.

 

XIII

[Relato sobre o rei de Edessa]

  1. 1.             O relato acerca de Tadeu[87] é como segue. A fama da divindade de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, devido ao seu poder milagroso, alcançou a todos os homens, e com a esperança de cura de suas enfermidades e moléstias de toda espécie, atraía a inumeráveis pessoas que habitavam inclusive no estrangeiro, muito longe da Judéia.
  2. 2.             Nestas condições se achava o rei Abgaro, que reinava excelentemente sobre os povos do outro lado do Eufrates e tinha seu corpo destroçado por uma doença terrível e incurável para o poder humano. Assim que chegaram a ele notícias recorrentes sobre o nome de Jesus e os milagres unanimemente testemunhados por todos, converteu-se em seu suplicante, enviando um mensageiro com uma carta na qual pedia para ver-se livre da enfermidade.
  3. 3.      Mas Jesus não atendeu de imediato a seu chamamento. Mesmo assim, fez-lhe a honra de uma carta de próprio punho e letra na qual prometia enviar-lhe um de seus discípulos que o curaria da enfermidade e ao mesmo tempo levaria a salvação para ele e para os seus.
  4. 4.      Não passou muito tempo sem que Jesus cumprisse sua promessa. Depois de sua ressurreição de entre os mortos e de sua ascensão aos céus, Tomás, um dos doze apóstolos, movido por Deus, enviou à região de Edessa Tadeu -que também era um dos setenta discípulos de Cristo - como arauto e evangelista da doutrina de Cristo, e por meio dele se cumpriu o que o Sal­vador havia prometido.
  5. 5.      Temos de tudo isto testemunho escrito, tirado dos arquivos de Edessa, que naquele tempo era a corte. Nos documentos públicos que neles se guardam e que contém os feitos antigos e dos tempos de Abgaro, encontra-se também o referido testemunho, conservado deste então e até hoje. Mas nada melhor do que ouvir as próprias cartas que tiramos dos arquivos e que, traduzidas do siríaco[88], dizem textualmente como segue:

      Cópia da carta escrita por Abgaro, toparca, a Jesus e enviada a Jerusalém pelo mensageiro Ananías.

  1. 6.      "Abgaro Ucama[89], toparca, a Jesus, o bom salvador que surgiu na região de Jerusalém, saudações: Tem chegado a meus ouvidos notícias acerca de tua pessoa e de tuas curas, que, ao que parece, realizas sem empregar remédios ou ervas, pois pelo que se conta, fazes com que os cegos recobrem a visão e que os coxos andem; limpas os leprosos e retiras espíritos impuros e demô­nios; curas os que estão atormentados por longa enfermidade e ressuscitas mortos.
  2. 7.      E eu, ao ouvir tudo isto de ti, pus-me a pensar que, de duas possibilidades uma: ou és Deus, que descendo pessoalmente do céu realizas estas mara­vilhas, ou és filho de Deus, já que fazes tais obras.
  3. 8.      Este é, pois, o motivo para escrever-te rogando-te que te apresses a vir a mim e curar-me do mal que me aflige. Porque também tenho ouvido que os judeus andam murmurando contra ti e querem fazer-te mal. Muito pequena é minha cidade, mas digna, e bastará para os dois[90]."
  4. 9.      Esta é a carta que Abgaro escreveu, iluminado então por um pouco de luz divina. Mas será bom que escutemos a carta que Jesus enviou a ele pelo mesmo correio, carta de poucas linhas, mas de muita força, cujo teor é o que segue:

Resposta de Jesus a Abgaro, toparca, por meio do mensageiro Ananías.

10. "Bem-aventurado tu, que creste em mim sem ter me visto. Porque de mim está escrito que os que me viram não crerão em mim, e que aqueles que não me viram crerão e terão a vida. Mas, acerca do que me escreves de ir para junto de ti, é necessário que eu cumpra aqui por inteiro minha missão e que, depois de havê-la consumado, suba novamente ao que me enviou[91]. Quando tiver subido, te mandarei algum de meus discípulos, que sanará tua doença
e trará a vida a ti e aos teus."

11. A estas cartas estava anexado ainda, em siríaco, o seguinte:

"Depois da ascensão de Jesus, Judas, chamado também Tomás, enviou-lhe como apóstolo a Tadeu, um dos setenta, o qual chegou e se hospedou na casa de Tobías, filho de Tobías. Quando se espalhou a notícia sobre ele, avisaram a Abgaro que havia chegado ali um apóstolo de Jesus, como tinha sido descrito na carta.

12. Começou pois Tadeu, com o poder de Deus[92], a curar toda enfermidade e fraqueza, ao ponto de todos se admirarem. Mas, quando Abgaro ouviu falar dos prodígios e maravilhas que operava e de que também curava, veio-lhe a suspeita de se seria o mesmo do qual Jesus falava na carta, ali onde dizia: Quando tiver subido, te mandarei algum de meus discípulos, que sanará tua doença.

  1. 13.     Fez pois chamar a Tobías, em cuja casa se hospedava, e lhe disse: Tenho ouvido dizer que veio certo homem poderoso e que se aloja em tua casa. Traga-o a mim. Foi-se Tobías para junto de Tadeu e lhe disse: O toparca Abgaro mandou chamar-me e me ordenou que te levasse até ele para que o cures; e Tadeu respondeu-lhe: Subirei, posto que fui enviado a ele com poder."
  2. 14.     "No dia seguinte Tobías madrugou, e tomando consigo a Tadeu, foi até Abgaro. Entrou Tadeu, estando ali presentes de pé os nobres do rei, e no momento de fazer sua entrada, uma grande visão apareceu a Abgaro no rosto do apóstolo Tadeu. Ao vê-la, Abgaro se prosternou ante Tadeu, deixan­do em suspenso todos os que o rodeavam, pois eles não haviam contemplado a visão, que só se mostrou a Abgaro.
  3. 15.     Este perguntou a Tadeu: És tu em verdade discípulo de Jesus, o filho de Deus, o que me disse: te mandarei algum de meus discípulos que te curará e te dará vida? E Tadeu respondeu: Porque é muito grande a tua fé naquele que me enviou, por isso fui enviado a ti. E se ainda crês nele, segundo a fé que tenhas, assim verás cumpridas as súplicas de teu coração.
  4. 16.     E Abgaro respondeu-lhe: de tal maneira cri nele, que quis tomar um exército e aniquilar os judeus que o crucificaram, se não me tivesse feito desistir o medo ao Império romano. E Tadeu lhe disse: Nosso Senhor cumpriu a vontade do Pai, e uma vez cumprida, subiu ao Pai.
  5. 17.     Disse-lhe Abgaro: Também cri nele e em seu Pai, e Tadeu disse: Por isto vou pôr minha mão sobre ti em seu nome. E assim que o fez, no mesmo instante curou-se o rei de sua enfermidade e das dores que tinha.
  6. 18.     E Abgaro se maravilhou, porque tal como tinha ouvido dizer sobre Jesus, assim acabava de experimentar de fato por obra de seu discípulo Tadeu, que o tinha curado sem remédios nem ervas. E não somente a ele, mas também a Abdon, filho de Abdon, que sofria de gota e que, aproximando-se também de Tadeu, caiu a seus pés, suplicou com suas mãos e foi curado. E muitos outros concidadãos curou Tadeu, operando maravilhas e proclamando a palavra de Deus.

 

  1. 19.      Depois disso disse Abgaro: Tadeu, tu fazes estes milagres com o poder de Deus, e nós ficamos maravilhados. Mas eu te rogo que também nos dês alguma explicação sobre a vinda de Jesus, como foi, e também sobre seu poder: em virtude de que poder operava ele os prodígios de que ouvi falar.
  2. 20.  E Tadeu respondeu: Agora guardarei silêncio. Mas amanhã, já que fui enviado para pregar a palavra, convoca em assembléia todos teus concidadãos, e eu pregarei diante deles, e neles semearei a palavra da vida: sobre a vinda de Jesus: como foi; e sobre sua missão: por que o Pai o enviou; e sobre seu poder, suas obras e os mistérios de que falou no mundo: em virtude de que poder realizava isto; e sobre a novidade de sua mensagem, de sua humildade e humilhação: como se humilhou a si mesmo depondo e reduzindo sua divindade, e como foi crucificado e desceu ao Hades, e fez saltar o ferrolho que desde sempre prevalecia e ressuscitou mortos, e como, tendo descido só, subiu a seu Pai com uma grande multidão.

21. Mandou pois Abgaro que ao amanhecer se reunissem todos seus cidadãos e que escutassem a pregação de Tadeu, e ordenou que lhe dessem ouro e prata sem poupar. Mas ele não o aceitou e disse: Se deixamos o nosso, como poderíamos tomar o alheio?

Corria o ano de 340.[93]

22. Baste para o momento este relato, que não será inútil, traduzido literalmente da língua Siríaca.

 

 

 

 

 

 

 

 

Livro II*

 

 

 

[Prólogo]

  1. 1.            Todos os dados da História Eclesiástica que era necessário estabelecer como prólogo: o referente à divindade do Verbo salvador, a antigüidade dos dog­mas de nossa doutrina e a sobriedade da forma de vida evangélica dos cristãos; e não apenas isso, mas também o que se relaciona com a recente manifestação de Cristo, com a atividade anterior à paixão e com a escolha dos apóstolos; tudo isto está bem explicado no livro anterior, com razões abreviadas.
  2. 2.            Mas no presente vamos considerar também os fatos que se seguiram à sua ascensão. Uns iremos anotando das Sagradas Escrituras, outros tomaremos de fora, dos tratados que oportunamente citaremos.

 

I

[Da vida dos apóstolos depois da ascensão de Cristo]

  1. 1.            O primeiro pois, que a sorte designou para o apostolado em substituição a Judas o traidor foi Matias, que também tinha sido um dos discípulos do Salvador, como já foi provado. Por outro lado os apóstolos, mediante a oração e imposição das mãos, instituem ainda com destino ao ministé­rio e para o serviço comum, a alguns homens de boa reputação, em núme­ro de sete: Estevão e seus companheiros[94]. Também foi Estevão, depois do Senhor e quase no momento em que recebia a imposição de mãos, como se o tivessem promovido para isto mesmo, o primeiro a ser morto a pedradas pelos mesmos que mataram o Senhor[95], e desta maneira o primeiro também a levar a coroa, a que alude seu nome, dos vitoriosos mártires de Cristo.
  2. 2.            Naquele tempo também Tiago, o chamado irmão do Senhor[96] - porque também ele era chamado filho de José; pois bem, o pai de Cristo era José, já que estava casado com a Virgem quando, antes que convivessem des­cobriu-se que havia concebido do Espírito Santo, como ensina a Sagrada Escritura dos evangelhos -; este mesmo Tiago pois, a quem os antigos puseram o sobrenome de Justo, pelo superior mérito de sua virtude, refere-se que foi o primeiro a quem se confiou o trono episcopal da Igreja de Jerusalém.
  3. 3.            Clemente, no livro VI das Hypotyposeis, adiciona o seguinte: "Porque -dizem - depois da ascensão do Salvador, Pedro, Tiago e João, mesmo tendo sido os preferidos do Salvador, não tomaram para si esta honra, mas elegeram como bispo de Jerusalém Tiago o Justo."
  4. 4.             E o mesmo autor, no livro VII da mesma obra, diz ainda sobre ele o que segue: "O Senhor, depois de sua ascensão, fez entrega do conhecimento a Tiago o Justo, a João e a Pedro, e estes o transmitiram aos demais apóstolos, e os apóstolos aos setenta, um dos quais era Barnabé.
  5. 5.             Houve dois Tiagos: um, o Justo, que foi lançado do pináculo do templo e morto a golpes com um bastão; e o outro, o que foi decapitado." Também Paulo menciona Tiago o Justo quando escreve: Outro apóstolo não vi além de Tiago, o irmão do Senhor[97].
  6. 6.             Por este tempo também se cumpriu o prometido por nosso Salvador ao rei de Osroene, pois Tomás, por impulso divino, enviou Tadeu a Edessa como arauto e evangelista da doutrina de Cristo, como acabamos de provar com documentos ali encontrados[98].
  7. 7.      Tadeu, estando no lugar, cura a Abgaro pela palavra de Cristo e deixa pasmos com seus estranhos milagres a todos os presentes[99]. Quando já os tinha bas­tante predispostos com suas obras conduziu-os à adoração do poder de Cristo, e acabou fazendo-os discípulos da doutrina do Salvador. Desde então e até hoje toda a cidade de Edessa está consagrada ao nome de Cristo, dando assim prova nada comum dos benefícios que nosso Salvador lhes fez.
  8. 8.             Baste o que foi dito, tomado de antigos relatos, e voltemos outra vez à Sagrada Escritura. Em seguida ao martírio de Estevão produziu-se a pri­meira e grande perseguição contra a Igreja de Jerusalém por parte dos mesmos judeus. Todos os discípulos, exceto os doze, dispersaram-se por toda a Judéia e Samaria. Alguns, segundo diz a Escritura divina, chega­ram à Fenícia, Chipre e Antioquia. Não estavam ainda preparados para ousar compartilhar com os gentios a doutrina da fé, e assim anunciaram-na somente aos judeus.
    1. 9.            Neste tempo também Paulo ainda assolava a Igreja: entrava nas casas dos fiéis, arrancava à força os homens e mulheres e os encarcerava[100].

10. Mas também Felipe, um dos que foram escolhidos para o serviço junto com Estevão e que se achava entre os dispersos, desceu a Samaria e cheio do poder divino, foi o primeiro a pregar a doutrina aos Samaritanos. Tão grande era a graça divina que operava nele, que atraiu com suas palavras o próprio Simão Mago e uma grande multidão[101].

11. Por aquele tempo Simão tinha conseguido tamanha fama com seu mágico poder sobre os iludidos que ele mesmo acreditava ser o grande poder de Deus. Foi então que, pasmo ante as incríveis maravilhas operadas por Felipe com o poder divino, infiltrou-se e levou o fingimento de sua fé em Cristo ao ponto de ser batizado[102].

  1. 12.     O que também é de admirar é que até agora aconteça o mesmo com os que ainda hoje compartilham de sua terrível heresia, os quais, fiéis ao método de seu antepassado se infiltram na Igreja como sarna pestilenta, e causam o maior estrago àqueles em quem conseguem inocular o veneno incurável e terrível oculto neles. Mesmo assim, a maioria já foi expulsa à medida que foram surpreendidos nesta perversidade, como o mesmo Simão, quando Pedro o desmascarou e o fez pagar o merecido.
  2. 13.     Mas, enquanto dia a dia a pregação salvadora ia progredindo, alguma disposição da providência trouxe para fora da Etiópia um nobre da rainha daquele país, que ainda hoje em dia, segundo costume ancestral, é regido por uma mulher[103]. Este nobre, primeiro dos gentios a conhecer os mistérios da doutrina divina, por ter encontrado Felipe[104], e primogênito dos crentes no mundo, segundo refere um documento, depois de regressar à terra pátria, foi o primeiro a anunciar a boa nova do conhecimento do Deus de todas as coisas e a função vivificadora de nosso Salvador entre os homens, devido a isto, graças a ele, realizou-se a profecia que diz: Etiópia corre a estender suas mãos a Deus[105].
  3. 14.     Além dos citados, Paulo, o instrumento escolhido[106] não por parte dos homens nem por meio dos homens, mas por revelação do próprio Jesus Cristo e de Deus Pai, que o ressuscitou de entre os mortos, foi proclamado apóstolo: uma visão e uma voz do céu[107] no momento da revelação o consi­deraram digno da chamada.

 

II

[Da emoção de Tibério ao ser informado por Pilatos dos feitos referentes a Cristo]

1. A fama da assombrosa ressurreição de nosso Salvador e de sua ascen­são aos céus já havia alcançado a grande maioria. Havia sido imposto aos governadores das nações o antigo costume de informar o ocupante do cargo imperial de todas a novidades ocorridas em suas regiões, para que nada escapasse de seu conhecimento. Pilatos portanto informou ao Imperador Tibério sobre tudo o que corria de boca em boca por toda a Palestina sobre a ressurreição de nosso Salvador Jesus de entre os mortos.

  1. 2.             Informou-o também de seus outros milagres e de que o povo já acreditava que ele era Deus, porque depois de sua morte ressuscitou de entre os mortos. Diz-se que Tibério levou o assunto ao senado, e que este o rechaçou, aparentemente porque não o havia aprovado previamente - pois uma antiga lei prescrevia que, entre os romanos, ninguém poderia ser divinizado se não o fosse por voto e por decreto do senado -, mas na realidade era porque a doutrina salvadora da pregação divina não necessitava de ratificação nem de recomendação vinda dos homens.
  2. 3.             Desta forma pois, o senado romano rechaçou o informe apresentado sobre nosso Salvador. Tibério, por outro lado, conservou sua primeira opinião e não tramou nada de errado contra a doutrina de Cristo.
  3. 4.             Tertuliano, fiel conhecedor das leis romanas, homem insigne por outros méritos e ilustríssimo em Roma, expõe todos estes fatos em sua Apologia pelos cristãos, que escreveu no próprio idioma romano e que está traduzida em língua grega, expressando-se textualmente como segue:
  4. 5.             "Mas, para que discutamos partindo da origem de tais leis, existia um antigo decreto de que ninguém podia ser consagrado como deus antes de ser aprovado pelo senado. Marco Emílio assim o fez a respeito de certo ídolo, Alburno. Também isto vai a favor de nossa doutrina: que entre vós a divindade seja outorgada por arbítrio dos homens. Se um deus não agrada ao homem, não chega a ser deus. Assim, quanto a isto, convém que o homem seja propício a Deus!
  5. 6.             Tibério, pois, sob o qual apareceu no mundo o nome de cristão, quando lhe anunciaram esta doutrina procedente da Palestina, onde primeiro começou, comunicou-o ao senado, explicando aos senadores que dita doutrina o agradava. Mas o senado a rechaçou por não tê-la aprovado previamente. Tibério, por outro lado, persistiu na sua declaração e ameaçou de morte aos acusadores dos cristãos."

A providência celestial tinha disposto este ânimo ao imperador a fim de que a doutrina do Evangelho tivesse um início livre de obstáculos e se propagasse por toda a terra.

 

III

[De como a doutrina de Cristo em pouco tempo se propagou por todo o mundo]

1. Assim, sem dúvida por uma força e uma assistência de cima, a doutrina salvadora, como um raio de sol, iluminou subitamente toda a terra habi­tada. De pronto, conforme as divinas Escrituras, a voz de seus evangelistas inspirados e de seus apóstolos ressoou em toda a terra, e suas palavras nos confins do mundo[108].

  1. 2.      Efetivamente, por todas as cidades e aldeias, como numa época fervilhante, constituíam-se em massa igrejas formadas por multidões inumeráveis. Os que por herança ancestral e por um antigo erro tinham suas almas presas da antiga moléstia da superstição idólatra, pelo poder de Cristo e graças ao ensinamento de seus discípulos e aos milagres que os acom­panhavam, tendo rompidas suas penosas prisões, afastaram-se dos ídolos como de amos terríveis e cuspiram fora todo o politeísmo demoníaco e confessaram que não há mais do que um só Deus: o criador de todas as coisas. E a este Deus honraram com os ritos da verdadeira religião por meio de um culto divino e racional, o mesmo que nosso Salvador semeou na vida dos homens.
  2. 3.      Pois bem, como quer que a graça divina já se difundisse pelas demais nações, e em Cesaréia da Palestina Cornélio e toda sua casa haviam sido os primeiros a aceitar a fé em Cristo por meio de uma aparição divina e do ministério de Pedro, também em Antioquia ela foi aceita por toda uma multidão de gregos aos quais haviam pregado os que foram dispersados quando da persegui­ção contra Estevão[109]. A Igreja de Antioquia já florescia e se multiplicava quando, estando presentes numerosos profetas chegados de Jerusalém[110], e com eles Barnabé e Paulo, além de uma multidão de outros irmãos, pela primeira vez o nome de Cristãos brotou dela, como de uma fonte caudalosa e fecundante.
  3. 4.      Ágabo era também um dos profetas que estava com eles e predizia como iminente uma grande fome, devido a isto Paulo e Barnabé foram enviados para pôr-se a serviço da assistência aos irmãos"[111].

 

 

IV

[De como, depois de Tibério, Caio estabeleceu Agripa como rei dos judeus

e castigou Herodes com o desterro perpétuo]

1. Morreu pois Tibério depois de reinar por cerca de vinte e dois anos. Depois dele tomou o poder Caio[112], que em seguida pôs sobre Agripa a coroa do comando sobre os judeus, fazendo-o rei das tetrarquias de Felipe e de Lisanias, às quais não muito depois juntou a de Herodes, depois de condenar este (que era o Herodes do tempo da paixão do Salvador), junto com sua mulher Herodías, ao desterro perpétuo por causa de seus muitos crimes, Josefo também é testemunha destes fatos.

  1. 2.             Por este tempo tornava-se conhecido por muitos um tal Fílon, varão notabilíssimo, não somente entre os nossos mas também entre os que procediam de uma educação profana. Descendia de família hebréia, mas não era em nada inferior aos que brilhavam por sua autoridade em Alexandria.
  2. 3.             A extensão e a qualidade de seus trabalhos acerca das ciências divinas pátrias se evidencia por sua obra, e quanto a sua capacidade para os conhe­cimentos filosóficos e os estudos liberais da educação profana, nada há que dizer quando a história dá conta de seu cuidado especial pelo estudo da filosofia de Platão e de Pitágoras ao ponto de suplantar todos seus contemporâneos.

 

V

[De como Fílon foi embaixador junto a Caio em favor dos judeus]

  1. 1.            Fílon conta em cinco livros as calamidades dos judeus nos tempos de Caio, e ao mesmo tempo comenta a demência deste ao proclamar-se deus e cometer mil desmandos em seu governo, assim como as misérias dos judeus sob seu império e a embaixada que a ele (Fílon) foi confiada na cidade de Roma em favor de seus compatriotas de Alexandria. Descreve como se apresentou perante Caio em defesa das leis pátrias e como não conseguiu ao final mais do que zombarias e sarcasmos, faltando pouco mesmo para perder sua própria vida neste incidente.
  2. 2.            Estes fatos são também mencionados por Josefo no livro XVIII de suas Antigüidades; escreve textualmente:

"E houve uma revolta em Alexandria entre os judeus ali residentes e os gregos, e foram eleitos três embaixadores de cada facção para apresentar-se perante Caio.

  1. 3.            Um dos embaixadores alexandrinos era Ápion, que havia caluniado muito os judeus dizendo, entre outras coisas, que viam com maus olhos o honrar a César, pois enquanto todos os que estavam submetidos à soberania de Roma construíam altares e templos a Caio e em tudo o mais o equiparavam aos deuses, somente os judeus achavam indigno honrá-lo com estátuas e jurar por seu nome.
  2. 4.     Muitas e graves acusações foram proferidas por Ápion, naturalmente com a esperança de exaltar o ânimo de Caio. Fílon, que presidia a embaixada dos judeus, homem ilustre em tudo, irmão do alabarca[113] Alexandre e hábil filósofo, tinha suficiente capacidade para lidar com as acusações em seu discurso de defesa.
  3. 5.     Mas Caio interrompeu-o e ordenou que se retirasse para longe. Estava irritadíssimo e era claro que tomaria sérias medidas contra eles. Fílon saiu dali ultrajado e disse aos judeus de sua comitiva que precisariam ter ânimo, que Caio havia se enfurecido contra eles, mas que na verdade estava atentando contra Deus."

Até aqui Josefo.

  1. 6.            Mas o próprio Fílon, em sua obra Embaixada, expõe com todos os detalhes e exatidão o que fez na ocasião. Deixarei de lado quase tudo e citarei somente aquilo que ajude os leitores a ter uma prova manifesta das desventuras que ao mesmo tempo ou em rápida seqüência caíram sobre os judeus por causa dos crimes contra Cristo.
  2. 7.     Narra pois, em primeiro lugar, que nos tempos de Tibério, Sejano, homem então de grande ascendência e influência junto ao imperador, tomou muito a sério a idéia de acabar por completo com a raça dos judeus na cidade de Roma; e que na Judéia Pilatos, sob o qual havia sido cometido o crime contra o Salvador, havia atentado contra o templo, que ainda se erguia em Jerusalém, de uma forma que ia contra o que está permitido aos judeus, exacerbando-os terrivelmente.

 

VI

[Dos males que desabaram sobre os judeus depois de sua maldade contra

Cristo]

  1. 1.            Fílon segue narrando que, depois da morte de Tibério, Caio assumiu o poder e começou a cometer muitas atrocidades contra muitos, mas sobretudo de forma a prejudicar tanto quanto possível a toda a raça judia. Mas será melhor conhecer isto brevemente por suas próprias obras, nas quais escreve textualmente:
  2. 2.            "Extraordinariamente caprichoso era o caráter de Caio para com todos, mas muito especialmente contra a raça judia, à qual tinha um ódio implacável. Nas cidades, começando por Alexandria, apoderou-se das sinagogas e encheu-as de imagens e estátuas com sua própria figura (pois ele que per­mitia a outros erguê-las, também as erigia por seu próprio poder), e na Cidade Santa o templo, que até então saíra intacto por ser considerado digno de toda inviolabilidade, foi por ele transformado em seu próprio templo, chamando-o: Templo de Caio, Novo Zeus Epifano."
  3. 3.     O mesmo autor, num segundo livro que escreveu, intitulado Sobre as virtu­des, narra outras inumeráveis e indescritíveis calamidades ocorridas aos judeus em Alexandria nesta época. Com ele concorda também Josefo, ao notar igualmente que os infortúnios que caíram sobre toda a raça judia tiveram início nos tempos de Pilatos e dos crimes contra o Salvador.
  4. 4.     Mas ouçamos o que este declara textualmente no livro II de sua Guerra dos
    judeus quando diz:

"Enviado por Tibério à Judéia como procurador, Pilatos faz entrar durante a noite em Jerusalém, encobertas, as efígies do César, as chamadas insígnias. Ao nascer o dia isto produziu enorme comoção entre os judeus, que aproxi­mando-se para ver, ficaram aterrorizados: suas leis tinham sido pisoteadas, já que de forma alguma permitiam que na cidade se levantassem imagens."

  1. 5.           Se comparamos tudo isto com a Escritura do Evangelho, veremos que não tardaram muito para serem alcançados pelo grito que proferiram em pre­sença do próprio Pilatos quando gritavam que não tinham outro rei que não o César[114].
  2. 6.           Mas há ainda outra calamidade que alcançou os judeus e que o mesmo escritor narra em continuação como segue:

"E depois disto causou outra agitação quando esvaziou o tesouro sagrado chamado Corbã, gastando-o para trazer as águas desde uma distância de trezentos estádios. Ante isto o povo enfureceu-se e, quando Pilatos se apre­sentou em Jerusalém, rodearam-no vociferando a uma só voz.

  1. 7.             Mas ele contava já com a agitação dos judeus e tinha ordenado que se misturassem entre eles soldados armados, camuflados com trajes do povo, proibidos de usarem as espadas, mas com ordem de golpear com bastões os que gritassem. De seu assento ele deu o sinal. Os judeus foram feridos, muitos morreram sob os golpes e muitos foram esmagados pelos demais em fuga. A plebe, impressionada pelo infortúnio dos caídos, emudeceu."
  2. 8.      O mesmo autor faz saber ainda que além destas ocorreram em Jerusalém muitas outras revoltas, afirmando que desde aquele tempo, nem na cidade nem em toda a Judéia faltaram sedições, guerras e maldosas tramas de uns contra outros, até que finalmente chegou o assédio de Vespasiano. Assim é que a justiça divina alcançava os judeus por seus crimes contra Cristo.

 

 

 

 

VII

[De como Pilatos também se suicidou]

1. Não se deve ignorar uma tradição que nos conta como também o mesmo Pilatos dos dias do Salvador viu-se envolto em tão grandes calamidades nos tempos de Caio - cuja época foi explicada -, que se viu forçado a suicidar-se e converter-se em carrasco de si mesmo: a justiça divina, ao que parece, não tardou muito em alcançá-lo.

Também os gregos que deixaram escritas as séries de olimpíadas junto com os acontecimentos de cada época a isto se referem.

 

VIII

[Da fome nos tempos de Cláudio]

  1. 1.            Caio, porém, não chegou a cumprir os quatro anos de exercício do comando. Sucedeu-o como imperador Cláudio, sob o qual se abateu sobre o mundo uma grande fome (e isto nos transmitem em suas histórias mesmo os escritores mais alheios a nossa doutrina) e cumpriu-se a predição do profeta Ágabo, segundo os Atos dos Apóstolos, de que era iminente uma grande fome sobre todo o mundo.
  2. 2.            Lucas descreveu nos Atos a grande fome dos tempos de Cláudio, e depois de narrar como os irmãos de Antioquia enviaram socorro aos irmãos da Judéia por meio de Paulo e Barnabé, cada qual segundo suas possibilidades, acrescenta:

 

IX

[Martírio do apóstolo Tiago]

  1. 1.            Naquele tempo - evidentemente o de Cláudio -o rei Herodes pôs-se a mal­tratar alguns da Igreja. E matou Tiago, o irmão de João, com a espada[115].
  2. 2.            Acerca deste Tiago, Clemente, no livro VII de suas Hypotyposeis, acrescenta um relato digno de menção, afirmando tê-lo tomado de uma tradição ante­rior a ele. Diz que aquele que o introduziu ante o tribunal, comovido ao vê-lo dar testemunho, confessou que também ele era cristão.
  3. 3.     "Ambos pois, diz Clemente, foram levados juntos dali, e no caminho pediu que Tiago o perdoasse, e este, depois de olhá-lo um instante, disse: A paz esteja contigo, e beijou-o. E assim é que ambos foram decapitados ao mes­mo tempo."
  4. 4.            Então, como diz a divina Escritura[116], vendo Herodes que sua façanha de assassinar Tiago tinha agradado aos judeus, tentou-o também contra Pedro, encarcerou-o e pouco faltou para que o executassem também se um anjo, por aparição divina, não houvesse aparecido a ele durante a noite e não o tivesse retirado milagrosamente da prisão, deixando-o livre para o ministério da pregação. Esta foi a providência disposição no que diz respeito a Pedro.

X

[De como Agripa, também chamado Herodes, perseguiu os apóstolos e logo sentiu a vingança divina]

1. O merecido pelos atentados do rei contra os apóstolos não demorou, e o ministro vingador da justiça divina alcançou-o em seguida. Imediatamente depois da conspiração contra os apóstolos, segundo narra o livro dos Atos, pôs-se a caminho de Cesaréia, e ali, estando adornado com esplêndidas e regias vestimentas e colocado no alto diante de uma tribuna, dirigiu a palavra ao povo. Todo o povo aplaudiu seu discurso, como se fosse voz de Deus e não de homem, e neste mesmo instante - narra a Escritura - um anjo do Senhor o feriu, e convertido em pasto para os vermes, morreu[117].

  1. 2.            É de se admirar como também concordam quanto a este estranho aconteci­mento a Escritura divina e a narrativa de Josefo. É evidente que Josefo atesta a verdade no livro XIX de suas Antigüidades, onde explica o ocorrido com as palavras que se seguem:
  2. 3.     "Havia terminado o terceiro ano de seu reinado sobre toda a Judéia e ele se achava na cidade de Cesaréia, antes chamada Torre de Stráton. Estava ali celebrando jogos públicos em honra de César, por cuja saúde sabia ele que se realizavam estas festas. A eles tinha comparecido grande multidão de autoridades e dignitários da província.
  3. 4.     No segundo dia da festa, havendo posto um traje todo feito de prata, que resultava num tecido admirável, entrou no teatro ao raiar do dia, então a prata, iluminada pelos primeiros raios do sol, refulgia admiravelmente e lançava reflexos que atemorizavam e faziam estremecer a todos que colocavam suas vistas sobre ele.
  4. 5.            Logo começaram os aduladores, por todos os lados, a levantar suas vozes, que para ele de nada valiam, chamando-o deus e dizendo: Sede-nos propício! Se até aqui nós o tememos como a um homem, desde agora confessamos que és superior à natureza mortal.
  5. 6.     O rei não os repreendeu nem tentou rechaçar a ímpia adulação. Mas pouco depois, levantando os olhos viu um anjo[118] planando sobre sua cabeça, e em seguida pensou que aquele anjo seria causa de males como por algum tempo fora de bens. A angústia oprimiu-lhe o coração.
  6. 7.            E sobreveio-lhe uma repentina dor no ventre, que começou com grande intensidade. Pondo os olhos sobre os amigos, disse: Eu, vosso deus, recebi a ordem de devolver a vida. O destino se apressou em desmentir vossas vozes mentirosas de agora a pouco. Eu, que vocês chamavam imortal, sou agora conduzido à morte. Devo aceitar o destino como Deus o quis, porque de forma alguma vivi mal, mas com grande ventura.

8.   Enquanto dizia isto, a força da dor o esgotava. Dirigiu-se pois com cuidado para dentro do palácio.

A todos foi chegando o rumor de que irremediavelmente morreria em pouco tempo. Mas a multidão, com suas mulheres e seus filhos, logo veio a prostrar-se segundo os costumes pátrios e começou a suplicar pelo rei. Os choros e lamentos enchiam tudo, e o rei, deitado no dormitório do alto, vendo-os embaixo inclinados, prostrados, também não pôde conter as lágrimas.

  1. 9.             Acabado pela dor intestinal de uns cinco dias contínuos, morreu aos cinqüenta e quatro anos de idade, no sétimo de seu reinado. Reinou quatro anos sob César Caio, governou as tetrarquias de Felipe durante três e no quarto recebeu também a de Herodes. Reinou ainda três anos sob o império de César Cláudio."
  2. 10.      Estou admirado de como Josefo, neste e em outros pontos, confirma a verdade das divinas Escrituras. É certo que para alguns poderia parecer que discordam quanto ao nome do rei[119], mas o tempo e o modo de agir mostram que se trata do mesmo, devendo-se a troca de nome a um erro de escrita ou a que um mesmo tivesse dois nomes, como ocorre com muitos outros.

 

XI

[Do impostor Teudas]

  1. 1.            Já que Lucas, nos Atos[120], apresenta Gamaliel dizendo, na sentença sobre os apóstolos, que no tempo assinalado surgiu Teudas, que dizia ser alguém, e que ao ser eliminado todos os que nele creram se dispersaram, comparemos também o que Josefo escreve sobre isto, pois efetivamente, na obra citada há pouco, narra isto textualmente como segue:
  2. 2.            "Sendo Fado procurador da Judéia, certo impostor chamado Teudas conseguiu persuadir uma grande multidão a que tomassem seus bens e o seguissem até o rio Jordão, pois dizia que era profeta e afirmava que com seu comando separaria o rio para fazê-lo mais facilmente transponível. Enganou muitos falando assim.
  3. 3.            "Fado não lhes permitiu saborear sua loucura, mas enviou contra eles um esquadrão de cavalaria que caiu-lhes em cima de surpresa, e deu morte a muitos e capturou muitos vivos. O próprio Teudas foi pego vivo, cortaram-lhe a cabeça e a levaram a Jerusalém."

Em continuação a isto, Josefo menciona também a grande fome que houve nos tempos de Cláudio, como segue:

 

XII

[De Elena, rainha de Adiabene]

  1. 1.      "Neste tempo ocorreu que houve a grande fome na Judéia. Durante esta, a rainha Elena gastou muito dinheiro na compra de trigo egípcio, que distribuía aos necessitados."
  2. 2.              Vemos que também isto concorda com o texto dos Atos dos Apóstolos, que relata como os discípulos de Antioquia decidiram enviar algo, cada um segundo suas possibilidades, em socorro dos que habitavam na Judéia; o que fizeram enviando-o aos anciãos por mãos de Barnabé e Paulo[121].
  3. 3.              Desta Elena mencionada pelo escritor ainda hoje vêem-se esplêndidas colunas nos subúrbios da atual Elia. Dizia-se que havia sido rainha do povo de Adiabene.

 

XIII

[De Simão Mago]

  1. 1.            No entanto, havendo-se propagado a fé em nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo a todos os homens, o inimigo da salvação dos homens já tramava antecipar-se na captura da cidade imperial e para lá conduziu Simão, de quem já falamos acima[122]. De fato, seguindo as hábeis artes deste homem, ganhou para o erro muitos habitantes de Roma.
  2. 2.            Isto é demonstrado por Justino, que se distinguiu em nossa doutrina não muito tempo depois dos apóstolos e de quem exporemos oportunamente o que seja conveniente. Em sua primeira Apologia, dirigida a Antonino, em favor de nossa fé, escreve como segue:
  3. 3.            "E depois da ascensão do Senhor ao céu, os demônios levaram alguns homens a dizer que eram deuses, e estes não somente não foram perseguidos por vós, mas até foram considerados dignos de honras. Um tal Simão, samaritano, originário da aldeia chamada Giton, que em tempos do César Cláudio realizou mágicos prodígios em vossa imperial cidade, Roma, por arte dos demônios que nele operavam, foi tido por deus, e como a um deus foi honrado por vós com uma estátua no rio Tibre, entre as duas pontes, com a inscrição latina seguinte: SIMONIDEO SANCTO[123], ou seja: A Simão, o Deus santo.
  4. 4.     E quase todos os Samaritanos, além de uns poucos de outras nações, proclamam-no e adoram-no como ao Deus primeiro. E a uma certa Elena, que na época andava com ele, e que primeiro estava num prostíbulo -em Tiro da Fenícia -, chamavam-na o Primeiro Pensamento nascido dele".
  5. 5.     Isto segundo Justino. Também Irineu concorda com ele quando, no primeiro de seus livros Contra as heresias, traça um retrato deste homem e de sua ímpia e nefasta doutrina. Expô-la em detalhe nesta minha obra seria supérfluo, podendo os que o queiram informar-se também da origem, vida e princípios das falsas doutrinas dos heresiarcas que depois dele foram se sucedendo um após outro, assim como de suas práticas, meticulosamente transmitido no mencionado livro de Irineu.
  6. 6.             Recebemos pois por tradição que Simão foi o primeiro autor de toda heresia. Dele até hoje aqueles que, participando de sua heresia fingem a filosofia dos cristãos, sóbria e celebrada universalmente por sua pureza de vida, chegam de novo à superstição idólatra da qual pareciam estar livres, pois se prosternam diante de escritos e de imagens do próprio Simão e de sua companheira, a já citada Elena, e se esforçam em render-lhes culto com incenso, sacrifícios e libações.
  7. 7.             Mas suas mais secretas práticas, das quais se diz que quem pela primeira vez as escuta fica estupefato e, segundo uma expressão escrita que corre entre eles, espantado, verdadeiramente estão cheias de espanto, de frenesi e de loucura, e são tais que não somente não podem ser colocadas por escrito, mas que nem sequer com os lábios pode um homem sensato pronunciar o mínimo, pelo exagero de obscenidade e costumes infames.
  8. 8.             Porque tudo quanto se possa pensar de mais impuro e vergonhoso fica bem superado pela abominável heresia destes homens, que abusam de mulheres miseráveis e carregadas verdadeiramente de males de todo tipo.

 

XIV

[Da pregação do apóstolo Pedro em Roma]

  1. 1.            A este Simão, pai e autor de tão grandes males, o poder malvado e odiento de todo bem, inimigo da salvação dos homens, destacou-o naquele tempo como grande adversário dos grandes e divinos apóstolos de nosso Salvador.
  2. 2.            No entanto a graça divina e celestial veio em socorro de seus servidores, e somente com a aparição e presença destes extinguiu rapidamente o fogo ateado pelo maligno, e por meio deles humilhou e abateu toda altivez que se levanta contra o conhecimento de Deus[124].
  3. 3.     Por isso nenhuma maquinação, nem de Simão nem de nenhum outro dos que então proliferavam, prevaleceu naqueles tempos apostólicos: a luz da verdade e o próprio Verbo divino, que recentemente tinha brilhado sobre os homens, florescendo sobre a terra e convivendo com seus próprios apóstolos, triunfava sobre tudo e dominava tudo.
  4. 4.     Em seguida o mencionado impostor[125], como ferido nos olhos da mente por um ofuscamento divino e extraordinário quando anteriormente o apóstolo Pedro pôs a descoberto suas malvadas intenções na Judéia, empreendeu uma longa viagem para além do mar, e foi-se fugindo de oriente a ocidente, convencido de que somente ali seria possível viver segundo suas idéias.
  5. 5.             Chegou à cidade de Roma, e com a grande ajuda do poder que nela se assenta[126], em pouco tempo alcançou tamanho êxito em seu empreendi­mento, que os habitantes do lugar chegaram a honrá-lo como a um Deus, dedicando-lhe uma estátua.
  6. 6.             Não chegaria muito longe esta prosperidade. De fato, pisando em seus calcanhares, durante o próprio império de Cláudio, a providência univer­sal, santíssima e amantíssima dos homens, levava sua mão em direção a Roma, como contra um tão grande flagelo da vida, o firme e grande após­tolo Pedro, porta-voz de todos os outros devido a sua virtude. Como nobre capitão de Deus, equipado com as armas divinas[127], Pedro levava do oriente aos homens do ocidente a apreciadíssima mercadoria da luz espiritual, anunciando a boa nova da própria luz, da doutrina que salva as almas: a proclamação do reino dos céus.

 

XV

[Do evangelho de Marcos]

  1. 1.            Assim foi que, por habitar entre eles a doutrina divina, o poder de Simão se extinguiu e foi reduzido a nada, junto com ele mesmo. Em troca, o resplendor da religião brilhou de tal maneira sobre as mentes dos ouvintes de Pedro, que não ficavam satisfeitos apenas ouvindo-o uma vez, nem com o ensinamento não escrito da pregação divina, mas com todo tipo de pedidos importunavam Marcos - de quem se diz que é o Evangelho e que era companheiro de Pedro - para que lhes deixasse também um memorial escrito da doutrina que de viva voz lhes era transmitida, e não o deixaram em paz até que o homem o tivesse terminado, e desta forma tornaram-se a causa do texto chamado Evangelho de Marcos.
  2. 2.     E dizem que o apóstolo, quando por revelação do Espírito soube o que tinha sido feito, alegrou-se pela boa vontade daquela gente e aprovou o escrito para ser lido nas igrejas. Clemente cita o fato no livro VI de suas Hypotyposeis[128], e o bispo de Hierápolis chamado Papias apóia-o tam­bém com seu testemunho. Marcos é mencionado por Pedro em sua pri­meira carta; dizem que esta foi escrita em Roma mesmo, e que isto se dá a entender ao chamar a cidade, metaforicamente, de Babilônia, com estas palavras: Saúda-vos aquela que está em Babilônia, eleita convosco, e meu filho Marcos.

 

XVI

[De como Marcos foi o primeiro a pregar aos egípcios o conhecimento de Cristo]

  1. 1.            Dizem que este Marcos foi o primeiro a ser enviado ao Egito, e que ali pregou o Evangelho que ele havia posto por escrito e fundou igrejas, começando pela de Alexandria.
  2. 2.            E surgiu ali, na primeira tentativa, uma multidão de crentes, homens e mulheres, tão grande e com um ascetismo tão conforme a filosofia e tão ardente, que Fílon achou que era digno colocar por escrito suas práticas, suas reuniões, suas refeições em comum e tudo o mais referente ao seu modo de vida.

 

XVII

[O que Fílon conta sobre os ascetas do Egito]

  1. 1.            Um documento diz que Fílon, nos tempos de Cláudio, chegou a Roma para conversar com Pedro, que então estava pregando aos dali. Isto na verdade pode não ser inverossímil, já que a própria obra de que falo - composta por ele mais tarde, passado muito tempo - contém claramente as regras da Igreja, observadas ainda em nossos dias.
  2. 2.            Ocorre no entanto que, ao descrever com a maior exatidão possível a vida de nossos ascetas, fica evidente que ele não somente conhecia, mas também aprovava, reverenciava e honrava os valores apostólicos de seu tempo, de origem hebraica ao que parece, e que por isso conservavam ainda a maior parte dos antigos costumes muito à maneira dos judeus.
  3. 3.            Em primeiro lugar, no livro que intitulou Da vida contemplativa ou Suplicantes, Fílon deixa bem estabelecido que não acrescentaria ao que contasse nada contrário à verdade nem de sua própria criação. Diz que eram chamados terapeutas, e as mulheres que estavam com eles terapeutisas, e comenta as razões de tais nomes: ou porque como médicos livravam aqueles que os cercavam dos sofrimentos causados pela maldade às almas, curando-os e cuidando deles, ou pela limpeza e pureza de seu serviço e culto à divindade.
  4. 4.            Portanto não é necessário estender-se discutindo se Fílon colocou-lhes ele mesmo este nome, escrevendo o nome que correspondia à índole desses homens, ou se na verdade já se chamavam assim aos primeiros quando começaram, já que o nome de cristãos ainda não era bem conhecido em qualquer lugar.
  5. 5.     De qualquer forma, em primeiro lugar atesta seu afastamento das riquezas, afirmando que, quando começam a viver esta filosofia, cedem seus bens aos parentes e assim, livres de toda preocupação pela vida, saem para fora das muralhas para seguir sua vida em campos isolados e em bosques, sabendo que o convívio com pessoas de sentimentos diferentes é nocivo e sem proveito. Naquele tempo, ao que parece, os que agiam assim exercitavam-se em imitar com sua fé entusiástica e ardorosa a vida dos profetas.
  6. 6.            Com efeito, também nos Atos dos Apóstolos, que são reconhecidos como autênticos, descreve-se que todos os discípulos dos apóstolos vendiam suas posses e riquezas e as repartiam a todos conforme a necessidade de cada um, de forma que entre eles não havia indigentes[129]. Portanto, segundo diz o livro[130], todos os que possuíam campos ou casas os vendiam, e levando o produto da venda, depositavam-no aos pés dos apóstolos, de modo que os repartissem a cada um segundo suas necessidades.
  7. 7.     Fílon, depois de atestar práticas semelhantes a estas continua dizendo textualmente:

"Este tipo de homens se encontra em muitos lugares do mundo, pois é mis­ter que tanto a Grécia como as terras bárbaras participem do bem perfeito. Mas onde abundam é no Egito, em cada um dos chamados nomos[131], e sobretudo em torno de Alexandria.

8.   Os melhores de cada região são enviados a um tipo de colônia, como a uma pátria dos terapeutas, um lugar muito adequado, que se encontra às margens do lago Mareia, sobre uma colina baixa, nas melhores condições devido à segurança e à salubridade do ar."

Descreve então como eram suas moradias, e sobre as igrejas da região diz o que segue:

  1. 9.             "Em cada casa há uma sala sagrada, que se chama oratório privado e monastério[132], na qual se isolam e realizam os mistérios da vida sagrada. Nela não introduzem bebida, nem alimento, nem nada do que é necessário para o corpo, mas leis, oráculos anunciados por meio dos profetas, hinos e tudo aquilo com que o conhecimento e a religião crescem e se aperfeiçoam." E depois de outras coisas, diz:
  2. 10.  "O tempo que vai do alvorecer ao ocaso é empregado inteiramente nesta prática: lêem as Escrituras Sagradas, filosofam e expõe a filosofia pátria empregando a alegoria, já que pensam que a expressão falada é símbolo da natureza oculta, que se manifesta em alegorias.
  3. 11.      Possuem também escritos de antigos varões que foram os fundadores de sua seita e deixaram numerosos monumentos de sua doutrina em forma de alegorias. Tomam-nos por modelos e imitam sua maneira de pensar e agir."
  4. 12.     Isto parece ser, portanto, o que disse o homem que os ouviu interpretar as Sagradas Escrituras. E talvez os escritos dos antigos, que ele diz que possuem, sejam possivelmente os Evangelhos, os escritos dos apóstolos e algumas explicações que interpretam, como é natural, os antigos profetas, que são as que contêm a Carta aos Hebreus e outras cartas de Paulo.
  5. 13.     Depois Fílon continua escrevendo o que segue sobre como compõem para si novos salmos:

"De forma que não somente se dedicam à contemplação, mas também compõem cantos e hinos a Deus, em todas as formas de metros e melodias, ainda que marcando-os forçosamente com números bastante graves."

  1. 14.     Muitas outras coisas sobre o tema são explicadas no mesmo livro, mas pareceu-me necessário enumerar aquelas pelas quais se expõe as características da vida da Igreja.
  2. 15.     Mas se a alguém parecer que o que dissemos não é próprio unicamente da forma de vida segundo o Evangelho, mas pode aplicar-se também a outros, além dos indicados, que se convença pelas palavras seguintes de Fílon, nas quais, se sua intenção é boa, encontrará um testemunho incontestável sobre este ponto, pois escreve assim:
  3. 16.     "Começam estabelecendo como fundamento da alma a continência, e sobre esta edificam as demais virtudes. Nenhum deles tomaria alimento ou bebida antes do pôr-do-sol, pois entendem que a luz é conveniente para filosofar, enquanto que às necessidades do corpo servem bem as trevas; por isso deixam o dia para aquele mister, e um breve espaço da noite para estas.
  4. 17.     Alguns inclusive descuidam do alimento durante três dias: neles está mais arraigado o amor pela ciência. Outros de tal maneira se alegram e deleitam no banquete da sabedoria, que tão rica e abundantemente lhes abastece de doutrina, que podem resistir o dobro do tempo e tomar apenas o alimento necessário ao fim de seis dias, por costume."

Cremos que estas palavras de Fílon referem-se clara e indiscutivelmente aos nossos.

  1. 18.     Mas se depois do que foi dito alguém ainda se empenhar em contradizê-lo, afaste-se também este de sua incredulidade e convença-se com provas mais claras, que não podem ser achadas em outra parte senão na religião cristã segundo o Evangelho.

19. Diz efetivamente que, com os homens de que fala convivem também mulheres, a maioria das quais chegam virgens à velhice depois de guardar a castidade, não por necessidade como algumas sacerdotisas dos gregos, mas sim por convicção voluntária, devido ao seu zelo e sede de sabedoria, com a qual se esforçam em viver, sem importar-se em nada com os prazeres do corpo e desejosas de ter não filhos mortais, mas imortais, os quais somente a alma amante de Deus pode gerar de si mesma.

20. Um pouco mais adiante expõe ainda mais claramente o que segue:

"Mas eles fazem as interpretações das Sagradas Escrituras por meio de sentidos simbólicos, em alegorias, já que toda a legislação parece a estes homens semelhante a um ser vivo: como corpo têm as expressões conven­cionadas; como alma, o sentido invisível encerrado nas palavras, sentido que esta seita começou a contemplar como que refletida no espelho dos homens, a beleza extraordinária dos conceitos."

  1. 21.  Para que acrescentar a tudo isto suas reuniões num mesmo lugar, o modo de vida que levam separadamente os homens e as mulheres e os exercícios que nós mesmos por costume ainda praticamos, sobretudo os que costumamos realizar na festa da Paixão do Salvador: abstinência, vigílias noturnas e a aplicação às palavras divinas?
  2. 22.  Tudo isto nos transmitiu muito exatamente o mencionado autor em sua pró­pria obra, com o mesmo caráter que se pode observar até hoje somente entre nós. Descreve as vigílias completas da grande festa, os exercícios que nela são feitos e os hinos que costumamos dizer, e como, enquanto um vai salmodiando com ritmo e ordenadamente, os demais escutam em silêncio e repetem com ele somente o estribilho dos hinos, e também como nos dias assinalados deitam-se sobre leitos de palha e não tomam do vinho em absoluto - como escreve textualmente -, nem sequer carne, antes têm como única bebida a água e como condimento do pão apenas sal e hissôpo.
    1. 23.  Além disso, descreve a ordem de precedência daqueles a quem estão con­fiados os ofícios eclesiásticos públicos, o serviço e as presidências do episcopado, que estão acima de todas. Quem desejar um conhecimento exato de tudo isto pode consegui-lo na mencionada obra do referido autor.
    2. 24.  E que Fílon escreveu isto depois de aceitar os primeiros arautos da doutrina evangélica e dos costumes que desde o princípio transmitiram os apóstolos, é evidente para todos[133].

 

XVIII

[Obras de Fílon que chegaram até nós]

  1. 1.      Rico em linguagem, de pensamentos amplos, sublime e elevado na contem­plação das divinas Escrituras, Fílon fez sobre as palavras sagradas uma exposição variada e multiforme. Primeiro, em ordem concatenada e seguida, expôs detalhadamente as dificuldades do conteúdo do Gênesis nos livros que intitulou Alegorias das leis sagradas, depois, em parte distinguin­do, suprimindo e fazendo concordar capítulos das escrituras postos num mesmo quadro de referência, nos mesmos a que aplicou o título Problemas e soluções sobre o Gênesis e sobre o Êxodo, respectivamente.
  2. 2.      Tem além destes alguns estudos de certos problemas particularmente trabalhados, como são: dois livros Sobre a agricultura, e outros dois Sobre a embriaguez[134] e alguns outros que levam títulos diversos e apropriados, tais como Sobre as coisas que o sóbrio entendimento deseja e abomina[135], Sobre a confusão das línguas, Sobre a fuga e a invenção, Sobre o agrupa­mento para o ensino, Sobre quem é o herdeiro das coisas divinas ou Sobre a divisão em partes iguais e desiguais, e também Sobre as três virtudes que Moisés descreveu junto com outras.
  3. 3.      Há também a obra Sobre as trocas de nomes e o por quê destas trocas, na qual diz que escreveu também os livros I e II Sobre os testamentos[136].
  4. 4.      Também é sua a obra Sobre a emigração e vida do sábio perfeito segundo a justiça[137] ou Sobre as leis não escritas; e também Sobre os gigantes ou De como a divindade não muda, assim como os livros I-V da obra De como, segundo Moisés, é Deus quem envia os sonhos. Estas são as obras que chegaram até nós das que tratam sobre o Gênesis.
  5. 5.      Quanto ao Êxodo, conhecemos dele o seguinte: os livros I-V de Problemas e soluções, as obras Sobre o tabernáculo, Sobre o decálogo e os livros I-IV Sobre as leis que em especial se referem aos capítulos principais do decálogo; Sobre os animais para os sacrifícios e espécies de sacrifícios e Sobre os prêmios para os bons, e castigos e maldições para os maus, que estão na lei.
  6. 6.      Além destas todas, dão-se como suas obras de um só livro, como: Sobre a Providência[138], o tratado que compôs Sobre os judeus, O Político e ainda Alexandre ou de como os animais irracionais têm razão, e também De como todo homem mau é escravo[139], ao qual se segue outra obra: De como todo homem bom é livre.
  7. 7.              Depois destas compôs a obra Da vida contemplativa ou Suplicantes, da qual citamos passagens sobre a vida dos varões apostólicos[140]; e diz-se que são também suas as Interpretações dos nomes hebreus que há na Lei e nos Profetas.
  8. 8.              Chegou Fílon em Roma nos tempos de Caio, e diz-se que seus escritos sobre a teofobia de Caio, que ele intitulou, com sua ponta de ironia, Sobre as virtudes, foram por ele expostos diante do senado romano reunido, nos tempos de Cláudio, de forma que suas obras foram muito admiradas e consideradas dignas de ser colocadas nas bibliotecas.
  9. 9.              Por este tempo Paulo realizava sua viagem desde Jerusalém até o Ilírico[141], Cláudio expulsava os judeus de Roma e Áquila e Priscila, lançados de Roma com os demais judeus, desembarcavam na Ásia e conviviam com o após­tolo Paulo, que consolidava os fundamentos daquelas igrejas, recém lan­çados por ele. Quem nos ensina tudo isto é também a sagrada escritura dos Atos[142].

 

XIX

[Calamidades que se abateram sobre os judeus de Jerusalém no dia da Páscoa]

  1. 1.            Cláudio ainda regia o império quando ocorreu que, na festa da Páscoa, produziu-se em Jerusalém uma insurreição e uma confusão tamanhas que apenas dentre os judeus, que se apertavam com toda a força nas saídas do templo, morreram trinta mil, esmagados uns contra os outros, transformando-se a festa em dor para toda a nação e em pranto para cada família. Também isto é expressamente referido por Josefo.
  2. 2.            Cláudio estabeleceu como rei dos judeus Agripa, filho de Agripa, e enviou Félix como procurador de toda a região da Samaria, da Galiléia e da chamada Peréia. Depois de ter exercido o comando durante treze anos e oito meses, morreu, deixando Nero como sucessor no império.

 

XX

[Do que ocorreu em Jerusalém nos dias de Nero]

  1. 1.            Nos tempos de Nero e sendo Félix procurador da Judéia, os sacerdotes se levantaram uns contra os outros; Josefo o descreve textualmente no livro XX de suas Antigüidades, como segue:
  2. 2.            "Os sumos sacerdotes levantaram disputa contra os sacerdotes e principais personalidades do povo de Jerusalém, e cada um deles criou para si uma tropa de homens dos mais atrevidos e revolucionários e fez-se seu chefe. Quando se enfrentavam insultavam-se uns aos outros e lançavam pedras. Não havia ninguém que o reprimisse, pelo contrário, como numa cidade sem governo, isto acontecia com toda a liberdade.
  3. 3.            Tamanho descaramento e audácia se apoderou dos sumos sacerdotes, que se atreveram a enviar escravos às eiras para tomar para si os dízimos devi­dos aos sacerdotes, e chegou-se ao ponto de sacerdotes pobres morrerem na indigência. Assim é como a força dos facciosos prevalecia sobre toda a justiça."
  4. 4.            Relata também o mesmo escritor que naquele tempo surgiu em Jerusalém certa espécie de ladrões que, segundo diz, em pleno dia e no meio da cidade assassinavam quem quer que os encontrasse.
  5. 5.     Principalmente nos dias de festas, misturavam-se à multidão levando adagas[143]escondidas sob as roupas e com elas apunhalavam seus adversários. Quando estes caíam, os próprio assassinos uniam-se aos que manifestavam sua indignação, e por isso, com tal aparência de honradez, não havia quem os descobrisse.
  6. 6.     O primeiro que degolaram foi o sumo sacerdote Jonatan, e depois dele, a cada dia foram matando muitos. O medo era mais terrível do que as calamida­des, pois todos esperavam a morte a qualquer momento, como numa guerra.

 

XXI

[Do egípcio, também mencionado pelos Atos dos Apóstolos]

1.   Em continuação, acrescenta depois de outros detalhes:

"Com uma praga pior do que esta foram os judeus prejudicados pelo pseudoprofeta Egípcio. De fato, chegou este ao país como feiticeiro e com ares de profeta. Conseguiu reunir trinta mil iludidos e os conduziu ao deserto até o monte chamado das Oliveiras, de onde lhe seria possível entrar à força em Jerusalém e subjugar a guarnição romana e o povo, utilizando despoticamente as forças que o haviam acompanhado.

  1. 2.            Mas Félix antecipou-se a seu ataque saindo logo com os soldados romanos, e todo o povo contribuiu com a defesa, de modo que, iniciado o combate, o Egípcio empreendeu a fuga com uns poucos, enquanto a maior parte dos que estavam com ele pereceram ou foram feitos prisioneiros."
  2. 3.     Isto escreve Josefo no livro II de suas Histórias. Contudo, será bom relacio­nar o que ele diz sobre o Egípcio com o que é dito nos Atos dos Apóstolos[144], na passagem onde o tribuno militar de Jerusalém pergunta a Paulo nos tem­pos de Félix, quando o populacho judeu se voltara contra ele: Então não és tu o Egípcio que há alguns dias levantou uma sedição e levou ao deserto os quatro mil sicários?

Isto sucedeu nos tempos de Félix.

 

XXII

[De como Paulo, enviado preso da Judéia a Roma, fez sua defesa e foi

absolvido de toda acusação]

  1. 1.             Como sucessor deste, Nero enviou a Festo. Foi em seu tempo que Paulo sustentou seus direitos e foi enviado preso a Roma[145]. Com ele estava Aristarco, a quem em algum lugar de suas cartas chama com toda naturalidade de companheiro de cativeiro[146]. E Lucas, o que pôs por escrito os Atos dos Apóstolos, termina sua narrativa com estes acontecimentos, indicando que Paulo passou em Roma dois anos inteiros em liberdade provisória e que pregou a palavra de Deus sem nenhum obstáculo[147].
  2. 2.             É pois tradição[148] que o Apóstolo, depois de haver pronunciado sua defe­sa, partiu novamente para exercer o ministério da pregação e que, tendo voltado pela segunda vez à mesma cidade, terminou sua vida com o mar­tírio, nos tempos do mesmo imperador. Estando preso, compôs a segunda carta a Timóteo, e se refere de uma só vez a sua primeira defesa e a seu fim iminente.
  3. 3.             Mas ouçamos melhor seu próprio testemunho: Em minha primeira defesa -diz - ninguém me ajudou, antes, todos me abandonaram (que isto não lhes seja posto em conta). Mas o Senhor me ajudou e me infundiu forças para que por mim a pregação fosse plenamente cumprida e todas as nações a ouvissem, e fui libertado da boca do leão[149].
  4. 4.      Por estas palavras deixa claramente expresso que na primeira ocasião, para que se cumprisse sua pregação, fora livrado da boca do leão, refe­rindo-se com esta expressão, ao que parece, a Nero, por causa de sua crueldade. Por outro lado, em continuação não acrescenta nada como: me livrará da boca do leão, porque em seu espírito já via que sua morte seria iminente.
  5. 5.      Por isso, às palavras: e fui libertado da boca do leão, acrescenta: O Senhor me livrará de toda obra má e me preservará para seu reino celestial[150], indicando assim seu martírio iminente. Isto ele expressa ainda mais claramente um pouco antes, na mesma carta, quando diz: por­que estou já sendo oferecido em libação e o tempo de minha partida está próximo[151].
  6. 6.      Pois bem, na segunda carta das que enviou a Timóteo afirma que, no momento em que a escrevia, somente Lucas o acompanha[152], enquanto que, quando fez sua primeira defesa, nem sequer este[153]. De onde se deduz que Lucas provavelmente concluiu os Atos dos Apóstolos neste tempo, havendo narrado o que sucedeu enquanto esteve com Paulo.
  7. 6.      Dissemos isto para mostrar que o martírio de Paulo não ocorreu durante sua primeira estada em Roma, descrita por Lucas[154].
  8. 7.      É provável que Nero, ao menos no começo[155], estivesse mais propício e que aceitasse mais facilmente a defesa de Paulo em favor de sua doutrina, mas depois que avançou em sua audácia criminosa, atacou os apóstolos tanto quanto aos demais.

 

XXIII

[De como Tiago, chamado irmão do Senhor, sofreu o martírio]

  1. 1.     Ao apelar Paulo ao César e ser enviado por Festo à cidade de Roma[156], os judeus, frustrada a esperança que os induziu a conspirar contra ele[157], voltaram-se contra Tiago, o irmão do Senhor, a quem os apóstolos tinham confiado o trono episcopal de Jerusalém. O que segue é o que ousaram fazer também contra ele.
  2. 2.     Trouxeram-no, e diante de todo o povo pediram-lhe que renegasse a fé de Cristo. Mas quando ele, contra a vontade de todos, com voz livre e falando mais abertamente do que esperavam, diante de toda a multidão pôs-se a confessar que nosso Salvador e Senhor Jesus era filho de Deus, já não foram capazes de suportar mais o testemunho deste homem, justamente porque era considerado o mais justo de todos pelo grau de sabedoria e piedade a que havia chegado em sua vida, e mataram-no, aproveitando oportunamente a falta de governo, pois tendo Festo morrido na Judéia neste tempo, a administração do país ficou sem chefe e sem controle[158].
  3. 3.     O modo como ocorreu a morte de Tiago já foi esclarecido pelas palavras citadas de Clemente[159], que conta como o lançaram do pináculo do templo e espancaram-no até matá-lo. Mas quem conta com maior exatidão o que a ele se refere é Hegesipo, que pertence à primeira geração sucessora dos apóstolos[160] e que no livro V de suas Memórias diz assim:
  4. 4.             "Sucessor[161] na direção da Igreja é, junto com os apóstolos, Tiago, o irmão do Senhor. Todos dão-lhe o sobrenome de "Justo", desde os tempos do Senhor até os nossos, pois eram muitos os que se chamavam Tiago.
  5. 5.             Mas somente este foi santo desde o ventre de sua mãe. Não bebeu vinho nem bebida fermentada, não comeu carne; sobre sua cabeça não passou tesoura nem navalha e tampouco ungiu-se com azeite nem usou do banho.
  6. 6.             Somente a ele era permitido entrar no santuário, pois não vestia lã, mas linho. E somente ele penetrava no templo, e ali se encontrava ajoelhado e pedindo perdão por seu povo, tanto que seus joelhos ficaram calejados como os de um camelo, por estar sempre de joelhos adorando a Deus e pedindo perdão para o povo.
  7. 7.             Por sua eminente retidão era chamado "o Justo" e "Oblías", que em grego quer dizer proteção do povo e justiça, como declaram os profetas acer­ca dele.
  8. 8.             Assim pois, alguns das sete seitas que há no povo e que eu descrevi anteriormente (nas Memórias) tentavam informar-se com ele quem era porta de Jesus, e ele respondia que este era o Salvador.
  9. 9.             Alguns creram que Jesus era o Cristo. Mas as seitas mencionadas anteriormente não creram nem na ressurreição nem em que venha a dar a cada um segundo suas obras[162]. Mas os que creram, creram por Tiago.
  10. 10.  Sendo pois, muitos os que creram, inclusive entre as autoridades[163], os judeus, escribas e fariseus se alvoroçaram dizendo: todo o povo corre perigo ao esperar o Cristo em Jesus. Reuniram-se pois ante Tiago e disseram: Nós te pedimos: retém ao povo, que está em erro a respeito de Jesus, como se ele fosse o Cristo. Pedimo-te que convenças a respeito de Jesus todos os que vierem para o dia da Páscoa, porque a ti todos obedecem. Efetivamente, nós e todo o povo damos testemunho de ti, de que és justo e não te deixas levar pelas pessoas.

11. Tu pois, convence a toda a multidão para que não se engane a respeito do Cristo. Todo o povo e nós mesmos te obedecemos. Ergue-te pois sobre o pináculo do templo para que do alto sejas visível e todo o povo ouça tuas palavras, pois por causa da Páscoa reúnem-se todas as tribos, inclusive com os gentios.

  1. 12.     E assim os mencionados escribas e fariseus puseram Tiago em pé sobre o pináculo do templo e disseram-lhe aos gritos: "O tu, o justo!, a quem todos devemos obedecer, posto que o povo anda extraviado atrás de Jesus o crucificado, diga-nos quem é a porta de Jesus."
  2. 13.     E ele respondeu com grande voz: "Por que me perguntam sobre o Filho do homem? Ele também está sentado no céu à direita do grande poder e há de vir sobre as nuvens do céu[164]."
  3. 14.     E sendo muitos os que se convenceram completamente e ante o testemunho de Tiago, irromperam em louvores dizendo: "Hosana ao filho de Davi!". Então os mesmos escribas e fariseus novamente disseram uns aos outros: "Fizemos mal em proporcionar tal testemunho a Jesus, mas subamos e lancemo-lo para baixo, para que tenham medo e não creiam nele."
  4. 15.     E puseram-se a gritar dizendo: "Oh! Oh! Também o Justo extraviou-se!" E assim cumpriram a Escritura que se encontra em Isaías: Tiremos de nosso meio o justo, que nos é incômodo. Então comerão o fruto de suas obras.
  5. 16.     Subiram pois e lançaram abaixo o Justo. E diziam uns aos outros: "Apedrejemos a Tiago o Justo!" E começaram a apedrejá-lo, porque ao cair não chegou a morrer. Mas ele, virando-se, ajoelhou-se e disse: "Eu te peço Senhor, Deus Pai: Perdoa-os, porque não sabem o que fazem.

17. E quando estavam assim apedrejando-o, um sacerdote, um dos filhos de Recab, filho dos Recabim, dos quais o profeta Jeremias havia dado testemunho[165], gritava dizendo:

Parai, que estais fazendo? O Justo roga por vós!

18. E um deles, tecelão, agarrou o bastão com que batia os panos e deu com este na cabeça do Justo, e assim foi que sofreu o martírio. Enterra­ram-no naquele lugar, junto ao templo, e ainda se conserva sua coluna naquele lugar ao lado do templo. Tiago era já um testemunho veraz para judeus e para gregos de que Jesus é o Cristo. E em seguida Vespasiano os sitiou[166]."

19. Isto é o que Hegesipo relata minuciosamente, concordando ao menos com Clemente. Tiago era um homem tão admirável e tanto havia-se espalhado entre todos a fama de sua retidão, que até os judeus sensatos pensavam que esta era a causa do assédio de Jerusalém, iniciado imediatamente depois de seu martírio, e que por nenhum outro motivo estavam eles sofrendo-o senão pelo crime sacrílego cometido contra ele.

20. Na verdade, pelo menos Josefo não vacilou em atestar também isto por escrito com estas palavras:

"Isto sucedeu aos judeus como vingança por Tiago o Justo, irmão de Jesus, o chamado Cristo, porque exatamente os judeus o mataram, ainda que fosse um homem justíssimo[167]."

21. O mesmo autor descreve também a morte de Tiago no livro XX de suas Antigüidades com estas palavras:

"Sabendo César da morte de Festo, enviou a Albino como governador da Judéia. Mas Ananos o Jovem, sobre quem já dissemos que havia recebido o sumo sacerdócio, tinha um caráter especialmente resoluto e atrevido e formava parte da seita dos Saduceus, que nos juízos eram justamente os mais cruéis entre os judeus, como já demonstramos.

  1. 22.  Ananos sendo pois assim, considerando oportuna a ocasião por haver morrido Festo e achar-se Albinus ainda a caminho, convocou a assembléia de juízes, e fazendo conduzir perante ela o irmão de Jesus, chamado Cristo - chamava-se Tiago - e alguns mais para acusá-los de violar a lei, entregou-os para que fossem apedrejados.
  2. 23.  Mas todos os cidadãos considerados os mais sensatos e mais fiéis observadores da lei levaram a mal esta sentença e enviaram uma delegação secreta ao rei[168] para pedir-lhe que escrevesse a Ananos para que não levasse a cabo tal coisa, porque já desde o começo não agia com retidão. Alguns deles inclusive saíram ao encontro de Albinus, que viajava desde Alexan­dria, para informá-lo de que sem seu parecer não era permitido a Ananos convocar a assembléia.

24. Persuadido Albinus com o que lhe disseram, escreveu irritado a Ananos, ameaçando-o de pedir-lhe contas. E o rei Agripa destituiu-o por este motivo do sumo sacerdócio, que exercia há três meses, e instituiu a Jesus, o filho de Dameo."

Esta é a história de Tiago, do qual se diz que é a primeira carta das chamadas católicas.

25. Mas deve-se saber que não é considerada autêntica. Dos antigos não são muitos os que a mencionam, assim como a chamada de Judas, que é tam­bém uma das sete chamadas católicas. Ainda assim, sabemos que também estas, junto com as restantes, são utilizadas publicamente na maioria das igrejas.

 

XXIV

[De como Aniano foi nomeado primeiro bispo da Igreja de Alexandria depois de Marcos]

1. Transcorrendo o oitavo ano do império de Nero, o primeiro que recebeu em sucessão o governo da igreja de Alexandria depois de Marcos foi Aniano.

 

XXV

[Da perseguição nos tempos de Nero, na qual Paulo e Pedro foram adorna­dos com o martírio pela religião em Roma]

  1. 1.            Firmado Nero no poder, deu-se a práticas ímpias e tomou as armas contra a própria religião do Deus do universo. Descrever de que maldades foi capaz este homem não é tarefa para a presente obra.
  2. 2.            Já que, sendo muitos os que transmitiram em relatos precisos suas maldades, quem queira poderá aprender destes sobre a grosseira demência deste homem estranho que, levado por ela e sem a menor reflexão, produziu a morte de inúmeras pessoas e a tal ponto levou seu afã homicida que não se deteve nem mesmo ante os mais chegados e queridos, mas que até a sua mãe, seus irmãos, sua esposa e com eles muitos familiares, fez perecer com variadas formas de morte, como se fossem adversários e inimigos.
  3. 3.            Mas deve-se saber que a tudo o que foi dito sobre ele faltava acrescentar que foi o primeiro imperador que se mostrou inimigo da piedade para com Deus.
  4. 4.     Disto faz menção também o latino Tertuliano quando diz:

"Leiam vossas memórias. Nelas encontrareis que Nero foi o primeiro a perseguir esta doutrina, principalmente quando, depois de submeter todo o Oriente, em Roma era cruel para com todos. Nós nos ufanamos de ter um assim como autor de nosso castigo, porque quem o conhecer compreenderá que Nero não podia condenar nada que não fosse um grande bem."

  1. 5.            Assim pois, este, proclamado primeiro inimigo de Deus entre todos os que o foram, levou sua exaltação ao ponto de fazer degolar os apóstolos. De fato, diz-se que sob seu império Paulo foi decapitado na própria Roma, e que Pedro foi crucificado. E disto da fé o título de Pedro e Paulo que predominou para os cemitérios daquele lugar até o presente.
  2. 6.            Também o confirma um varão eclesiástico chamado Caio, que viveu quando Zeferino era bispo de Roma. Disputando por escrito com Proclo, líder da seita catafriga, diz sobre os lugares onde estão depositados os sagrados despojos dos mencionados apóstolos o seguinte:

7.    "Eu, por outro lado, posso mostrar-te os troféus dos apóstolos, porque se
queres ir ao Vaticano ou ao caminho de Ostia, encontrarás os troféus dos
que fundaram esta igreja[169]."

8. Que ambos sofreram martírio na mesma ocasião é afirmado por Dionísio, bispo de Corinto, em sua correspondência escrita com os romanos, nos seguintes termos:

"Nisto também vós, por meio de semelhante admoestação, fundistes as searas de Pedro e de Paulo, a dos romanos e a dos Coríntios, porque depois de ambos plantarem em nossa Corinto, ambos nos instruíram, e depois de ensinarem também na Itália no mesmo lugar, os dois sofreram martírio na mesma ocasião." Sirva também isto para maior confirmação dos fatos narrados.

 

XXVI

[Dos inumeráveis males que envolveram os judeus e da última guerra que eles moveram contra os romanos]

  1. 1.            Ao descrever Josefo com todo pormenor as desgraças que se abateram sobre toda a nação judia, além de muitas outras coisas, explica textualmente que muitíssimos judeus dos mais importantes, depois de serem ultrajados com a pena de açoites, foram crucificados por Floro na própria Jerusalém, e que este era procurador da Judéia quando novamente começou a acender-se a guerra, no décimo segundo ano do império de Nero.
  2. 2.            Depois diz que, após a revolta dos judeus, toda a Síria foi tomada por uma confusão espantosa; por toda parte os próprios habitantes das cidades maltratavam sem piedade os dessa raça, como se fossem inimigos, de forma que se podia ver as cidades repletas de cadáveres insepultos: corpos de anciãos jogados junto aos de crianças, e cadáveres de mulheres sem nada que cobrisse suas nudezes. Toda a província transbordava de calamidades indescritíveis. Mas a violência do que os ameaçava era maior do que os crimes de cada dia. Isto é o que literalmente diz Josefo. Esta era a situação dos judeus.

 

 

 

 

 

 

 

 

Livro III

 

I

[Em que partes da terra os apóstolos pregaram sobre Cristo]

  1. 1.            Esta era a situação dos judeus, enquanto os santos apóstolos e discípulos de nosso Salvador haviam se espalhado por toda a terra: a Tomás, como quer uma tradição, coube a Partia; a André a Cítia, a João a Ásia, entre os quais[170]se estabeleceu, morrendo em Éfeso.
  2. 2.            Pedro, segundo parece, pregou no Ponto, na Galácia e na Bitínia, na Capadócia e na Ásia[171], aos judeus da diáspora; por fim chegou a Roma e foi crucificado com a cabeça para baixo, como ele mesmo pediu para sofrer.
  3. 3.     E o que dizer de Paulo, que desde Jerusalém até o Ilírico cumpriu com a pregação do Evangelho de Cristo[172] e finalmente sofreu martírio em Roma sob Nero? Isto é dito por Orígenes literalmente no tomo III de seus Comentários ao Gênesis[173].

 

II

[Quem foi o primeiro que presidiu a Igreja de Roma]

1. Depois do martírio de Paulo e de Pedro, o primeiro a ser eleito para o episcopado da Igreja de Roma foi Lino. Ele é mencionado por Paulo quando escreve de Roma a Timóteo, na despedida ao final da carta[174].

III

[Sobre as cartas dos apóstolos]

  1. 1.                De Pedro reconhecemos uma única carta, a chamada I de Pedro. Os pró­prios presbíteros antigos utilizaram-na como algo indiscutível em seus próprios escritos. Por outro lado, sobre a chamada II carta, a tradição nos diz que não é testamentária[175]; ainda assim, por parecer proveitosa a muitos, é tomada em consideração junto com as outras Escrituras.
  2. 2.       Quanto aos Atos que levam seu nome e o Evangelho dito como seu, assim como a Pregação que se diz ser sua e o chamado Apocalipse, sabemos que de modo algum foram transmitidos entre os escritos católicos, pois nenhum autor eclesiástico, nem antigo nem moderno, utilizou testemunho tirado deles.
  3. 3.       À medida em que avance esta História farei propositadamente que, junto às sucessões, sejam indicados os escritores eclesiásticos, segundo as épocas, que utilizaram os livros discutidos e quais deles, e também o que dizem dos escritos testamentários e admitidos, e dos que não o são.
  4. 4.             Pois bem, os escritos que levam o nome de Pedro, dos quais somente uma única carta conhecemos como autêntica e admitida pelos presbíteros antigos, são os já referidos.
  5. 5.             Por outro lado, é evidente e claro que as catorze cartas são de Paulo. Contudo, não é justo ignorar que alguns rechaçaram a carta aos Hebreus, dizendo que a Igreja de Roma não a admite por crer que não é de Paulo. O que foi dito sobre ela por aqueles que me precederam será exposto a seu devido tempo. Naturalmente, também não aceitei entre os escritos indiscutidos os Atos que se dizem ser dele.
  6. 6.             Mas, como ocorre que o mesmo apóstolo, nas despedidas finais da carta aos Romanos, menciona, junto com outros, a Hermas - de quem se diz que é o livro do Pastor-, deve-se saber que alguns também rechaçam este livro e que por causa deles não se pode contá-lo entre os admitidos; por outro lado, outros julgam-no muito necessário, especialmente para os que preci­sam de uma introdução elementar. Por esta razão sabemos que foi lido publicamente nas igrejas e comprovamos que alguns escritores dos mais antigos fizeram uso dele.
  7. 7.      Baste o dito como exposição de quais são as divinas Escrituras não discutidas e quais são as que nem todos admitem.

 

IV

[Sobre a primeira sucessão dos apóstolos]

  1. 1.                Que Paulo pregou aos gentios e que, desde Jerusalém até o Ilírico, deitou os alicerces das igrejas, está bem claro em suas próprias palavras[176] e no que Lucas narra nos Atos.
  2. 2.       Pelas palavras de Pedro em sua Carta, da qual já dissemos que é aceita, e que escreve aos hebreus da diáspora, moradores do Ponto, da Galácia, da Capadócia, da Ásia e da Bitínia, percebe-se claramente em que províncias ele pregou a Cristo e transmitiu a doutrina do Novo Testamento aos que procediam da circuncisão[177].
  3. 3.                Não é porém fácil dizer quantos e quais destes, convertidos em homens de zelo genuíno, foram considerados capazes de apascentar as igrejas fundadas por estes apóstolos, a não ser os que podem ser vistos nos escritos de Paulo.
  4. 4.       Este realmente teve inúmeros colaboradores e - como ele mesmo os chama - companheiros de luta[178]. A maior parte ele considera digna de memória imorredoura e em suas próprias cartas dá contínuo testemunho deles. E não somente isto, mas também Lucas nos Atos dá uma lista dos discípulos de Paulo e os menciona pelo nome.
  5. 5.             Pelo menos sobre Timóteo refere-se que foi o primeiro a ser designado para o episcopado da igreja de Éfeso[179], assim como Tito, das igrejas de Creta[180].
  6. 6.             Lucas, por outro lado, oriundo de Antioquia por sua linhagem e médico de profissão[181], foi durante a maior parte do tempo companheiro de Paulo. Mas seu trato com os outros apóstolos também não foi superficial: deles adquiriu a terapêutica das almas, da qual nos deixou exemplos em dois livros divinamente inspirados: o Evangelho, que ele confessa ter composto segundo o que lhe transmitiram os que foram testemunhas oculares e se fizeram servidores da doutrina, dos quais ele diz que seguiu já desde o começo[182], e os Atos dos Apóstolos que compôs, já não com o que tinha ouvido, mas com o que viu com os próprios olhos.
  7. 7.      Diz-se também que Paulo costumava mencionar o Evangelho de Lucas sempre que, escrevendo, dizia como se se tratasse de um evangelho seu: segundo meu Evangelho[183].
  8. 8.      Dos restantes seguidores de Paulo, está provado que Crescente foi enviado por ele à Gália[184]; e Lino, que é mencionado na II carta a Timóteo indican­do que se encontra com ele em Roma[185], já foi demonstrado anteriormente que foi designado para o episcopado da igreja de Roma, o primeiro depois de Pedro.
  9. 9.             Paulo também atesta que Clemente - instituído terceiro bispo da Igreja de Roma - foi seu colaborador e companheiro de luta[186].

 

  1. 10.     Além destes há também o areopagita chamado Dionísio, sobre o qual Lucas escreve nos Atos[187] que foi o primeiro que creu depois do discurso de Paulo aos atenienses no Areópago, e de quem outro antigo Dionísio, pastor da igreja de Corinto, conta que foi o primeiro bispo de Atenas.

11. Mas, à medida que avançarmos no caminho, diremos oportunamente, segundo as épocas, o referente à sucessão dos apóstolos. Agora sigamos o fio da narrativa.

 

 

 

V

[Sobre o último assédio dos judeus depois de Cristo]

  1. 1.            Depois de Nero ter exercido o poder durante treze anos, e tendo os reinados de Galba e Oto durado um ano e seis meses, Vespasiano, que havia se distinguido nas operações bélicas contra os judeus, foi nomeado imperador na própria Judéia, após ser proclamado senhor absoluto pelo exército ali acampado. Encaminhando-se então a Roma, pôs em mãos de seu filho Tito a guerra contra os judeus.
  2. 2.            Depois da ascensão de nosso Salvador, os judeus acrescentaram ao crime cometido contra ele a invenção de inúmeras ameaças contra seus apóstolos: Estevão foi o primeiro que eliminaram, apedrejando-o[188]; depois dele, Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João, a quem decapitaram[189]; e depois de todos, Tiago, o que depois da ascensão de nosso Salvador foi o primeiro designado para o trono episcopal de Jerusalém e morreu da forma que já descrevemos. E os demais apóstolos sofreram milhares de ameaças de morte e foram expulsos da terra da Judéia. Porém, com o poder de Cristo, que havia-lhes dito: Ide e fazei discípulos de todas as nações em meu nome [190], dirigiram seus passos para todas as nações para ensinar a mensagem.
  3. 3.            E não apenas eles. Também o povo da igreja de Jerusalém, por seguir um oráculo enviado por revelação aos notáveis do lugar, receberam a ordem de mudar de cidade antes da guerra e habitar certa cidade da Peréia chamada Pella. Tendo os que creram em Cristo emigrado até lá desde Jerusalém, a partir deste momento, como se todos os homens santos tivessem abandonado por completo a própria metrópole real dos judeus e toda a região da Judéia, a justiça divina alcançou os judeus pelas iniqüidades que cometeram contra Cristo e seus apóstolos, e apagou dentre os homens toda aquela geração de ímpios.

4.   Quem pois quiser saber com exatidão os males que então caíram sobre a nação em todo lugar, e como especialmente os habitantes da Judéia viram-se empurrados ao fundo das calamidades, quantos milhares de jovens, de mulheres e de crianças morreram pela espada, pela fome, e inúmeras outras formas de morte, e quantas e quais cidades da Judéia foram sitiadas, e também quantos horrores e pior do que horrores atingiram os que se refugiaram na mesma Jerusalém, por ser um metrópole muito fortificada, assim como a índole de toda a guerra, os acontecimentos que nela se sucederam e como, finalmente, a abominação da desolação anunciada pelos profetas se instalou no próprio templo de Deus, tão célebre antigamente, que sofreu todo tipo de destruição e, por último, foi aniquilado pelo fogo: tudo isso encontrará na narrativa escrita por Josefo.

  1. 5.            Mas é necessário assinalar que este mesmo autor refere que o número dos que se concentraram nos dias da festa da Páscoa, vindos de toda a Judéia para Jerusalém, como num cárcere, para usar suas palavras, era de uns três milhões.
  2. 6.            Era necessário pois, que nos dias em que causaram a paixão do Salvador e benfeitor de todos e Cristo de Deus, nestes mesmos, encerrados como num cárcere, recebessem a ruína que os alcançava da justiça de Deus.
  3. 7.     Mas passando por alto o que lhes sobreveio e o que lhes foi feito pela espada e de outras maneiras, acho necessário apresentar apenas as cala­midades causadas pela fome, para que os que leiam este escrito possam saber em parte como não tardou muito para que os alcançasse o castigo divino por seu crime contra o Cristo de Deus.

 

VI

[Sobre a fome que oprimiu os judeus]

1.    Assim pois, se tomas outra vez em tuas mãos o livro V das Histórias de Josefo, leia a tragédia que lhes aconteceu então:

"Para os ricos - diz - ficar era o mesmo que perder-se, pois, sob pretexto de que deserdavam, assassinavam qualquer um pelos seus bens. Com a fome crescia o desespero dos rebeldes, e dia a dia uma e outro se acendiam terrivelmente.

  1. 2.     O trigo estava invisível, mas eles invadiam as casas e as revistavam. Então, se o encontravam, maltratavam-nos por ter negado; se não o encontravam, torturavam-nos por tê-lo escondido tão cuidadosamente. A prova de ter ou não ter eram os corpos dos desgraçados: os que ainda se agüentavam em pé pareciam ter alimentos em abundância; os que já estavam consumidos eram deixados em paz: parecia fora de propósito matar alguém que logo morreria de inanição.
  2. 3.            Muitos davam secretamente seus bens em troca de uma medida de trigo se eram ricos; de cevada os mais pobres. Trancavam-se no mais oculto de suas casas e, impelidos pela necessidade, uns comiam o trigo cru; outros o coziam à medida que a necessidade e o medo ditavam.
  3. 4.     Não se punha a mesa, antes, tiravam do fogo a comida ainda crua e a devoravam. O alimento era miserável e o espetáculo deplorável: os mais fortes tomando tudo e os fracos lamentando-se.

5.     A fome excede todos os sofrimentos, mas nada ela destrói mais do que o senso de dignidade, pois o que em outro tempo seria tido como digno de respeito é depreciado em tempo de fome. Assim, as mulheres tiravam os alimentos da própria boca dos maridos, os filhos da de seus pais e, o que é demasiado lamentável, as mães das bocas de seus filhos, e enquanto os seres mais queridos se consumiam entre suas mãos, nada os refreava de tirar-lhes as últimas gotas que os permitiam viver.

  1. 6.             Mas, mesmo sendo esta sua comida, não permanecia oculta. Por toda parte caíam-lhes em cima os rebeldes em busca dessa presa. Quando viam uma casa fechada, era sinal de que os ocupantes tinham conseguido comida, e imediatamente arrombavam as portas e se precipitavam para dentro, e só lhes faltava apertar as gargantas e arrancar-lhes o bocado.
  2. 7.      Golpeavam os anciãos que não soltavam seus alimentos e arrancavam o cabelo das mulheres que escondiam o que tinham nas mãos. Não havia compaixão nem pelos velhos nem pelas crianças, mas levantavam as crianças que seguravam seu bocado e as deixavam cair contra o solo. Com aqueles que, adiantando-se a seu ataque, engoliam antes o que ten­tariam tirar-lhes, eram ainda mais cruéis, como se tivessem sofrido uma injustiça.
  3. 8.      Usavam espantosos métodos de tortura para descobrir comida: obstruíam a uretra dos desgraçados com grãos de legumes e trespassavam-lhes o reto com varas pontiagudas. Padeciam-se tormentos que espantam apenas por ouvi-los, até confessar a posse de um único pedaço de pão e descobrir um só punhado de farinha escondida.
  4. 9.      Mas os torturadores não passavam fome alguma - sua crueldade seria menor se atendesse a uma necessidade -, mas exercitavam seu louco orgulho e iam ajuntando provisões para os dias vindouros.
  5. 10.      Seguiam os que à noite se arrastavam até os postos romanos para reco­lher legumes silvestres e ervas. Quando estes pensavam que já haviam esca­pado dos inimigos, aqueles tiravam-lhes o que levavam, e muitas vezes, se os infelizes suplicavam invocando pelo terrível nome de Deus que lhes deixassem uma parte do que com tanto perigo tinham trazido, não lhes deixavam nem isto, e ainda podiam dar-se por satisfeitos se, além de serem despojados, não eram assassinados."

11.  A isto, depois de outras coisas, acrescenta:

"Com o êxodo cortou-se para os judeus também toda esperança de salvação, e a fome, abatendo-se sobre cada casa e cada família, ia devorando o povo. Os terrenos enchiam-se de mulheres e de crianças de peito mortos, e as vielas de cadáveres de anciãos.

12.  Rapazes e jovens, inchados, vagavam pelas praças como espectros e caíam mortos onde a dor os colhesse. Os doentes não tinham forças para enterrar seus parentes, e os que teriam podido negavam-se, por serem tantos os mortos e pela incerteza de seu próprio destino. De fato, muitos caíam mortos junto aos que tinham acabado de enterrar, e muitos iam a sua tumba antes que a
necessidade o impusesse.

  1. 13.     Não havia lamentos nem choro por estas calamidades: a fome afogava os sentimentos, e os que lentamente morriam contemplavam com olhos secos os que morriam antes deles. Um silêncio profundo e uma noite carregada de morte envolviam a cidade. E pior do que tudo isto eram os ladrões.
  2. 14.     Penetravam nas casas como ladrões de tumbas, despojavam os cadáveres e, depois de arrancar os panos que cobriam os corpos, iam embora entre risa­das. Testavam o fio de suas espadas nos cadáveres e, provando o ferro, atravessavam alguns, que já caídos, ainda viviam. Mas se alguém lhes pedia que utilizassem nele sua força e sua espada, desdenhavam-no e abandona­vam-no à fome. E todo o que expirava olhava fixamente para o templo, porque deixava vivos atrás de si os rebeldes.
  3. 15.     Estes, no começo, por não suportar o fedor, mandavam enterrar os mortos às custas do tesouro público, mas logo, quando não davam mais conta, atiravam-nos sobre as muralhas aos barrancos. Quando Tito fez a ronda por aqueles barrancos e viu que estavam repletos de cadáveres e o espesso líquido escuro que manava por debaixo dos cadáveres em putrefação, pôs-se a gemer e levantando as mãos tomava a Deus por testemunha de que aquilo não era obra sua."
  4. 16.     Depois de acrescentar mais algumas coisas, continua dizendo:

"Eu não poderia deixar de expressar o que o sentimento me ordena: creio que, se os romanos tivessem demorado em sua ação contra os culpados, o abismo teria engolido a cidade, ou as águas a teriam submergido, ou teria sido alcançada pelos raios de Sodoma, pois a geração que continha era muito mais ímpia do que as que sofreram estes castigos. E pela demência criminosa destas pessoas, o povo inteiro pereceu com elas."

17. E no livro VII escreve o seguinte:

"Foi infinito o número dos que pereceram na cidade por fome, e os padecimentos eram indizíveis. Em cada casa havia guerra como se aparecesse em um canto uma sombra de comida, e os que mais se queriam entre si pega­vam-se aos tapas para tirar o miserável sustento da vida. Nem sequer nos moribundos confiava a necessidade.

18. Os ladrões revistavam inclusive os que estavam expirando, para que alguém não escondesse alimentos sob a roupa e fingisse estar morto. Outros, com a boca aberta por efeito da desnutrição, andavam cambaleando e desanca­dos como cães raivosos e empurravam as portas como fazem os bêbados e, em sua impotência, entravam nas mesmas casas duas ou três vezes em uma só hora.

19. A necessidade fazia com que levassem tudo à boca, e quando recolhiam alimentos até indignos dos animais irracionais mais repugnantes, levavam-no para comer escondido, a assim acabaram por não abster-se nem dos cintos e dos calçados, tiravam as peles de seus escudos e as mastigavam. Para alguns até fiapos de ervas velhas eram alimento, outros recolhiam fibras de plantas e vendiam uma porção mínima por quatro dracmas áticos.

  1. 20.     E o que haveria para dizer sobre a impudência das pessoas presas do desâ­nimo? Porque vou mostrar uma obra sua que não está narrada nem entre os gregos nem entre os bárbaros, espantosa de dizer, incrível de escutar. Eu pelo menos, para não dar a impressão de que estou inventando para a posteri­dade, de bom grado omitiria esta calamidade se não tivesse uma infinidade de testemunhos contemporâneos meus. Além disso prestaria pouco serviço a minha pátria se renunciasse a relatar os males que de fato padeceram.

21. Uma mulher das que habitavam na outra margem do Jordão, chamada Maria, filha de Eleazar, da aldeia de Batezor - nome que significa "casa de hissôpo" - notável por suas riquezas e sua linhagem, fugiu para Jerusalém com o resto da multidão e com esta compartilhava o assédio.

22. Os tiranos tiraram-lhe todos os bens que havia reunido e levado consigo à cidade desde Peréia. O resto de seu enxoval e o pouco alimento que encon­traram foi sendo roubado por pessoas armadas que entravam a cada dia. Foi grande a indignação daquela pobre mulher, que muitas vezes injuriava e maldizia os ladrões para excitá-los contra si mesma.

23. Mas como ninguém a matava, movidos pela ira ou pela compaixão, e cansada de buscar alimentos para outros, que já eram impossíveis de encontrar em parte alguma, com as entranhas e a medula trespassadas pela fome, tomou como conselheiras a cólera e a necessidade e se lançou contra a natureza, agarrou o filho que tinha - criança ainda de peito - e disse:

  1. 24.  Criatura desgraçada! Em meio à guerra, à fome e à revolta, para quem vou guardar-te? Entre os romanos, se por acaso cairmos vivos em suas mãos, a escravidão; mas a fome se antecipa à própria escravidão e os rebeldes são ainda piores do que ambas as coisas. Eia! Seja alimento para mim, maldição para os rebeldes e fábula para o mundo: a única coisa que faltava às calamidades dos judeus!
  2. 25.  E enquanto dizia estas coisas, deu morte a seu filho. Depois assou-o e comeu a metade; o resto guardou escondido. Em seguida apareceram os rebeldes, e farejando a ímpia exalação, ameaçaram a mulher de degolá-la imedia­tamente se não lhes mostrasse o que tinha preparado. Ela então lhes disse que para eles guardara uma boa porção e revelou o que restava de seu filho.
  3. 26.  O horror e o pasmo surpreendeu-os na hora e ficaram cravados no lugar diante daquele espetáculo. Mas ela disse: é meu próprio filho e eu o fiz. Comei, pois também eu comi. Não sejais mais brandos do que uma mulher nem mais compassivos do que uma mãe. Mas se por escrúpulos piedosos recusais meu sacrifício, eu já comi por vós, fique o resto também para mim.
  4. 27.  Depois disto, aqueles foram-se tremendo: foi a única vez em que se acovar­daram e que, de malgrado, cederam à mãe tal comida. Em seguida a cidade inteira encheu-se de horror, e todo o mundo estremeceu ao ser-lhe apre­sentado frente aos olhos aquele crime como sendo seu próprio. 28. E entre os esfomeados havia pressa para morrer e uma certa inveja pelos que haviam se adiantado morrendo antes de ouvir e contemplar semelhantes horrores."

Esta foi a recompensa dos judeus por sua iniqüidade e impiedade para com o Cristo de Deus.

 

VII

[Sobre as profecias de Cristo]

  1. 1.            É justo acrescentar a pregação infalível de nosso Salvador pela qual mostrava estas mesmas coisas quando profetizava assim: Aí das que estiverem grávidas e das que amamentarem naqueles dias! Orai para que a vossa fuga não se dê no inverno, nem no sábado; porque nesse tempo haverá grande tribulação, como desde o princípio do mundo até agora não tem havido, nem haverá jamais[191].
  2. 2.            Somando o número total de mortos, o escritor diz que pela fome e pela espada pereceram um milhão e cem mil pessoas; que os rebeldes e bandidos que ainda sobraram foram se denunciando uns aos outros depois da tomada da cidade e foram executados; que os jovens mais esbeltos e que sobressaíam por sua beleza física foram reservados para a cerimônia do "triunfo", e do resto da população, os que passavam de dezessete anos, uns eram enviados acorrentados aos trabalhos forçados no Egito, e outros, mais numerosos, foram distribuídos pelas províncias para fazê-los perecer nos teatros pela espada ou pelas feras; e os que ainda não tinham chegado aos dezessete anos eram conduzidos cativos para serem vendidos. Somente destes o número dava um total de uns noventa mil[192].
  3. 3.            Estes acontecimentos ocorreram deste modo no segundo ano do império de Vespasiano[193], segundo as predições de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, que, por seu divino poder, havia visto de antemão estas mesmas coisas como se já estivessem presentes e havia chorado e soluçado, segundo a Escritura dos sagrados evangelistas, que inclusive acrescentam suas próprias palavras: umas, as que disse dirigindo-se à mesma Jerusalém:

4.    Se tu conheceras ao menos neste dia o que diz respeito a tua paz! Mas agora está oculto aos teus olhos. Porque virão dias sobre ti, e teus inimigos te rodearão de paliçadas, te cercarão e por todos os lados te apertarão. E te assolarão a ti e a teus filhos[194].

  1. 5.             E outras como referindo-se ao povo: Porque haverá grande necessidade sobre a terra e ira contra este povo. E cairão ao fio da espada e serão levados cativos a todas as nações. E Jerusalém será pisoteada pelos gentios, até que sejam cumpridos os tempos destes povos[195]. E outra vez: E quando virdes Jerusalém cercada por exércitos, sabei então que terá chegado sua desolação[196].
  2. 6.      Se alguém comparar as palavras de nosso Salvador com os demais relatos do escritor acerca da guerra inteira, como não ficar admirado e confessar como verdadeiramente divinas e sobrenaturalmente prodigiosas a presciência e a predição de nosso Salvador?
  3. 7.      Portanto, sobre o acontecido à nação inteira depois da paixão do Salvador e dos gritos com os quais a plebe judia pediu para livrar da morte o ladrão e assassino e suplicou que tirassem de seu meio o autor da vida, não haverá necessidade de acrescentar nada à narrativa.
  4. 8.      Contudo, seria justo acrescentar o que poderia ser significativo sobre o amor da divina providência aos homens, pois retardou a destruição dos culpados durante quarenta anos completos depois de seu crime contra Cristo. Durante estes anos, numerosos apóstolos e discípulos, e o próprio Tiago, primeiro bispo dali e chamado irmão do Senhor, que ainda viviam e moravam na mesma cidade de Jerusalém, mantinham-se fiéis ao lugar como fortíssima muralha.
  5. 9.      A providência divina até aquele momento mostrava sua grande paciência, para o caso de que se arrependessem de seu feito e alcançassem assim o perdão e a salvação; e como se tal longanimidade fosse pouco, deixava ver sinais divinos extraordinários do que lhes sucederia se não se arrependessem. Também estes sinais foram considerados notáveis pelo autor citado. Nada melhor do que oferecê-los aos que lêem esta obra.

 

VIII

[Dos sinais que precederam a guerra]

1. Toma pois, e lê o que apresenta no livro VI de suas Histórias com estas palavras:

"Naquele tempo os impostores e os que levantavam tais calúnias contra Deus pervertiam o povo miserável, de forma que nem percebiam nem davam crédito a tais prodígios bem claros que anunciavam de antemão a iminente desolação; antes, como se aturdidos por um raio e como se não tivessem olhos nem alma, faziam ouvidos surdos às mensagens de Deus.

  1. 2.             Estas foram: um astro que se deteve sobre a cidade, semelhante a uma espada de dois gumes, e um cometa que durou todo um ano. Outra vez foi quando, antes da insurreição e dos distúrbios que levaram à guerra, estando o povo reunido para celebrar a festa dos ázimos, no oitavo dia do mês de Jantico, à nona hora da noite, brilhou sobre o altar e o templo uma luz tão grande que poder-se-ia pensar que era dia, e isto durou uma meia hora. Aos ignorantes poderia parecer um bom sinal, mas os escribas interpretaram-no corretamente antes que os fatos ocorressem.
  2. 3.      E na mesma festa, uma vaca que o sumo sacerdote conduzia ao sacrifício pariu um cordeiro no meio do templo.
  3. 4.      E a porta oriental do interior, que era de bronze e muito pesada, e que havia sido fechada ao anoitecer com dificuldade por vinte homens que a trancaram solidamente com ferrolhos presos com ferro, além de ter gonzos profundos, abriu-se sozinha à sexta hora da noite.
  4. 5.             E passada a festa, não muito depois, no vigésimo primeiro dia de Artemisio, apareceu um fantasma demoníaco de tamanho incrível. E o que se passará a dizer poderia parecer mentira se não tivesse sido contado pelos mesmos que o viram e se os sofrimentos que se seguiram não fossem dignos destes sinais. De fato, antes do pôr-do-sol, apareceram pelo ar em redor de toda a região carros e falanges armadas que se lançavam através das nuvens e rodeavam as cidades.
  5. 6.      E na festa chamada Pentecostes, à noite, entrando os sacerdotes no templo, como de costume, para exercer suas funções, dizem que primeiramente perceberam movimento e ruído de golpes, e logo um grito em uníssono: Saiamos daqui!
    1. 7.             E o que é mais terrível: um homem chamado Jesus, filho de Ananías, homem simples, camponês, quatro anos antes da guerra, quando a cidade desfru­tava da maior paz e do máximo esplendor, veio à festa, pois era costume que todos erigissem tendas em honra a Deus[197], e de repente começou a gritar pelo templo: Voz do oriente! Voz do ocidente! Voz dos quatro ven­tos! Voz sobre Jerusalém e sobre o templo! Voz dos recém-casados e casadas! Voz sobre todo o povo! Dia e noite gritava isto por todas as vielas.
    2. 8.      Mas alguns cidadãos notáveis, irritados pelo mau agouro, prenderam o homem e maltrataram-no, enchendo-o de feridas. Mas ele, que não falava em proveito próprio nem por conta própria, continuava gritando aos presen­tes o mesmo que antes.
    3. 9.      Pensando então os chefes que a agitação daquele homem era algo demoníaco, conduziram-no ante o procurador romano[198]. Ali, dilacerado com açoites até os ossos, não suplicou nem derramou uma lágrima, mas, tornando sua voz tão chorosa quanto possível, a cada ferida respondia: Ai, ai de Jerusalém!"
    4. 10.  Comenta o mesmo Josefo outro fato mais extraordinário. Diz que nas escrituras sagradas encontrou-se um oráculo com este conteúdo: que naquele tempo alguém saído de seu país regeria o mundo. O próprio Josefo concluiu que o oráculo tinha sido cumprido em Vespasiano[199].
    5. 11.  Mas este não governou a todo o mundo, mas somente à parte submetida aos romanos. Seria pois mais justo referi-lo a Cristo, a quem o Pai havia dito: Pede-me e te darei nações como herança e os confins da terra como tua possessão[200]. Pois bem, por este mesmo tempo chegara a toda a terra a voz dos santos apóstolos e aos confins do mundo suas palavras[201].

 

IX

[De Josefo e os escritos que deixou]

1.   Depois de todas estas coisas, seria bom não ignorar o próprio Josefo – que tanto material forneceu para a obra que tens entre as mãos - de que país e de que família procedia. Também será ele mesmo quem nos declarará isto.

      Diz assim:

"Josefo, filho de Matias, sacerdote originário de Jerusalém, que primeiro fez guerra pessoalmente contra os romanos e logo, por necessidade, ficou à mercê dos acontecimentos posteriores[202]."

  1. 2.     Foi o mais famoso de todos os judeus de sua época, e não somente entre seus compatriotas, mas também entre os romanos, ao ponto de ser honrado com uma estátua[203] em Roma, e seus livros serem considerados dignos de uma biblioteca.
  2. 3.     Josefo expôs toda a Antigüidade judaica em vinte livros completos, e a História da guerra romana de seu tempo em sete. Ele mesmo atesta que não a entregou apenas em língua grega, mas também em sua língua materna[204]. Por tudo o mais é digno de crédito.
  3. 4.      Há também dele outros livros dignos de estudo, intitulados Sobre a antigüi­dade dos judeus. Neles refuta o gramático Apion, que tinha então composto um tratado contra os judeus. Também refuta a outros que haviam tentado igualmente caluniar as instituições pátrias do povo judeu.
  4. 5.             No primeiro destes livros estabelece o número de escritos do chamado Antigo Testamento, mostrando quais são os não discutidos entre os hebreus, como provenientes de uma antiga tradição. Diz textualmente:

 

X

[De que maneira cita os livros divinos]

  1. 1.            "Não há pois entre nós milhares de livros em desacordo e em mútua contradição, mas há sim, apenas vinte e dois livros que contêm a relação de todo o tempo e que com justiça são considerados divinos.
  2. 2.            Destes, cinco são de Moisés, e compreendem as leis e a tradição da criação do homem até a morte de Moisés. Este período abarca quase três mil anos.
  3. 3.            Desde a morte de Moisés até a de Artaxerxes, rei dos persas depois de Xerxes, os profetas posteriores a Moisés escreveram os fatos de suas épocas em treze livros. Os outros quatro contêm hinos em honra a Deus e regras de vida para os homens.
  4. 4.     Desde Artaxerxes até nossos dias tudo foi escrito, mas nem tudo merece a mesma confiança que o anterior, por não apresentar sucessão exata dos profetas.
  5. 5.            Mas os fatos manifestam como nós nos sentimos próximos a nossas escri­turas. Assim é que, transcorrido já tanto tempo, ninguém se atreveu a acres­centar, nem tirar, nem mudar nada nelas, antes, é natural a todos os judeus, já desde seu nascimento, crer que estes escritos são decretos de Deus, e aferrar-se a eles e prazerosamente morrer por eles caso seja necessário."
  6. 6.            Estas palavras do autor aqui apresentadas não deixarão de ser úteis. Há também outra obra escrita por ele, não sem nobreza, Sobre a supremacia da razão, que alguns intitularam Macabeus, porque contém as lutas dos hebreus valentemente sustentadas em defesa da piedade para com Deus e referidas nos escritos assim chamados Dos Macabeus[205].
    1. 7.        E quase no final do livro XX de suas, Antigüidades, o mesmo autor acrescenta a declaração de que tem o propósito de escrever em quatro livros, seguindo as crenças pátrias dos judeus, acerca de Deus e de sua essência, e sobre as leis; porque, segundo elas, algumas coisas podem ser feitas e outras são proibidas. O mesmo autor, em seus próprios tratados, menciona outras obras por ele produzidas.
    2. 8.             Além disso, será bom mencionar também as palavras que estão no final de suas Antigüidades, para confirmação dos testemunhos que dele tomei. Quando acusa Justo de Tiberíades - que tentara fazer, assim como ele mesmo, uma história dos fatos daquele tempo - de não haver escrito a verdade, depois de incluir outras muitas emendas, acrescenta textualmente o que segue:
    3. 9.             "Na verdade eu não tenho os mesmos temores que tu tens no que se refere a meus escritos, pois entreguei meus livros aos próprios imperadores estando os fatos ainda quase ante os olhos, porque tinha consciência de ter conservado a tradição da verdade, e não me enganei ao esperar obter seu testemunho.
    4. 10.      Também enviei minha narrativa a muitos outros, alguns dos quais tinham estado na guerra, como o rei Agripa e alguns parentes seus.
    5. 11.      E ocorre que o imperador Tito quis que o público fosse informado dos fatos somente através destes livros, tanto é assim que ele assinou a ordem de publicá-los de próprio punho. E o rei Agripa escreveu sessenta e duas cartas atestando que os livros transmitem a verdade."

Destas cartas Josefo inclusive cita duas. Mas baste o que já dissemos sobre ele, e prossigamos.

 

XI

[De como Simeão dirige a Igreja de Jerusalém depois de Tiago]

1. Depois do martírio de Tiago e da tomada de Jerusalém, que se seguiu ime­diatamente, é tradição que os apóstolos e discípulos do Senhor que ainda viviam reuniram-se de todas as partes num mesmo lugar, junto com os que eram da família do Senhor segundo a carne (pois muitos deles ainda viviam), e todos celebraram um conselho sobre quem seria considerado digno de suceder a Tiago, e todos, por unanimidade, decidiram que Simeão, o filho de Clopas - mencionado também pelo texto do Evangelho[206] -, era digno do trono daquela igreja, por ser primo do Salvador, ao menos segundo se diz, pois Hegesipo refere que Clopas era irmão de José.

XII

[De como Vespasiano ordena que se busquem os descendentes de Davi]

1. Depois disso Vespasiano, após a tomada de Jerusalém, deu a ordem de buscar todos os descendentes de Davi, para que entre os judeus não sobras­se ninguém da estirpe real. Por esta causa justificou-se mais uma grande perseguição aos judeus[207].

 

 

XIII

[De como o segundo bispo de Roma é Anacleto]

1. Depois de imperar Vespasiano durante dez anos, sucede-o como imperador seu filho Tito. No segundo ano de seu reinado, Lino, bispo da igreja de Roma, depois de exercer o cargo durante doze anos, transmite-o a Anacleto. Tito, que imperou dois anos e uns poucos meses, foi sucedido por seu irmão Domiciano.

XIV

[De como o segundo a dirigir os alexandrinos é Abílio]

1. No quarto ano de Domiciano morre Aniano, primeiro bispo da igreja de Alexandria, após haver completado vinte e dois anos, sucede-o Abílio como segundo bispo.

XV

[De como o terceiro bispo de Roma, depois de Anacleto, é Clemente]

1. No duodécimo ano do mesmo reinado[208], Clemente sucede a Anacleto, que havia sido bispo da igreja de Roma durante doze anos. O apóstolo, em sua carta aos Filipenses, faz saber a estes que Clemente era colaborador seu, dizendo: Com Clemente também e os demais colaboradores meus, cujos nomes estão no livro da vida[209].

XVI

[Da carta de Clemente]

1. Deste existe uma Carta universalmente admitida, longa e admirável, que escreveu em nome da igreja de Roma à dos Coríntios, tendo como motivo uma sedição ocorrida em Corinto. Sabemos que esta carta foi lida publica­mente na assembléia na maior parte das igrejas, não apenas antigamente, mas também em nossos dias. E Hegesipo é testemunha suficiente de que no tempo indicado houve a sedição de Corinto.

XVII

[Da perseguição sob Domiciano]

1. Domiciano deu provas de uma grande crueldade para com muitos, dando morte sem julgamento razoável a não pequeno número de patrícios e de homens ilustres, e castigando com o desterro fora das fronteiras e confisco de bens a outras inúmeras personalidades sem causa alguma. Terminou por constituir a si mesmo sucessor de Nero na animosidade e guerra contra Deus. Efetivamente ele foi o segundo a promover a perseguição contra nós, apesar de que seu pai Vespasiano nada de mal planejou contra nós.

 

XVIII

[Sobre o apóstolo João e o "Apocalipse"]

  1. 1.            É tradição[210] que, neste tempo, o apóstolo e evangelista João, que ainda vivia, foi condenado a habitar a ilha de Patmos por ter dado testemunho do Verbo de Deus.
  2. 2.            Pelo menos Irineu, quando escreve acerca do número do nome aplicado ao anticristo no chamado Apocalipse de João[211], diz no livro V Contra as heresias, textualmente sobre João o que segue:
  3. 3.            Mas se fosse necessário atualmente proclamar abertamente seu nome[212], seria feito por meio daquele que também viu o Apocalipse, já que não faz muito tempo que foi visto, mas quase em nossa geração, ao final do império de Domiciano."
  4. 4.     Mas deve-se saber que de tal maneira brilhou por aqueles dias o ensinamento de nossa fé, que até os escritores alheios a nossa doutrina não vacilaram em transmitir em suas narrativas a perseguição e os martírios que então ocorreram. Indicaram inclusive com total exatidão a data ao referir que no décimo quinto ano de Domiciano, Flávia Domitila, filha de uma irmã de Flávio Clemente, um dos cônsules daquele ano em Roma, junto com muitos outros, foi castigada com o desterro à ilha de Pontia, por causa de seu testemunho sobre Cristo.

 

XIX

[De como Domiciano ordena a morte aos descendentes de Davi]

1. O próprio Domiciano deu ordem de executar os membros da família de Davi, e uma antiga tradição diz que alguns hereges acusaram os descen­dentes de Judas - que era irmão do Salvador segundo a carne —, com o pretexto de que eram da família de Davi e parentes do próprio Cristo[213]. Isto é o que declara Hegesipo quando diz textualmente:

 

XX

[Dos parentes de nosso Salvador]

1. "Da família do Senhor viviam ainda os netos[214] de Judas, seu irmão segundo a carne[215], aos quais delataram por serem da família de Davi. O evocatus[216]conduziu-os à presença do césar Domiciano, porque este, assim como Herodes, temia a vinda de Cristo.

  1. 2.             Perguntou-lhes se descendiam de Davi; eles o admitiram. Perguntou-lhes então quantas propriedades tinham ou de quanto dinheiro dispunham, e eles disseram que ambos não possuíam mais do que nove mil denários, metade de cada um, e ainda assim afirmaram que não o possuíam em metal, mas que era a avaliação de apenas trinta e nove pletros de terra, cujos impostos pagavam e que eles mesmos cultivavam para viver."
  2. 3.             Então mostraram suas mãos e juntaram como testemunho de seu trabalho pessoal a dureza de seus corpos e os calos que haviam se formado em suas próprias mãos pelo trabalho contínuo.
  3. 4.      Perguntados acerca de Cristo e de seu reino: que reino era este e onde e quando se manifestaria, deram como explicação que não era deste mundo nem terreno, mas celeste e angélico e que se dará no final dos tempos; então Ele virá com toda sua glória e julgará os vivos e os mortos e dará a cada um segundo suas obras[217].
  4. 5.      Ante estas respostas, Domiciano não os condenou a nada, mas inclusive desprezou-os como gente vulgar. Deixou-os livres e por decreto fez cessar a perseguição contra a Igreja[218].
  5. 6.             Os que haviam sido postos em liberdade estiveram à frente das igrejas tanto por terem dado testemunho como por serem da família do Senhor, e retornada a paz, viveram até Trajano.
  6. 7.      Isto diz Hegesipo. Mas não só ele. Também Tertuliano faz uma menção semelhante sobre Domiciano:

"Também Domiciano tentou por algum tempo fazer o mesmo que aquele, ainda que não sendo mais que uma parte da crueldade de Nero. Mas como, segundo creio, tinha algum senso, fez que cessasse rapidamente e chamou novamente os que havia desterrado."

8.   Depois de Domiciano imperar quinze anos e de sucedê-lo Nerva no gover­no, o senado romano decidiu por votação que se anulassem as honras de Domiciano e que regressassem a suas casas os que haviam sido expul­sos injustamente, e que ao mesmo tempo recuperassem seus bens. Isto é referido pelos que transmitiram por escrito os acontecimentos daquele tempo.

9.   Foi então que o apóstolo João, voltando de seu desterro na ilha, retirou-se para viver em Éfeso, segundo relata a tradição de nossos antigos.

 

XXI

[De como o terceiro a dirigir a Igreja de Alexandria é Cerdon]

1. Depois de Nerva imperar pouco mais de um ano, foi sucedido por Trajano. Corria o primeiro ano deste quando Cerdon sucedeu a Abílio, que havia regido a igreja de Alexandria durante treze anos. Cerdon era o terceiro dos que ali exerceram a presidência depois do primeiro, Aniano. Neste tempo os romanos eram ainda regidos por Clemente, que também ocupava o terceiro lugar dos que ali foram bispos depois de Paulo e Pedro. O primeiro foi Lino, e depois dele, Anacleto.

 

XXII

[De como o segundo a dirigir a igreja de Antioquia é Inácio]

1. Mas dos de Antioquia, depois de Evodio, primeiro que foi instituído, no tempo de que falamos era muito conhecido o segundo: Inácio. Igualmente nestes mesmos anos, o ministério da igreja de Jerusalém era exercido por Simeão, segundo depois do irmão de nosso Salvador.

 

XXIII

[Relato sobre o apóstolo João]

  1. 1.               Por este tempo vivia ainda na Ásia o mesmo a quem Jesus amou, o apóstolo e evangelista João, e ali continuava regendo as igrejas depois de regressar do desterro na ilha, depois da morte de Domiciano.
  2. 2.               Que João permanecia em vida por este tempo é suficientemente confirmado por duas testemunhas. Estas, representantes da ortodoxia da Igreja, são bem dignas de fé, tratando-se de homens como Irineu e Clemente de Alexandria.
  3. 3.       O primeiro deles, Irineu, escreve textualmente em alguma parte do livro II de sua obra Contra as heresias como segue:

"E todos os presbíteros que na Ásia estão relacionados com João, o discípulo do Senhor, dão testemunho de que João o transmitiu, porque ainda viveu com eles até os tempos de Trajano."

  1. 4.       E no livro III da mesma obra manifesta o mesmo com estas palavras: "Mas também a igreja de Éfeso, por ter sido fundada por Paulo e porque nela viveu João até os tempos de Trajano, é um testemunho veraz da tradição dos apóstolos."
  2. 5.            Por sua parte, Clemente assinala o mesmo tempo, e em sua obra que intitulou Quem é o rico que se salvai Acrescenta uma narrativa valiosíssima para os que gostam de escutar coisas belas e proveitosas. Toma pois, e lê o que ali escreveu:

6.     "Escuta uma historieta, que não é uma historieta, mas uma tradição existente sobre o apóstolo João, transmitida e guardada na memória. Efetivamente, depois que morreu o tirano, João mudou-se da ilha de Patmos a Éfeso. Daqui costumava partir, quando o chamavam, até as regiões pagãs vizinhas, com o fim de, em alguns lugares, estabelecer bispos; em outros, erguer igrejas inteiras, e em outros ainda, ordenar a algum dos que haviam sido designados pelo Espírito.

  1. 7.           Veio pois a uma cidade não muito distante e cujo nome alguns inclusive mencionam. Depois de consolar os irmãos em tudo o mais, tendo visto um jovem de grande estatura, de aspecto elegante e de alma vivaz, fixou seu olhar no rosto do bispo instituído sobre a comunidade e disse: 'Eu te confio este com toda a atenção, na presença da igreja e com Cristo como teste­munha.' O bispo aceitou o jovem, prometendo-lhe tudo, mas João insistia no mesmo e apelando para as mesmas testemunhas.
  2. 8.           Logo regressou a Éfeso, e o presbítero[219] levou para casa o jovem que lhe havia sido confiado e ali o manteve, rodeou-o de afeto e por fim batizou-o. Depois disto afrouxou um pouco sua grande solicitude e vigilância, pensando que havia imposto a salvaguarda perfeita: o selo do Senhor.
  3. 9.           Mas certos rapazes de sua idade, malandros, dissolutos e tendentes ao mal, perverteram-no. Sua liberdade era prematura. Primeiramente atraíram-no por meio de suntuosos banquetes; depois levaram-no consigo, inclusive de noite, quando saíam para o roubo, e por fim exigiram-lhe participar com eles de maldades maiores.
    1. 10.        O jovem foi se acostumando a isto sem perceber, e desviando-se do caminho reto, como cavalo de boca dura, brioso e que rejeita o freio, por seu vigor natural foi-se precipitando com mais força ao abismo.
    2. 11.        Acabou perdendo a esperança na salvação divina. Desde então não planejava coisas pequenas, mas, tendo já cometido grandes crimes, já que estava perdido de uma vez por todas, considerava justo correr o mesmo risco dos demais. Assim foi que, juntando-se aos mesmos e formando um bando de salteadores, era ele seu líder resoluto, o mais violento, o mais homicida, o mais temível de todos.
    3. 12.     Depois de algum tempo surgiu certa necessidade e voltaram a chamar João. Este, depois de ter resolvido os assuntos pelos quais tinha vindo, disse: 'Bem, bispo, devolve-me o depósito que eu e Cristo te confiamos na presença da igreja que presides e que é testemunha.'

13. O bispo a princípio ficou estupefato, acreditando ser vítima de calúnia sobre algum dinheiro que ele não havia recebido: não podia crer no que não tinha nem podia deixar de crer em João. Quando este lhe disse: 'O jovem é o que te peço, e a alma do irmão', o ancião prorrompeu em profundos soluços e, marejado de lágrimas, disse: 'este está morto'. Como? Morto de quê? 'Está morto para Deus - disse -, pois afastou-se transformado num perverso, um perdido, e para o cúmulo, um salteador, e agora ocupa o monte que está frente à igreja, com uma quadrilha de sua mesma índole.'

  1. 14.     Rasgou o apóstolo sua roupa e, golpeando a cabeça, com grande lamento exclamou: 'Bom guardião deixei para a alma do irmão! Mas tragam já um cavalo e alguém que me guie no caminho.' E dali, tal como estava, saiu da igreja e foi-se.

15. Chegou ao lugar. Os sentinelas dos bandidos deitaram-lhe as mãos, mas ele não fugia nem suplicava, mas aos gritos dizia: 'Para isso vim, levem-me ao vosso chefe.'

  1. 16.     Este, entretanto, aguardava armado como estava, mas ao reconhecer João naquele que se aproximava, fugiu cheio de vergonha. João o perseguia com todas suas forças, esquecido de sua idade e gritando:
  2. 17.     'Por que foges de mim, filho, de mim, teu pai, desarmado e velho? Tem pie­dade de mim, filho, não tema. Ainda tens esperança de vida. Darei conta por ti a Cristo, e se for necessário, com gosto sofrerei por ti a morte, como o Senhor a sofreu por nós. Por tua vida eu darei em troca a minha própria. Pára! Tenha fé! Foi Cristo que me enviou!'"
  3. 18.     O jovem, ao ouvi-lo, primeiramente deteve-se, com os olhos baixos; em seguida largou as armas, e tremendo, abraçou-se a ele. Seus lamentos eram já um discurso de defesa, e suas lágrimas serviam-lhe de segundo batismo. Apenas ocultava a mão direita.

19. Mas João foi-lhe fiador, jurando que havia alcançado o perdão para ele por parte do Salvador, caiu de joelhos, suplicante, e beijou a mesma mão direita considerando-a já purificada pelo arrependimento. Reconduziu-o à igreja, orou com súplicas abundantes, acompanhou-o em sua luta com jejuns prolongados e foi cativando seu espírito com os variados atrativos de sua palavra, e segundo dizem, não saiu dali até tê-lo consolidado na igreja, depois de ter dado grande exemplo de verdadeiro arrependimento e grandes sinais de regeneração, como troféu de uma ressurreição visível.

 

XXIV

[Da ordem dos evangelhos]

  1. 1.            Que este testemunho de Clemente sirva ao mesmo tempo de narrativa e de ensinamento para os que chegarem a lê-lo. Indiquemos porém os escritos incontroversos deste apóstolo.
  2. 2.            Em primeiro lugar fique reconhecido como autêntico seu Evangelho, que é lido por inteiro em todas as igrejas sob o céu. Ainda assim, o fato de os antigos terem-no catalogado com boas razões em quarto lugar, depois dos outros três, talvez possa ser explicado da seguinte maneira.
  3. 3.     Aqueles homens inspirados e verdadeiramente dignos de Deus - os apósto­los de Cristo, digo -, tendo suas vidas purificadas até o cerne e suas almas adornadas com todas as virtudes, falavam, ainda assim, a língua dos simples. Ainda que o poder divino e operador de milagres dado pelo Salvador tornasse-os audazes, não sabiam nem tentavam sequer ser embaixadores da doutrina do Salvador com a persuasão e com a arte dos discursos, mas, usando apenas a demonstração do Espírito divino que trabalhava com eles e do poder de Cristo que se exercia através deles, anunciaram o conheci­mento do reino dos céus por toda a terra habitada, sem preocupar-se muito em pô-los por escrito.
  4. 4.      E operaram assim, como servidores de um ministério maior e que está acima do homem. E assim Paulo, o mais capaz de todos na preparação de discursos e o de mais vigoroso pensamento, não deixou mais do que suas curtíssimas cartas, e isso podendo dizer coisas infinitas e inefáveis por ter alcançado a contemplação até do terceiro céu, já que havia sido arrebatado até o próprio paraíso e fez-se digno de escutar as palavras inefáveis de lá[220].
  5. 5.             Tampouco faltava experiência destas coisas aos demais acompanhantes de nosso Salvador, os doze apóstolos por um lado e os setenta discípulos por outro, além de inúmeros outros além destes. E mesmo assim, de todos apenas Mateus e João deixaram-nos memórias das conversações do Senhor, e ainda é tradição que as escreveram forçados a isso.
  6. 6.             Com efeito Mateus, que primeiramente tinha pregado aos hebreus, quando estava a ponto de ir para outros, entregou por escrito seu Evangelho, em sua língua materna, fornecendo assim por meio da escritura o que faltava de sua presença entre aqueles de quem se afastava.
  7. 7.      Marcos e Lucas já tinham publicado seus respectivos evangelhos, enquanto de João se diz que em todo este tempo continuava usando a pregação não escrita, mas que por fim chegou também a escrever, pelo seguinte motivo. Os três evangelhos anteriormente escritos já haviam sido distribuídos para todos, inclusive para o próprio João, e diz-se que este os aceitou e deu testemunho de sua veracidade, mas também que lhes faltava unicamente a narrativa do que Cristo havia feito nos primeiros tempos e no começo de sua pregação.
    1. 8.             A razão é verdadeira. É possível ver realmente que os três evangelistas puseram por escrito apenas os fatos que se seguiram ao encarceramento de João Batista, durante um ano apenas, e que eles mesmos alertam sobre isto no início dos relatos.
    2. 9.             Por exemplo, depois do jejum de quarenta dias e da tentação que se seguiu, Mateus declara a data por suas próprias palavras quando diz: E ouvindo que João havia sido entregue, retirou-se da Judéia para a Galiléia[221].
    3. 10.     E o mesmo faz Marcos, que diz: Depois de João ser preso, Jesus foi para a Galiléia[222]. E Lucas, antes de dar início aos feitos de Jesus, faz semelhante observação, dizendo que Herodes juntou às maldades que havia cometido esta outra: lançou João ao cárcere[223].
    4. 11.     Em conseqüência diz-se que por isto decidiu-se o apóstolo João a transmitir em seu Evangelho o período silenciado pelos primeiros evangelistas e as obras realizadas neste tempo pelo Salvador, ou seja, as anteriores ao encarceramento do Batista, e que isto se mostra quando diz: Assim principiaram os milagres de Jesus[224], e também quando menciona o Batista em meio aos atos de Jesus dizendo que ainda seguia batizando em Enom, perto de Salim. Expressa-o claramente ao dizer: Porque João ainda não havia sido encarcerado[225].

12. João, portanto, transmite em seu Evangelho escrito o que Cristo fez antes de que o Batista fosse encarcerado, enquanto que os outros três relatam os feitos posteriores ao encarceramento do Batista.

13. Quem prestar atenção a tudo isto já não tem por que achar que os evangelhos diferem entre si, já que o de João contém as primeiras obras de Cristo, e os outros a história do final do período. E, conseqüentemente, também é pro­vável que João passasse por alto a genealogia carnal de nosso Salvador porque Mateus e Lucas já a escreveram, e começasse falando de sua divinda­de, como se o Espírito divino o tivesse reservado a ele como o mais capaz.

  1. 14.     Seja-nos suficiente, pois, o que dissemos sobre a composição do Evange­lho de João. A causa de ter-se escrito o Evangelho de Marcos já foi expli­cado acima[226].

15. No que se refere a Lucas, também ele, ao começar seu escrito[227], expõe de antemão o motivo pelo qual o compôs. Como muitos outros já tinham se ocupado com demasiada precipitação a fazer uma narrativa dos fatos de que ele mesmo estava bem informado, sentiu-se obrigado a afastar-nos das suposições duvidosas dos outros, e transmitiu-nos por meio de seu Evangelho o relato correto de tudo aquilo cuja verdade ele conheceu bem aprovei­tando a convivência e o trato com Paulo, assim como a conversação com os demais apóstolos.

  1. 16.   Isto é o que temos sobre este tema. Em momento apropriado trataremos de explicar, por meio de citações dos antigos, o que outros disseram sobre este assunto.
  2. 17.     Dos escritos de João, além do Evangelho, também é admitida sem discussão, por modernos e por antigos, a primeira de suas cartas. As outras duas, por outro lado, são discutidas.
  3. 18.     Quanto ao Apocalipse, ainda hoje a opinião de muitos divide-se em um ou outro sentido. Também ele receberá no devido tempo sua sanção, extraída do testemunho dos antigos.

 

XXV

[Das divinas Escrituras reconhecidas e das que não o são]

  1. 1.            Chegando aqui, é hora de recapitular os escritos do Novo Testamento já mencionados. Em primeiro lugar temos que colocar a tétrade santa dos Evangelhos, aos quais segue-se o escrito dos Atos dos Apóstolos.
  2. 2.            Depois deste há que se colocar a lista das Cartas de Paulo. Depois deve-se dar por certa a chamada Primeira de João, assim como a de Pedro. Depois destas, se está bem, pode-se colocar o Apocalipse de João, sobre o qual exporemos oportunamente o que dele se pensa.
  3. 3.            Estes são os ditos admitidos. Dos livros discutidos, por outro lado, mas que são conhecidos da grande maioria, temos a Carta dita de Tiago, a de Judas e a segunda de Pedro, assim como as que se diz serem segunda e terceira de João, sejam do próprio evangelista, seja de outro com o mesmo nome.
  4. 4.     Entre os espúrios sejam listados: o escrito dos Atos de Paulo, o chamado Pastor e o Apocalipse de Pedro, e além destes, a que se diz Carta de Barnabé e a obra chamada Ensinamento dos Apóstolos, e ainda, como já disse, talvez, o Apocalipse de João: alguns, como disse, rechaçam-no, enquanto outros o contam entre os livros admitidos.
  5. 5.            Alguns ainda catalogam entre estes inclusive o Evangelho dos hebreus, no qual são muito contemplados os hebreus que aceitaram Cristo. Todos estes são livros discutidos.
  6. 6.            Mas creio ser necessário que exista um catálogo destes também, distinguindo os escritos que, segundo a tradição da Igreja, são verdadeiros, genuínos e admitidos, daqueles que diferentes destes por não serem testamentários, mas discutidos, ainda assim são conhecidos pela grande maioria dos autores eclesiásticos, de modo que possamos conhecer estes livros e os que com o nome dos apóstolos foram divulgados pelos hereges, alegando que se tratem seja dos Evangelhos de Pedro, de Tomás, de Matias ou mesmo de algum outro, ou ainda dos Atos de André, de João e de outros apóstolos. Jamais um só dentre os escritores ortodoxos julgou digno mencionar estes livros em seus escritos.

7.   Mas ocorre que a própria índole do fraseado difere enormemente do estilo dos apóstolos, o pensamento e a intenção do que neles está contido destoa ainda mais da verdadeira ortodoxia: claramente demonstram ser invenções de hereges. Por isso não devem ser incluídos nem mesmo entre os espúrios, mas devemos rechaçá-los como inteiramente absurdos e ímpios. Continuemos agora nosso relato.

 

XXVI

[Sobre o mago Menandro]

  1. 1.            O mago Simão foi sucedido por Menandro, o qual, pela sua maneira de agir, mostrou ser uma segunda arma do poder diabólico não inferior à primeira. Também ele era samaritano, e em seu progresso até o ápice da feitiçaria não foi inferior a seu mestre, mas até abundou em milagres ainda maiores. Chamava-se a si mesmo, como se realmente o fosse, o salvador enviado de algum lugar do alto, desde éons insondáveis, para salvação dos homens.
  2. 2.            E ensinava que ninguém poderia de forma alguma exceder inclusive aos próprios anjos que fizeram o mundo se primeiramente não fosse conduzido através da experiência mágica transmitida por ele e através do batismo por ele dispensado. Os que são considerados dignos deste participarão já nesta vida da imortalidade perdurável e não morrerão jamais. Mas permanecerão aqui para sempre, não envelhecerão e serão imortais. Este ponto é fácil de reconhecer pelos escritos de Irineu.
  3. 3.            Também Justino, ao mencionar Simão pela mesma razão, acrescenta uma relação sobre este outro, dizendo:

"Sabemos também que um certo Menandro, também samaritano, oriundo da aldeia chamada Caparatea, depois de ser discípulo de Simão e estando também possuído por demônios, apareceu em Antioquia, e com sua arte mágica seduziu a muitos. E convenceu seus seguidores de que não morreriam. Hoje restam alguns de sua seita que continuam a professá-lo."

4.   Era sem dúvida obra da influência diabólica lançar mão de tais feiticeiros revestidos do nome de cristãos para esforçar-se em caluniar o grande mis­tério de piedade, acusando de magia, e destruir por meio deles os dogmas da Igreja sobre a imortalidade da alma e a ressurreição dos mortos. Mas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da verdadeira esperança.

 

XXVII

[Da heresia dos ebionitas]

1. De outros porém, o demônio malvado, impotente para arrancá-los de sua disposição para como Cristo de Deus, tomou posse ao encontrar outros pontos por onde agarrá-los. Estes primeiros foram chamados ebionitas[228], como convinha, pois tinham sobre Cristo pensamentos pobres e de baixa estima.

  1. 2.            Pois pensavam dele que era apenas um homem simples e comum, justifica­do à medida em que progredia em seu caráter, e nascido da união de um homem e de Maria. Acreditavam absolutamente necessária para eles a obser­vância da lei, alegando que não se salvariam apenas pela fé e por viver conforme ela.
  2. 3.            Mas, além destes, havia outros da mesma denominação que escapavam de sua estranha insensatez. Não negavam que o Senhor houvesse nascido de uma virgem e do Espírito Santo. Mas, assim como aqueles, tampouco confessavam que, por ser Deus, Verbo e Sabedoria, preexistia já. Desta maneira retornavam à impiedade dos primeiros, principalmente quando, assim como eles, esforçavam-se por honrar demasiadamente a observân­cia da lei.
  3. 4.     Acreditavam também que era necessário a todo custo rechaçar as Cartas do Apóstolo, a quem chamavam apóstata da lei, enquanto usavam exclusiva­mente o chamado Evangelho dos hebreus, sem importar-se em nada com os outros.
  4. 5.            Da mesma forma que aqueles, observavam o sábado e tudo o mais da disciplina judaica. No entanto, aos domingos celebravam ritos semelhantes aos nossos em memória da ressurreição do Salvador.
  5. 6.            Daí, de tais práticas, veio-lhes a denominação que levam: o nome de ebionitas manifesta a pobreza de sua inteligência, pois com este nome se chama entre os hebreus aos pobres.

 

XXVIII

[Do heresiarca Cerinto]

  1. 1.             Sabemos que pelas datas mencionadas Cerinto fez-se cabeça de outra heresia. Caio, a quem já citamos antes[229], escreve sobre ele o que segue, na disputa que lhe é atribuída:
  2. 2.      "No entanto, também Cerinto, por meio de revelações que diz serem escritas por um grande apóstolo, apresenta milagres com a mentira de que lhe teriam sido mostradas por ministério dos anjos, e diz que depois da ressurreição o reino de Cristo será terrestre e que novamente a carne, que habitará em Jerusalém, será escrava de paixões e prazeres. Como inimigo das Escrituras de Deus e querendo fazer errar, diz que haverá um número de mil anos de festa nupcial."
  3. 3.      E também Dionísio, que em nosso tempo obteve o episcopado da igreja de Alexandria, ao dizer no livro II de suas Promessas algumas coisas sobre o Apocalipse de João como recebidas de uma antiga tradição, menciona o mesmo Cerinto com estas palavras:
  4. 4.      "E Cerinto, o mesmo que instituiu a heresia que toma seu nome, a cerintiana, que quis creditar sua própria invenção com um nome digno de fé. Este é efetivamente o tema da doutrina que ensina: que o reino de Cristo será terreno.
  5. 5.             E como ele era um amante de seu corpo e inteiramente carnal, sonhava que consistiria do mesmo que ele desejava: fartura do ventre e do que está abaixo do ventre, ou seja: de comidas, de bebidas, de uniões carnais e de tudo aquilo com que lhe parecia que se procurariam estas coisas de uma forma mais bem sonante: festas, sacrifícios e imolação de vítimas sagradas."
  6. 6.             Isto diz Dionísio. E Irineu, depois de expor, no livro I de sua obra Contra as heresias, alguns dos erros mais abomináveis do mesmo Cerinto, transmitiu-nos por escrito, no livro III, um relato que não se deve esquecer, procedente, segundo diz, da tradição de Policarpo. Afirma que o apóstolo João entrou certa vez nos banhos públicos para lavar-se, mas ao ficar sabendo que dentro encontrava-se Cerinto, afastou-se rapidamente do lugar e correu para a porta, por não suportar encontrar-se sob o mesmo teto que ele, e exortava os que o acompanhavam a fazerem o mesmo, dizendo: "Fujamos, não aconteça que os próprios banhos venham abaixo por estar dentro Cerinto, o inimigo da verdade."

 

XXIX

[De Nicolau e dos que dele tomam o nome]

  1. 1.            Nesta época surgiu também a heresia chamada dos nicolaítas, que durou pouquíssimo tempo e da qual também faz menção o Apocalipse de João[230]. Estes se jactavam de que Nicolau era um dos diáconos companheiros de Estevão encarregados pelos apóstolos do serviço aos necessitados[231]. Pelo menos Clemente de Alexandria, no livro III dos Stromateis, conta sobre ele, literalmente, o que segue:
  2. 2.            "Este, dizem, tinha uma mulher muito formosa. Depois da ascensão do Sal­vador, tendo os apóstolos reprovado seu ciúme, trouxe sua mulher a público e permitiu que se entregasse a quem quisesse, pois diz-se que esta prática está de acordo com o dito: 'Deve-se abusar da carne'[232]." E na verdade, por seguir o que foi feito e dito por simplicidade e impensadamente, os que compartilham sua heresia se prostituem sem a menor reserva.
  3. 3.            No entanto, eu sei que Nicolau não teve trato com nenhuma mulher que não aquela com quem estava casado, e que de seus filhos, as mulheres che­garam virgens à velhice e o rapaz permaneceu puro. Sendo isto assim, a exposição de sua mulher, da qual tinha ciúmes, no meio dos apóstolos, era um desprezo à paixão, e a abstenção dos prazeres que mais ansiosamente são procuradas ensinava a "abusar da carne", pois creio que, conforme o mandato do Salvador, ele não queria ser escravo de dois senhores[233], o prazer e o Senhor.
  4. 4.            Dizem igualmente que Matias ensinava isto mesmo: para a carne: combatê-la e abusar dela, sem consentir-lhe nada para o prazer; e para a alma, fazê-la crescer mediante a fé e o conhecimento. Isto, pois, seja o bastante sobre aqueles que, se na época mencionada[234] empreenderam a tarefa de perverter a verdade, extinguiram-se contudo por completo em menos tempo do que leva para dizê-lo.

 

XXX

[Dos apóstolos cujo matrimônio está comprovado]

1.   Clemente, cujas palavras acabamos de ler, em seguida ao que foi dito anteriormente e por causa dos que rechaçam o matrimônio, dá-nos uma lista dos apóstolos que comprovadamente foram casados e diz:

"Ou também vão desaprovar os apóstolos? Porque Pedro[235] e Felipe criaram filhos; e mais, Felipe deu maridos a suas filhas[236], e Paulo, ao menos em certa Carta, não vacila em dirigir-se a sua consorte[237], que não levava consigo para facilitar o ministério."

2.   Já que lembramos destas coisas, nada impede que citemos também outro relato de Clemente digno de ser exposto. Escreveu-o no livro VII dos Stromateis e narra-os da seguinte forma:

"Conta-se pois que o bem-aventurado Pedro, quando viu que sua própria mulher era conduzida ao suplício, alegrou-se por seu chamamento e seu retorno para casa, e gritou forte para animá-la e consolá-la, chamando-a por seu nome e dizendo: "Oh, tu, lembra-te do Senhor!" Assim era o matri­mônio dos bem-aventurados e a perfeita disposição dos mais queridos." Este era o momento oportuno para isto, por relacionar-se com o tema de que tratamos.

 

XXXI

[Da morte de João e de Felipe]

  1. 1.            Já explicamos anteriormente o tempo e o modo da morte de Paulo e de Pedro, assim como também o lugar onde foram depositados seus corpos depois que partiram desta vida[238].
  2. 2.            Sobre João, quanto ao tempo, também já foi dito; mas quanto ao lugar de seu corpo, indica-se na carta de Polícrates, bispo da igreja de Éfeso, que foi escrita para o bispo de Roma, Victor. Junto com João menciona o apóstolo Felipe e as filhas deste nos seguintes termos:
  3. 3.            "Porque também na Ásia repousam grandes luminares que ressuscitarão no último dia da vinda do Senhor, quando virá dos céus com glória em busca de todos os santos: Felipe, um dos doze apóstolos, que repou­sa em Hierápolis com duas filhas suas que chegaram virgens à velhice, e a outra filha, que depois de viver no Espírito Santo, descansa em Éfeso; e também há João, o que se recostou sobre o peito do Senhor[239] e que foi sacerdote portador do pétalon[240], mártir e mestre; este repousa em Éfeso."
  4. 4.            Isto há sobre a morte destes luminares. Mas também no Diálogo de Caio -de quem já falamos pouco acima -, Proclo - contra quem é dirigida a disputa -, coincidindo com o exposto, diz sobre a morte de Felipe e de suas filhas o seguinte:

"Depois deste houve em Hierápolis, a da Ásia, quatro profetisas, as filhas de Felipe. Ali estão seus sepulcros e o de seu pai."

5.   Assim diz Proclo. E Lucas, nos Atos dos Apóstolos, menciona as filhas de Felipe, que então viviam em Cesaréia da Judéia junto com seu pai, e que haviam sido agraciadas com o dom da profecia; diz textualmente o que segue: Viemos a Cesaréia e entramos na casa de Felipe o evangelista - pois era um dos sete - e permanecemos em sua casa. Tinha ele quatro filhas virgens, que eram profetisas[241].

6.   Depois de haver descrito sobre o que chegou ao nosso conhecimento acerca dos apóstolos e dos tempos apostólicos, assim como dos escritos sagra­dos que nos deixaram, e inclusive dos que são controversos, mas que na maioria das igrejas muitos lêem em público, e dos que são inteiramen­te espúrios e alheios à ortodoxia apostólica, continuemos avançando em nossa narrativa.

 

XXXII

[De como sofreu o martírio Simeão, bispo de Jerusalém]

  1. 1.            Depois de Nero e Domiciano, conta uma tradição que, sob o imperador cuja época estamos agora investigando[242], voltaram a ocorrer perseguições contra nós, parcialmente e por cidades, devido a levantes populares. Nesta época, sobre Simeão, o filho de Clopas, do qual já dissemos que foi o segundo bispo da igreja de Jerusalém, sabemos que terminou sua vida no martírio.
  2. 2.     Testemunha disto é aquele mesmo Hegesipo, de quem já utilizamos diferentes passagens. Ao falar de alguns hereges, acrescenta claramente que por esse tempo, efetivamente, o mencionado Simeão teve que sofrer uma acusação e que durante muitos dias foi maltratado de muitas maneiras por ser cristão, e que depois de deixar admiradíssimos o juiz e os que o acompanhavam, alcançou um final semelhante à paixão do Senhor.
  3. 3.            Mas nada melhor do que ouvir o próprio escritor, que relata isto mesmo textualmente como segue:

"A partir disto, evidentemente alguns hereges acusam Simão[243], o filho de Clopas, por ser descendente de Davi e cristão, e assim sofre martírio na idade de cento e vinte anos, sob o imperador Trajano e o governador Ático."

  1. 4.     O mesmo autor diz que inclusive os próprios carrascos foram presos quando se procuraram os descendentes da tribo real dos judeus, já que também eles o eram. Com um pouco de cálculo pode-se dizer que tam­bém Simeão viu e ouviu pessoalmente o Senhor, baseando-se na longa duração de sua vida e na menção que o texto dos evangelhos faz de Maria de Clopas[244], de quem já se demonstrou que Simeão era filho.
  2. 5.            O mesmo escritor diz que também outros descendentes de um dos chamados irmãos do Salvador, de nome Judas, sobreviveram até este mesmo reinado, depois de ter dado testemunho de sua fé em Cristo sob Domiciano, como já referimos anteriormente[245]. Escreve o seguinte:

6.   "Vêm pois, e põe-se à frente de toda a Igreja como mártires e como mem­bros da família do Salvador. Quando em toda a Igreja se fez paz profunda, vivem ainda até o tempo do imperador Trajano, até que o filho do tio do Salvador, o anteriormente chamado Simão[246], filho de Clopas, foi denun­ciado e acusado igualmente pelas seitas, também pela mesma razão, sob o governador consular Ático. Durante muitos dias torturaram-no e deu testemunho, de maneira que todos, inclusive o governador, ficaram muito admirados de como continuava resistindo apesar de seus cento e vinte anos[247]E mandaram crucificá-lo."

  1. 7.             Depois disto o mesmo autor, explicando o referente aos tempos indicados, acrescenta que efetivamente, até aquelas datas a Igreja permanecia virgem, pura e incorrupta, como se até esse momento os que se propunham corromper a sã regra da pregação do Salvador, se é que existiam, ocultavam-se em escuras trevas.
  2. 8.             Mas quando o coro sagrado dos apóstolos alcançou de diferentes maneiras o final da vida e desapareceu aquela geração dos que foram dignos de escutar com seus próprios ouvidos a divina Sabedoria, então teve início a confabulação do erro ímpio por meio do engano de mestres de falsa doutrina, os quais, não restando nenhum apóstolo, daí em diante já a descoberto, tentaram opor à pregação da verdade a pregação da falsamente chamada gnosis[248].

 

XXXIII

[De como Trajano impediu que se perseguisse os cristãos]

  1. 1.            Tão grande foi realmente a perseguição que naquele tempo estendeu-se em muitos lugares contra nós, que Plínio Segundo[249], notável entre os governa­dores, inquieto pela multidão de mártires, relata ao imperador sobre o exces­sivo número dos que eram executados por sua fé, e no mesmo documento adverte que nunca foram surpreendidos cometendo nada ímpio ou contrário às leis, se não for pelo fato de levantarem-se à aurora para entoar hinos a Cristo como a um Deus, mas que adulterar e cometer homicídios e crimes do mesmo tipo também era proibido para eles, e que em tudo agem conforme as leis.
  2. 2.            A resposta de Trajano foi promulgar um decreto do seguinte teor: que não se perseguisse a tribo dos cristãos, mas que se castigasse quem caísse. Graças a isto extinguiu-se parcialmente a perseguição, que ameaçava apertar terrivelmente, mas nem por isso faltaram pretextos aos que queriam fazer-nos mal. Algumas vezes eram as populações, outras as próprias autoridades locais que preparavam os assédios contra nós, de forma que, ainda que sem perseguições manifestas, acenderam-se focos parciais, segundo as provín­cias, e grande número de crentes combateram em diversos gêneros de martírio.
  3. 3.     O relato foi tomado da Apologia latina de Tertuliano, mencionada mais acima, traduzido, é como segue:

"Mesmo assim, encontramos que foi proibido até que nos persigam. Efetivamente, Plínio Segundo, governador de uma província[250], depois de condenar alguns cristãos e depô-los de suas dignidades, assustado por seu número e já não sabendo o que lhe restava fazer, consultou o imperador Trajano, alegando que, exceto por não quererem adorar os ídolos, nada de ímpio havia encontrado neles. Informava-lhe também o seguinte: que os cristãos se levantavam à aurora e cantavam hinos a Cristo como a Deus e que, para manter seu conhecimento[251], era-lhes proibido matar, cometer adultério, cobiçar, roubar e coisas parecidas. A isto Trajano respondeu que não se perseguisse a tribo dos cristãos, mas que se castigasse quem caísse." Também isto ocorreu neste tempo.

 

XXXIV

[De como o quarto a dirigir a Igreja de Roma é Evaristo]

1. Dos bispos de Roma, no terceiro ano do imperador anteriormente cita­do, Clemente terminou sua vida depois de transmitir seu cargo a Evaristo e de haver estado no total nove anos à frente do ensinamento da palavra divina[252].

 

XXXV

[De como o terceiro a dirigir a de Jerusalém é Justo]

1. Mas, quando Simeão morreu do modo como relatamos, o trono do episcopado de Jerusalém foi recebido em sucessão por um judeu chamado Justo, que era um dos inúmeros que, procedendo da circuncisão, havia então crido em Cristo.

 

XXXVI

[Sobre Inácio e suas cartas]

  1. 1.            Brilhava por este tempo na Ásia Policarpo, discípulo dos apóstolos, a quem as testemunhas oculares e os ministros do Senhor tinham confiado o episcopado da igreja de Esmirna.
  2. 2.            Ao mesmo tempo adquiriram notoriedade Papias, bispo da igreja de Hierápolis, e Inácio, o homem mais célebre para muitos ainda hoje, segundo a obter a sucessão de Pedro no episcopado de Antioquia.
  3. 3.            Uma tradição refere que este foi trasladado da Síria à cidade de Roma para ser alimento das feras, em testemunho de Cristo.
  4. 4.             Ao ser conduzido através da Ásia, sob a vigilância cuidadosa dos guardiães, dava ânimo com suas falas e exortações às igrejas de cada cidade onde faziam parada. Primeiramente exortava-os a que sobretudo se guardassem das heresias, que precisamente então começavam a pulular, e estimulava-os a segurar-se solidamente à tradição dos apóstolos, que, por estar ele já a ponto de sofrer o martírio, achava necessário pôr por escrito para fins de segurança.
  5. 5.             E foi assim que, achando-se em Esmirna, onde estava Policarpo, escreveu uma carta à igreja de Éfeso, mencionando Onésimo, seu pastor; outra à de Magnesia, a que está sobre Meandro, mencionando igualmente o bispo Damas, e outra à de Trales, cujo chefe era então Políbio, segundo diz.
  6. 6.             Além destas, escreveu também à igreja de Roma uma carta em que expõe sua súplica para que não intercedam por ele, para não privá-lo do martírio, sua sonhada esperança. Em apoio ao que dissemos, será bom citar algumas passagens das citadas cartas, ainda que brevíssimas:

Escreve pois, textualmente:

  1. 7.      "Desde a Síria até Roma venho lutando com feras por terra e por mar, de noite e de dia, atado a dez leopardos, isto é, um grupo de soldados que ficam piores com o bem que se lhes faz. Mas com seus maus-tratos torno-me mais e mais discípulo. Mesmo assim, nem por isso estou justificado[253].
  2. 8.             "Oxalá pudesse eu usufruir das feras que me estão preparadas! Espero encontrá-las bem ligeiras para comigo. Chegarei até a adulá-las para que me devorem rapidamente e não me façam o que fizeram a alguns, que por temor não tocaram, e se fazem de preguiçosas e não querem, eu mesmo as forçarei.
    1. 9.             Perdoai-me. Eu sei o que me convém. Agora estou começando a ser discí­pulo. Que nenhuma coisa visível ou invisível tenha ciúme de que eu alcance a Jesus Cristo. Fogo, cruz e manadas de feras, dispersão de ossos, destroçamento de membros, trituração do corpo todo e tormentos do diabo venham sobre mim, contanto somente que eu alcance a Jesus Cristo."
    2. 10.      Isto escrevia da cidade mencionada às igrejas que enumeramos. Mas achando-se já longe de Esmirna, desde Troasse põe-se a conversar, por escrito mesmo, com os de Filadélfia e com a igreja de Esmirna, e em par­ticular com Policarpo, que a presidia. Reconhecendo este como homem verdadeiramente apostólico e porque ele mesmo era pastor legítimo e bom, confia-lhe seu próprio rebanho de Antioquia e pede-lhe que se ocupe dele com solicitude.
    3. 11.  Ele mesmo, escrevendo aos de Esmirna e citando passagens não sei de onde, discorre sobre Cristo com estas palavras:

"Quanto a mim, sei e creio que mesmo depois da ressurreição permanece em sua carne, e quando se aproximou dos que rodeavam Pedro disse-lhes: 'Tomai e apalpai-me, e vede que não sou um espírito incorpóreo.' Na mesma hora eles o tocaram e creram[254]."

12. Também Irineu conhece seu martírio e faz menção de suas cartas quando diz assim:

"Como disse um dos nossos, condenado às feras por seu testemunho em favor de Deus, 'sou trigo de Deus e pelos dentes das feras sou moído para ser encontrado como pão puro.'

13. E Policarpo também faz menção disto na carta que se diz ser dele, dirigida
aos Filipenses, quando diz textualmente:

"Exorto-vos pois todos a obedecer e exercitar toda a paciência, a que vistes com vossos olhos não somente nos bem-aventurados Inácio, Rufo e Zózimo, mas também em outros dos vossos, e no próprio Paulo e nos demais após­tolos, persuadidos de que não correram em vão[255], mas na fé e na justiça, e de que já estão no lugar que lhes é devido, junto ao Senhor, com o qual padeceram. Porque não amaram este século, mas aquele que morreu por nós e por nós também ressuscitou, por obra de Deus." E acrescenta logo:

  1. 14.     "Vós e Inácio escrevestes-me para que, se alguém fosse à Síria, levasse também vossas cartas. Isto farei quando encontrar ocasião favorável, eu mes­mo ou alguém que eu envie e que será também embaixador de vossa parte.
  2. 15.     As cartas de Inácio que ele enviou e todas as outras que tínhamos conosco, vo-las envio, como haveis pedido; seguem anexas à presente carta. Delas podereis tirar grande proveito, já que estão cheias de fé, de paciência e de toda edificação concernente a nosso Senhor."

Isto é o que se refere a Inácio. Depois dele Heros recebeu a sucessão do episcopado de Antioquia.

 

 

 

 

XXXVII

[Dos evangelistas que ainda então se distinguiam]

1. Entre os que eram famosos neste tempo, achava-se também Codratos, sobre o qual uma tradição refere que sobressaía em carisma profético, junta­mente com as filhas de Felipe. Também eram célebres então, além des­tes, muitos outros que tiveram o primeiro lugar na sucessão dos apóstolos. Estes magníficos discípulos de tão grandes homens edificavam sobre os fundamentos das igrejas deixados anteriormente em cada lugar pelos apóstolos[256]. Aumentavam mais e mais a pregação e semeavam por toda a extensão da terra habitada a semente salvadora do reino dos céus.

  1. 2.             Efetivamente, muitos dos discípulos de então, tocados na alma pela palavra divina com um amor muito forte à filosofia[257], primeiramente cumpriam o mandamento salvador repartindo seus bens entre os indigentes[258], e depois empreendiam viagem e realizavam trabalho de evangelistas[259], empenhando sua honra em pregar aos que ainda não haviam ouvido a palavra da fé e em transmitir por escrito os divinos evangelhos[260].
  2. 3.             Estes homens nada mais faziam que deitar os fundamentos da fé em alguns lugares estrangeiros e estabelecer outros como pastores, encarregando-os do cultivo dos recém-admitidos, e em seguida mudavam-se para outras regiões e outros povos com a graça e a cooperação de Deus, já que por meio deles continuavam realizando-se ainda então muitos e maravilhosos poderes do Espírito divino, de forma que, desde a primeira vez que os ouviam, multidões inteiras de pessoas recebiam em massa com ardor em suas almas a religião do Criador do universo.
  3. 4.      Sendo-nos impossível enumerar pelo nome todos os que na primeira geração de apóstolos foram pastores e inclusive evangelistas nas igrejas de todo o mundo, é natural que mencionemos por seus nomes e por escrito apenas aqueles dos quais se conserva a tradição até hoje graças a suas memórias da doutrina apostólica.

 

XXXVIII

[Da carta de Clemente e os escritos que falsamente lhe atribuem]

  1. 1.            Não cabe dúvida, portanto, de que tais são Inácio, em suas cartas cuja lista fornecemos, e Clemente na carta por todos admitida, que escreveu em nome da igreja de Roma à de Corinto. Nela Clemente expõe muitos pensamentos da Carta aos Hebreus, e inclusive utiliza textualmente algumas passagens da mesma, mostrando assim com toda claridade que este escrito não é recente.
  2. 2.            Por isso pareceu natural catalogá-lo entre os demais escritos do apóstolo. Porque Paulo praticou por escrito com os hebreus valendo-se de sua língua pátria, e alguns dizem que a carta foi traduzida pelo evangelista Lucas, mas outros afirmam que foi o próprio Clemente,
  3. 3.            o que talvez seja mais verdadeiro pelo fato de ambas, a Carta de Clemente e a Carta aos Hebreus, conservarem um caráter estilístico semelhante, além de não se diferenciar muito o pensamento de um e outro escrito.
  4. 4.             Deve-se saber ainda que há uma segunda carta que se diz de Clemente, mas não sabemos que seja conhecida como a primeira, já que nem os antigos a utilizaram, tanto quanto sabemos.
  5. 5.             E muito recentemente alguns trouxeram à luz, dizendo que são dele, outros escritos, verbosos e longos, que contêm os diálogos de Pedro e Apion. Destes escritos não se encontra a menor menção entre os antigos, nem mesmo conservam puro o caráter da ortodoxia apostólica. Conseqüentemente fica claro qual é o escrito aceito de Clemente. Também se falou dos de Inácio e de Policarpo.

 

 

 

XXXIX

[Dos escritos de Papias]

1.   Diz-se que são cinco os escritos de Papias, sob o título de Explicações das palavras do Senhor. Irineu os menciona como os únicos escritos de Papias; assim diz:

"Isto também atesta por escrito Papias, que foi ouvinte de João, companheiro de Policarpo e varão dos antigos, no quarto livro dos que escreveu, porque efetivamente tem cinco livros escritos."

  1. 2.     Isto é o que diz Irineu. O próprio Papias no entanto, segundo o prólogo de seus tratados, não se apresenta de modo algum como ouvinte e testemunha ocular dos sagrados apóstolos, mas ensina-nos que recebeu o referente à fé da boca de outros que os conheceram, estas são suas palavras:
  2. 3.           "Não vacilarei em apresentar-te ordenadamente com as interpretações tudo o que um dia aprendi muito bem dos presbíteros e que recordo bem, seguro que estou de sua verdade. Porque eu não me comprazia como outros com os que falam muito, mas com os que ensinam a verdade; nem tampouco com os que recordam mandamentos alheios, mas com os que trazem na memória os (mandamentos) que receberam pela fé da parte do Senhor e nascem da própria verdade.
  3. 4.     E se por acaso chegava alguém que também havia seguido os presbíte­ros, eu procurava discernir as palavras dos presbíteros: o que disse André, ou Pedro, ou Felipe, ou Tomás, ou Tiago, ou João, ou Mateus ou qual­quer outro dos discípulos do Senhor, porque eu pensava que não aprovei­taria tanto o que tirasse dos livros como o que provêm de uma voz viva e durável."

5.   Aqui seria bom fazer notar também que ele enumera duas vezes o nome de João. O primeiro coloca na lista com Pedro, Tiago, Mateus e os demais apóstolos, sendo evidente que se refere ao evangelista; já ao outro João, depois de cortar o discurso, coloca-o com outros, fora do número dos apóstolos, antepondo Aristion e chamando-o claramente de presbítero.

  1. 6.            De forma que também isto demonstra que é verdade a história dos que dizem que na Ásia houve dois com este mesmo nome, e em Éfeso dois sepulcros, dos quais ainda hoje se afirma que são, um e outro, de João. É necessário prestar atenção a estes fatos, porque é provável que fosse o segundo - se não se prefere o primeiro - o que viu a Revelação (= Apocalipse) que corre sob o nome de João.
  2. 7.            Agora bem, Papias, de quem estamos falando, confessa que recebeu as palavras dos apóstolos de discípulos destes, enquanto que de Aristion e de João o Presbítero ele diz ter sido ouvinte direto. Efetivamente menciona-os pelo nome várias vezes em seus escritos e compila suas tradições.
  3. 8.            E não se diga que por nossa parte é inútil o dito. Mas é justo adicionar às palavras de Papias já citadas outros ditos seus com os quais se refere a algumas coisas estranhas e outros detalhes que, segundo ele, chegaram-lhe pela tradição.
  4. 9.            Pois bem, já foi explicado mais acima que o apóstolo Felipe morou em Hierápolis com suas filhas, mas agora há que se assinalar como Papias, que viveu nesse mesmo tempo, faz menção de haver recebido um relato mara­vilhoso da boca das filhas de Felipe. Narra efetivamente a ressurreição de um morto ocorrida em seu tempo e, como se fosse pouco, outro fato porten­toso referente a Justo, apelidado Barsabás, pois aconteceu que este bebeu uma poção mortal sem que, pela graça do Senhor, sofresse qualquer dano.
  5. 10.     Depois da ascensão do Salvador, os sagrados apóstolos puseram este Justo junto com Matias e oraram sobre eles para que a sorte completasse seu número em lugar do traidor Judas; conta-o o livro dos Atos da seguinte maneira: E puseram dois: José, chamado Barsabás, que tinha por sobrenome Justo, e Matias. E orando sobre eles disseram[261].
    1. 11.     O próprio Papias conta também outras coisas como tendo chegado a ele por tradição não escrita, algumas estranhas parábolas do Salvador e de sua doutrina, e algumas outras coisas ainda mais fabulosas.
    2. 12.     Entre elas diz que, depois da ressurreição dentre os mortos, haverá um milênio, e que o reino de Cristo se estabelecerá fisicamente sobre esta terra. Eu creio que Papias supõe tudo isto por haver derivado das explicações dos apóstolos, não percebendo que estes haviam-no dito figuradamente e de modo simbólico.
    3. 13.     E aparece como homem de muito escassa inteligência, segundo se pode supor por seus livros. Mesmo assim, ele foi o culpado de que tantos escrito­res eclesiásticos depois dele tenham abraçado a mesma opinião que ele, apoiando-se na antigüidade de tal varão, como realmente faz Irineu e qual­quer outro que manifeste professar idéias parecidas.
    4. 14.     Em sua própria obra Papias transmite ainda outras interpretações das pala­vras do Senhor recebidas de Aristion, mencionado acima, assim como também outras tradições de João o Presbítero. A elas remetemos a quan­tos queiram instruir-se. Agora nos vemos obrigados a acrescentar às suas palavras anteriormente citadas uma tradição acerca de Marcos, o que escreveu o Evangelho, que vem exposta nos termos seguintes:
    5. 15.     "E o presbítero dizia isto: Marcos, que foi intérprete de Pedro, pôs por escrito, ainda que não com ordem, o quanto recordava do que o Senhor havia dito e feito. Porque ele não tinha ouvido o Senhor nem o havia seguido, mas, como disse, a Pedro mais tarde, o qual transmitia seus ensinamentos segundo as necessidades e não como quem faz uma composição das palavras do Senhor, mas de tal forma que Marcos em nada se enganou ao escrever algumas coisas tal como as recordava. E pôs toda sua preocupação em uma só coisa: não descuidar nada de quanto havia ouvido nem enganar-se nisto o mínimo."
    6. 16.     Isto é o que conta Papias sobre Marcos. Referente a Mateus, diz o seguinte: "Mateus ordenou as sentenças em língua hebraica, mas cada um as traduzia como melhor podia."
    7. 17.     O mesmo escritor utiliza testemunhos tomados da primeira carta de João, e igualmente da de Pedro, e expõe também outro relato de uma mulher acusada de muitos pecados ante o Senhor, que está contido no Evangelho dos hebreus[262]. Que conste também isto, além do que já havia exposto.

 

 

 

 

 

 

 

 

Livro VI

 

I

[Quais foram os bispos de Roma e de Alexandria sob o reinado de Trajano]

1. Corria o duodécimo ano do reinado de Trajano[263], morre o bispo da Igreja de Alexandria, a quem aludimos pouco acima[264], e é eleito para o cargo nela Primo, quarto bispo a partir dos apóstolos. Neste tempo também, tendo Evaristo cumprido seu oitavo ano[265], o episcopado de Roma passa para Alexandre, quinto na sucessão a partir de Pedro e Paulo.

 

II

[O que padeceram os judeus nos tempos de Trajano]

  1. 1.            Enquanto o ensinamento de nosso Salvador e sua Igreja floresciam a cada dia e progrediam mais e mais, a ruína dos judeus chegava ao máximo com sucessivas calamidades. Corria já o ano dezoito do imperador[266] quando estourou novamente uma rebelião dos judeus que levou à ruína uma enorme multidão dentre eles.
  2. 2.            Efetivamente, em Alexandria, assim como no resto do Egito e ainda em Cirene, como que instigados por um espírito terrível e faccioso, amotinaram-se contra seus vizinhos, os gregos. A rebelião cresceu enormemente, e no ano seguinte, sendo então Lupo o governador de todo o Egito, provocaram uma guerra nada pequena.
  3. 3.            Ocorreu que no primeiro choque eles venceram aos gregos, os quais, refugiando-se em Alexandria, prenderam os judeus da cidade e mataram-nos. Mas os judeus de Cirene, não recebendo a ajuda que esperavam destes, dedicaram-se a saquear o país do Egito e a devastar seu nomos, sob o comando de Lucúa[267]. Contra eles o imperador enviou Márcio Turbon com forças de infantaria e de marinha e inclusive de cavalaria.
  4. 4.     Este, depois de manter dura luta contra eles em muitas batalhas e durante bastante tempo, deu morte a muitos milhares de judeus não apenas em Cirene, mas também aos que vinham do Egito, que haviam se sublevado com Lucúa, seu rei.
  5. 5.     Mas o imperador, suspeitando que também os judeus da Mesopotâmia atacariam os habitantes dali, ordenou a Lusio Quieto que limpasse deles a província. Este organizou também uma batida contra eles e assassinou uma grande multidão, façanha pela qual o imperador nomeou-o governador da Judéia. Estes fatos são relatados também com termos idênticos pelos gregos que puseram por escrito dos acontecimentos de seu tempo.

 

III

[Os que saíram em defesa da fé nos tempos de Adriano]

  1. 1.            Depois de Trajano reger o império durante dezenove anos e seis meses, foi sucedido no comando por Elio Adriano. A este Codratos entregou um tra­tado que lhe havia redigido: uma Apologia composta em defesa de nossa religião, já que, efetivamente, alguns homens malvados tratavam de impor­tunar os nossos. Ainda hoje conserva-se nas mãos de muitos de nossos irmãos; nós também possuímos a obra. Nela podemos ver claras provas da inteligência e retidão apostólica deste homem.
  2. 2.            Ele mesmo deixa entrever sua antigüidade nisto que nos conta, em suas próprias palavras:

"Mas as obras de nosso Salvador estavam sempre presentes, porque eram verdadeiras: os que haviam sido curados, os ressuscitados dentre os mortos, os quais não foram vistos apenas no instante de serem curados e ressusci­tados, mas também estiveram sempre presentes, e não apenas enquanto vivia o Salvador, mas também depois de Ele morrer, todos viveram tempo sufi­ciente, de forma que alguns deles chegaram mesmo aos nossos tempos."

3.   Assim era Codratos. Mas também Aristides, homem de fé entregue a nossa religião deixou, assim como Codratos, uma Apologia em favor da fé, que havia dirigido a Adriano. Também a obra deste escritor conservou-se até nossos dias em muitos lugares.

 

IV

[Os bispos de Roma e de Alexandria nos tempos deste]

1. No terceiro ano do mesmo reinado, morre Alexandre, bispo de Roma, depois de cumpridos dez anos de governo. Sucedeu-o Sixto. E na igreja de Alexandria, tendo morrido Primo por este mesmo tempo, no duodécimo ano de sua presidência, foi sucedido por Justo.

 

V

[Os bispos de Jerusalém, desde o Salvador até os tempos de Adriano]

  1. 1.            No que tange às datas dos bispos de Jerusalém, nada encontrei conservado por escrito, porque, na verdade, uma tradição[268] afirma que tiveram vida muito breve.
  2. 2.     Do que foi deixado por escrito, consegui tirar a limpo isto: que até o assédio dos judeus, nos tempos de Adriano, houve uma sucessão de bispos em número de quinze, e dizem que desde a origem todos eram hebreus que haviam aceitado sinceramente o conhecimento de Cristo, tanto que aqueles que estavam capacitados a julgá-los consideraram-nos até dignos do cargo de bispos. Naquele tempo, efetivamente, a igreja era toda composta por fiéis hebreus, desde os apóstolos até o assédio dos que então restavam, quando os judeus, novamente separados dos romanos, foram vítimas de grandes guerras.
    1. 3.             Portanto, como quer que tenham terminado os bispos procedentes da circuncisão naquele momento, talvez seja necessário agora dar sua lista desde o primeiro. O primeiro pois, foi Tiago, o chamado irmão do Senhor; depois dele o segundo foi Simeão; o terceiro, Justo; o quarto, Zaqueu; o quinto, Tobias; o sexto, Benjamim; o sétimo, João; o oitavo, Matias; o nono, Felipe; o décimo, Sêneca; o décimo primeiro, Justo; o décimo segundo, Levi; o décimo terceiro, Efrem; José o décimo quarto e, depois de todos, o décimo quinto, Judas.
    2. 4.      Estes foram os bispos da cidade de Jerusalém, desde os apóstolos até o tempo de que estamos falando, e todos oriundos da circuncisão.
    3. 5.      Achava-se o reinado em seu décimo segundo ano[269] quando Sixto, que havia cumprido seu décimo ano no episcopado de Roma, foi sucedido por Telesforo, sétimo a partir dos apóstolos. Passando ainda um ano e alguns meses, Eumenes recebe em sucessão a presidência da igreja de Alexandria; segundo a ordem, foi o sexto. Seu predecessor havia permanecido no cargo onze anos.

 

VI

[O último assédio de Jerusalém, nos tempos de Adriano]

  1. 1.            A rebelião dos judeus tomava novamente maior força e maior extensão. Rufo, governador da Judéia, com o reforço militar enviado pelo imperador e tirando partido sem piedade de sua louca temeridade, marchou contra eles. Aniquilou em massa milhares de homens, de crianças e de mulheres, e ao amparo da lei da guerra reduziu seus territórios à escravidão.
  2. 2.            Mandava então sobre os judeus um chamado Barkokebas, que significa "estrela"[270], um homem homicida e bandido, mas que, por seu nome, como se tratasse com escravos, dizia que era luz descida dos céus para eles, e com mágicas enganosas fazia ver aos maltratados que brilhava.
  3. 3.     Mas a guerra chegou a seu ponto mais grave no décimo oitavo ano do reinado, em Betera, cidadela fortíssima, a pouca distância de Jerusalém. Como demorava longo tempo o assédio que vinha do exterior, os revolucionários viram-se empurrados à extrema ruína pela fome e pela sede, e o causador de sua insensatez pagou a pena merecida. Por decisão e por mandato de uma lei de Adriano proibiu-se a todo o povo judeu dali em diante pôr os pés sequer na região que rodeia Jerusalém, de forma que nem de longe podiam contemplar o solo pátrio. Isto foi contado por Ariston de Pela.
  4. 4.     Assim foi que a cidade chegou a ficar vazia da raça judia, e foi total a ruína de seus antigos moradores. Pessoas de outra raça vieram a habitá-la, e a cidade romana então constituída logo trocou de nome e se chamou Elia, em honra ao imperador Adriano. Mas também a igreja dali veio a ser composta de gentios, e o primeiro que se encarregou de seu ministério, depois dos bispos que procediam da circuncisão, foi Marcos.

 

VII

[Quem foram neste tempo os líderes da gnosis de enganoso nome]

  1. 1.            As igrejas de todo o mundo já resplandeciam como astros brilhantíssimos, e a fé em nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo chegava a seu pleno vigor em todo o gênero humano, quando o demônio, avesso ao bem assim como inimigo da verdade e sempre hostil, demasiadamente, à salvação dos homens, voltou contra a Igreja todas as suas artimanhas. Se em outro tempo suas armas eram as perseguições contra ela, que vinham de fora,
  2. 2.     agora, em troca, sendo-lhe vedados estes meios e lançando mão de homens malvados e feiticeiros como de funestos instrumentos e ministros da perdição das almas, levam a cabo sua campanha por outros caminhos. Imaginam todos os recursos, como o de que feiticeiros e embusteiros se deslizem sob o próprio nome de nossa doutrina, para assim conduzir ao abismo da perdição os fiéis que conseguem capturar, e aos que não conhecem a fé, com os meios que põe em prática, afastar do caminho que leva à doutrina salvadora.
  3. 3.            Assim pois, de Menandro, de quem já dissemos que foi sucessor de Simão[271], saiu como uma serpente bicéfala e com duas bocas uma força que estabeleceu como autores de duas diferentes heresias Saturnino, antioquenho de origem, e o alexandrino Basílides. Um na Síria e o outro no Egito constituíram caminhos de ensino de heresias inimigas de Deus.
  4. 4.            Irineu demonstra que as falsidades ensinadas por Saturnino eram em sua maior partes as mesmas de Menandro, e que Basílides, sob a aparência de coisas mais secretas, estendia suas fantasias até o infinito, forjando as fábulas monstruosas de sua ímpia heresia.

5.   Naquele tempo saíram a lutar pela verdade grande número de varões eclesiásticos, e defenderam com bastante eloqüência a doutrina apostólica e eclesiástica. Alguns, com seus escritos, inclusive proporcionaram aos que vieram depois os recursos profiláticos contra as referidas heresias.

  1. 6.             Destes chegou até nós uma eficaz Refutação contra Basílides, de Agripa Castor, famosíssimo entre os escritores de então[272].
  2. 7.             Agripa põe a descoberto a habilidade da impostura daquele homem, pois ao desvelar seus mistérios diz que Basílides havia composto vinte e quatro livros sobre o Evangelho, e que chamava Barcabas e Barcof de profetas seus, e instituía para si alguns de sua própria invenção, aos quais dava nomes bárbaros para deixar pasmos aos que se assombram com tais coisas, e também ensinava que comer alimentos oferecidos aos ídolos e renegar despreocupadamente a fé com juramento em tempos de perseguição eram atos sem importância. A exemplo de Pitágoras, impunha cinco anos de silêncio aos que vinham a ele.
  3. 8.             O mesmo escritor enumera ainda outras coisas parecidas a estas sobre Basílides e desmascara valentemente o erro da citada heresia.
  4. 9.      Mas também Irineu escreve que Carpocrates, pai de outra heresia, a deno­minada dos gnósticos, foi coetâneo daqueles. Estes gnósticos consideravam certo transmitir as magias de Simão, não ocultamente como ele, mas aberta­mente, quase gabando-se como se fossem grandes coisas, dos filtros amoro­sos que elaboravam com grande cuidado, de certos espíritos familiares que enviam sonhos e de alguns outros métodos semelhantes. De acordo com isto, ensinavam que os que queriam chegar à perfeição de seus mistérios, melhor dizendo, de suas abominações, tinham que concretizar tudo o que houvesse de mais obsceno, porque, segundo eles, não poderiam escapar aos que chamam de príncipes do mundo senão satisfazendo-os a todos com uma conduta infame.
    1. 10.     O que realmente ocorreu foi que o demônio, cujo prazer é o mal dos outros, usando de tais ministros, por um lado conduziu à escravidão, para sua perdi­ção, aos que estes conseguiram miseravelmente enganar, e por outro propor­cionou aos povos infiéis abundante material de descrédito para a doutrina de Deus, pois a fama daqueles resultava em calúnia para todo o povo cristão.
    2. 11.     Foi assim que, na maior parte, aconteceu que se divulgasse entre os infiéis de então a ímpia e absurdíssima suspeita de que nós praticássemos inconfes­sáveis uniões com nossas mães e com nossas irmãs e que usássemos alimentos sacrílegos.
    3. 12.     Mas o certo é que tudo isso não lhe trouxe proveito por muito tempo, já que a verdade manifestou-se por si mesma e brilhou com uma luz muito intensa com o passar do tempo.
    4. 13.     De fato, rebatidas pela própria ação da verdade, logo se estenderam as invenções do adversário. As heresias eram inventadas umas depois das outras, as primeiras iam caindo sem interrupção e, cada qual a sua maneira e a seu tempo, se corrompiam e ficavam reduzidas a idéias variadas e multiformes. Em troca, o esplendor da única verdadeira Igreja católica, sempre idêntica a si mesma, crescia e aumentava irradiando a toda a raça dos gregos e dos bárbaros a majestade, a simplicidade, a liberdade, a sobriedade e a pureza da conduta e da filosofia divinas.
    5. 14.     Em conseqüência, com o passar do tempo, extinguiram-se também as calú­nias contra toda a doutrina, enquanto que somente nosso ensinamento se mantinha vencedor entre todos e com o reconhecimento de ser a que mais sobressai por sua venerabilidade, sua moderação e suas doutrinas sábias e divinas, de forma que ninguém dos de agora se atreve a proferir contra nossa fé uma injúria vergonhosa nem calúnia semelhantes às que anterior­mente gostavam de utilizar os que se conjuravam contra nós.

15. E mesmo assim, nos tempos de que falamos, a verdade tomou numerosos defensores seus, que não somente lutaram contra as ímpias heresias com argumentos não escritos, mas também com demonstrações escritas.

 

VIII

[Quem foram os escritores eclesiásticos nos tempos de Adriano]

  1. 1.            Entre estes destacava-se Hegesipo. Dele já utilizamos anteriormente nume­rosas citações, com o fim de estabelecer, tomando de sua tradição, alguns fatos dos tempos dos apóstolos.
  2. 2.     Efetivamente, em cinco livros comentou a tradição limpa de erro da pregação apostólica, com um estilo muito simples. O tempo em que se deu a conhecer é indicado por ele mesmo ao escrever assim dos que desde o princípio insta­laram os ídolos:

"Erigiam-lhes cenotáfios e templos, como até hoje. Deles é também Antino, escravo do imperador Adriano. Ainda que contemporâneo nosso, em sua honra celebram-se os jogos Antinoeus. Adriano inclusive fundou uma cidade com o nome de Antinoo e criou profetas."

  1. 3.            Também por este tempo, Justino, sincero amante da verdadeira filosofia, continuava ainda ocupado em exercitar-se nas doutrinas dos gregos. Ele mesmo indica este tempo ao escrever sua Apologia dirigida a Antonino: "Não creio que esteja fora de lugar mencionar aqui também Antinoo, que viveu em nossos dias e a quem todos se sentiam constrangidos a pres­tar culto como a um deus, por medo, apesar de saber quem era e de onde procedia."
  2. 4.     E o mesmo Justino acrescenta o seguinte, ao mencionar a guerra de então contra os judeus:

"E, de fato, na guerra judia de agora, Barkokebas, o líder da rebelião dos judeus, mandava que somente os cristãos fossem conduzidos a terríveis suplícios se não renegassem e blasfemassem contra Jesus o Cristo."

5.   Na mesma obra demonstra que sua conversão da filosofia grega à religião não se fez sem razão, mas com juízo; escreve o seguinte:

"porque também eu mesmo, que me comprazia nos ensinamentos de Platão, ao ouvir as calúnias contra os cristãos e vê-los irem intrépidos para a morte e para tudo que é terrível, comecei a pensar que não era possível que aqueles homens vivessem na maldade e no amor aos prazeres. Pois, que homem amante do prazer ou incontinente ou que pensa que comer carne humana é bom poderia abraçar com alegria a morte se com ela se vê privado do objeto de seus desejos? Não tentaria por todos os meios seguir vivendo sempre sua vida daqui e ocultar-se dos governantes, em vez de delatar-se a si mesmo para ser morto?"

  1. 6.             O mesmo escritor conta ainda que Adriano recebeu de Serenio Graniano, lúcido governador, uma carta em favor dos cristãos, dizendo que não era justo, sem ter havido acusação nenhuma, condená-los à morte sem julga­mento, apenas para dar o gosto aos gritos do povo, e que havia respondido a Minucio Fundano, procônsul da Ásia, ordenando-lhe que ninguém julgasse sem denúncia e sem acusação razoável.
  2. 7.      Desta carta Justino oferece uma cópia, conservando a língua latina, tal como estava, e antepondo o seguinte:

"Poderíamos também, pelo conteúdo de uma carta do máximo e ilustrís­simo imperador Adriano, vosso pai, exigir que mandeis celebrar os jul­gamentos segundo nossa demanda. Mas isto não pedimos por ter sido ordenado por Adriano, mas por estarmos convencidos de que nossa reclamação é justa. No entanto, também colocamos atrás a cópia da car­ta de Adriano, para que saibas que também nisto dizemos a verdade. E a que segue."

8.   E em continuação ao dito, o mencionado autor põe a própria cópia latina, que nós, no entanto, traduzimos ao grego, como pudemos, e diz assim:

 

IX

[Uma carta de Adriano dizendo que não se deveria perseguir-nos sem

julgamento]

  1. 1.             "A Minucio Fundano: Recebi uma carta que me foi escrita por Serenio Graniano, varão claríssimo, a quem tu sucedeste. Pois bem, não me parece que devamos deixar sem examinar o assunto, para evitar que se perturbe os homens e que os delatores encontrem apoio para suas maldades.
  2. 2.      Por conseguinte, se os habitantes de uma província podem sustentar com firmeza e às claras esta demanda contra os cristãos, de tal modo que lhes seja possível responder ante um tribunal, devem ater-se a este procedi­mento somente, e não a meras petições e gritos. Efetivamente, é muito melhor que, se alguém quiser fazer uma acusação, tu mesmo examines o assunto. 3. Portanto, se alguém os acusa e prova que cometeram algum delito contra as leis, julga tu segundo a gravidade da falta. Se porém - por Hércules - alguém apresenta o assunto para caluniar, decide sobre esta atrocidade e cuida de castigá-la adequadamente." Este é o transcrito de Adriano.

 

X

[Quem foram os bispos de Roma e de Alexandria sob o reinado de Antonino]

1. Depois de pagar este sua dívida, depois de vinte e um anos, o Império romano é recebido em sucessão por Antonino, o chamado Pio. Em seu primeiro ano morre Telesforo, que cumpria o décimo primeiro de seu ministério, e Higinio assume o episcopado de Roma. Conta Irineu que Telesforo abri­lhantou sua morte com o martírio, e no mesmo lugar declara que, nos tem­pos do mencionado bispo de Roma Higinio, eram notórios em Roma estes dois: Valentim, introdutor de sua própria heresia, e Cerdon, causador do erro de Márcion. Escreve assim:

 

XI

[Dos heresiarcas daqueles tempos]

  1. 1.            "Valentim veio a Roma, realmente, nos tempos de Higinio, mas floresceu sob Pio e permaneceu até Aniceto. E Cerdon, o antecessor de Márcion -também no tempo de Higinio, que foi o nono bispo -, assim que chegou à Igreja, depois de fazer confissão pública, passava sua vida assim: algu­mas vezes ensinava às escuras e outras vezes via refutadas suas doutrinas, e ia se afastando da companhia dos irmãos."
  2. 2.            Isto diz em seu livro terceiro dos escritos Contra as heresias. Mesmo assim, também no primeiro explica o que segue sobre Cerdon:

"Um tal Cerdon, que vinha do círculo de Simão e residia em Roma no tempo de Higinio - o nono na sucessão do episcopado a partir dos apóstolos -, andava ensinando que o Deus proclamado pela Lei e os Profetas não era Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, já que um é conhecido e o outro desconhecido; um é justo e o outro é bom. Tendo-lhe sucedido Márcion o Pôntico, este deu muita força à escola, blasfemando sem pudor."

  1. 3.     O mesmo Irineu explica vigorosamente o abismo infinito da matéria, carregada de erros, de Valentim, e põe a nu sua maldade oculta e insidiosa, como de serpente que se esconde na touceira.
  2. 4.      Depois destes diz que houve na mesma época outro, um tal chamado Marcos, habilíssimo na arte da magia. Descreve também suas intermináveis iniciações e suas infames mistagogias, revelando-as nos seguintes termos:
  3. 5.      "Alguns deles, efetivamente, preparam um leito e celebram uma iniciação ao mistério com algumas invocações mágicas sobre os iniciados, e dizem ser um matrimônio espiritual o que eles fazem, à semelhança das uniões do alto. Outros, ainda, levam-nos às águas e, ao batizá-los, dizem sobre eles: 'Em nome do desconhecido pai de todas as coisas; pela verdade, mãe de tudo; por aquele que desceu sobre Jesus.' E outros dizem sobre eles nomes hebreus, com o fim de impressionar mais os iniciados."
  4. 6.             Agora bem, tendo morrido Higinio depois do quarto ano de episcopado, encarrega-se do ministério em Roma Pio.

Em Alexandria foi proclamado pastor Marcos, depois que Eumenes cumpriu no total treze anos. Morto Marcos depois de dez anos de ministério, Celadion recebe o ministério da igreja de Alexandria.

7.   Na cidade de Roma, falecido Pio no décimo quinto ano de seu episcopado, assume a presidência dali Aniceto. Hegesipo conta sobre si mesmo que no tempo deste veio a estabelecer-se em Roma e que ali viveu até o episcopado de Eleutério.

  1. 8.             Mas sobretudo foi nesta época que floresceu Justino. Com estofo de filósofo, era embaixador da palavra de Deus e lutava pela fé com seus escritos. Escreveu efetivamente um tratado Contra Márcion, no qual recorda que, ao tempo em que o compunha, este ainda estava vivo. Diz assim:
  2. 9.      "Há um tal Márcion, natural do Ponto, que ainda hoje está ensinando seus seguidores a crerem em outro deus maior do que o criador: e com a ajuda dos demônios, fez com que por todas as raças de homens muitos proferissem blasfêmias e negassem que o criador de todo o universo seja o Pai de Cristo, e em troca confessem que algum outro o tivesse criado, por ser em compara­ção maior do que ele. E como dissemos, todos os que procederam destes são chamados cristãos, do mesmo modo que, apesar de não serem as doutrinas comuns a todos os filósofos, o sobrenome de filosofia é comum a todos eles." Ao que acrescenta:
  3. 10.  "Também temos um tratado Contra todas as heresias passadas[273], que vos daremos se quereis lê-lo."
  4. 11.      E este mesmo Justino, depois de escrever muito acertadamente contra os gregos, dirigiu também outras obras que continham uma defesa em favor de nossa fé ao imperador Antonino, o chamado Pio, e ao senado romano, pois estava residindo em Roma. Sobre si mesmo declara em sua Apologia quem era e de onde procedia, nos seguintes termos:

 

XII

[Da Apologia de Justino dirigida a Antonino]

1. "Ao imperador Tito Elio Adriano Antonino Pio César Augusto, e a Veríssi­mo[274], seu filho, filósofo, e a Lúcio, filho por natureza do césar, filósofo, e de Pio por adoção, amante do saber, e ao sagrado senado e a todo o povo romano, em favor dos homens de toda raça injustamente odiados e calu­niados: Eu, Justino, filho de Prisco, que o era por sua vez de Bacquio, oriundo de Flavia Neápolis, da Síria, Palestina, e um deles, compus este discurso e esta súplica."

O próprio imperador foi solicitado também por outros irmãos da Ásia, importunados com toda sorte de insolência pela população local, e julgou bom enviar ao concilio da Ásia o seguinte transcrito:

 

XIII

[Uma carta de Antonino ao concilio da Ásia sobre a nossa doutrina]

  1. 1.            "O imperador César Marco Aurélio Antonino Augusto Armênio, pontífice máximo, tribuno da plebe pela décima quinta vez, cônsul por três vezes, ao concilio da Ásia, saudações[275];
  2. 2.            Eu sei que também os deuses se ocupam de que estes não permaneçam ocultos. Efetivamente, eles castigariam muito mais do que vós aos que não queiram adorá-los.
  3. 3.     "A estes estais empurrando para a agitação, uma vez que os confirmais na doutrina que professam acusando-os de ateus. Para eles seria preferível, assim acusados, parecer que morreram por seu próprio Deus a seguir vivendo. Por isso inclusive estão vencendo, porque entregam suas próprias vidas em vez de obedecer ao que vós pretendeis que façam.
  4. 4.     Quanto aos terremotos passados e atuais, não será demais recordar-vos que vos sentis acovardados quando chegam, e comparais nossa situação à sua.
  5. 5.     Eles, efetivamente, têm muito maior confiança em Deus, enquanto que vós, em todo o tempo pareceis estar em completa ignorância, descuidais dos outros deuses e do culto ao imortal. Os cristãos o adoram, e vós os maltratais e perseguis até a morte.
  6. 6.     Em favor destes já escreveram a nosso diviníssimo pai[276] muitos governa­dores das províncias, aos quais respondeu que em nada fossem aqueles molestados, a não ser que fosse evidente que empreendiam algo contra o poder público de Roma. Também a mim muitos me falaram sobre eles, e também respondi seguindo o parecer de meu pai.
  7. 7.      Mas se alguém persistir em levar algum deles ao tribunal apenas por ser deles, fique o acusado livre de encargos, ainda que seja evidente que é cristão; por outro lado, o acusador ficará sujeito a castigo. "Publicado em Éfeso, no concilio da Ásia."
  8. 8.             Que assim sucederam as coisas é atestado pelo bispo da igreja de Sardes, Meliton, célebre naquela época, pelo que se percebe na Apologia que dirigiu ao imperador Vero em favor de nossa doutrina.

 

XIV

[O que se recorda sobre Policarpo, discípulo dos apóstolos]

  1. 1.            Nos tempos aludidos e estando Aniceto à cabeça da igreja de Roma, conta Irineu que Policarpo ainda vivia e que veio a Roma para conversar com Aniceto por causa de certa questão acerca do dia da Páscoa.
  2. 2.            O mesmo escritor nos transmite outro relato acerca de Policarpo, que é necessário acrescentar ao que dele se disse. É o que segue:

 

Tomado do Livro III dos de Irineu contra as heresias.

  1. 3.     "E também Policarpo. Não somente foi instruído pelos apóstolos e conviveu com muitos que haviam visto o Senhor, mas também foi instituído bispo da Ásia pelos apóstolos, na igreja de Esmirna. Nós inclusive o vimos em nossa idade juvenil.
  2. 4.     Já que viveu muitos anos e morreu muito velho, depois de dar glorioso e esplêndido testemunho. Sempre ensinou o que havia aprendido dos após­tolos, que é também o que a Igreja transmite e o único que é verdade.
  3. 5.            Disto dão testemunho todas as igrejas da Ásia e os que até hoje sucede­ram a Policarpo, que é um testemunho da verdade muito mais digno de fé e muito mais seguro que Valentim, que Márcion e que o resto, de juízo corrompido. E estando de passagem por Roma nos tempos de Aniceto, reconduziu muitos dos hereges acima mencionados à igreja de Deus, pregando-lhes que única e exclusivamente havia recebido dos apóstolos esta verdade: o que transmite a Igreja.
  4. 6.            E há quem o tenham ouvido dizer que João, o discípulo do Senhor, indo banhar-se em Éfeso e tendo visto Cerinto nos banhos, saltou para fora das termas sem ter-se banhado e disse: "Fujamos, não ocorra que também as termas venham abaixo por estar dentro Cerinto, o inimigo da verdade[277]."
  5. 7.             E o mesmo Policarpo, quando uma vez Márcion fez-se encontrar e lhe disse: "Reconhece-nos", respondeu-lhe: "Reconheço-te. Reconheço o primogênito de Satanás." Era tal a cautela que tinham os apóstolos e seus discípulos para não comunicar-se sequer por palavra com nenhum falsificador da ver­dade, que o próprio Paulo disse: Ao herege, depois de primeira e segunda advertência, rechaça-o, pois sabes que este está perdido e peca, condenando a si mesmo[278]."
  6. 8.             "Há também uma carta de Policarpo, escrita aos filipenses, importantíssima, pela qual podem conhecer a índole de sua fé e sua mensagem da verdade aqueles que o queiram e que se preocupam com sua própria salvação."
  7. 9.      Isto disse Irineu. Quanto a Policarpo, na mencionada carta sua aos filipenses, conservada até o presente, faz uso de alguns testemunhos tomados da primeira carta de Pedro.
  8. 10.  A Antonino, o chamado Pio, depois de cumpridos seus vinte e dois anos de governo, sucedeu seu filho Marco Aurélio Vero, também chamado Antonino, junto com seu irmão Lúcio.

 

XV

[De como, nos tempos de Vero, Policarpo sofreu o martírio junto com outros da cidade de Esmirna]

  1. 1.            Neste tempo[279] morreu mártir Policarpo, quando enormes perseguições estavam perturbando a Ásia. Creio ser muito necessário incluir na narrativa da presente história o relato de seu fim, ainda conservado por escrito.
  2. 2.     A carta está escrita em nome da Igreja que ele governava, para as igrejas de (todo)[280] lugar e declara o que se refere a ele nos seguintes termos:
  3. 3.            "A igreja de Deus que peregrina[281] em Esmirna à igreja de Deus que reside como forasteira em Filomelio e a todas as comunidades da santa Igreja católica, forasteiras em todo lugar: a misericórdia, a paz e o amor de Deus Pai e de nosso Senhor Jesus Cristo se multipliquem. Nós vos escrevemos, irmãos, o que se refere aos que sofreram martírio e ao bem-aventurado Policarpo, que com seu martírio, como se houvesse posto seu selo, fez cessar a perseguição."
  4. 4.     Em continuação, e antes de referir-se a Policarpo, narram o referente aos mártires e descrevem a constância que mostraram ante os tormentos, pois contam que foram motivo de assombro para os que formavam círculo em torno deles e os contemplavam, ora dilacerados por açoites até o mais profundo de suas veias e artérias, de forma que podiam observar os órgãos de seus corpos, suas entranhas e seus membros, ora a outros, estendidos sobre conchas marinhas e pontas afiadas, e entregues por fim como pasto às feras, depois de ter passado por castigos e tormentos de toda espécie.
  5. 5.             E contam que distinguiu-se especialmente o nobilíssimo Germânico, que com a ajuda da graça divina sobrepôs-se à covardia natural ante a morte do corpo. O Procônsul queria persuadi-lo e alegava como pretexto sua idade, e suplicava-lhe que, já que estava na flor da juventude, tivesse compaixão de si mesmo; mas ele não vacilou, mas valentemente atraiu para si as feras, quase forçando-as e atiçando-as, para poder afastar-se mais rapidamente da vida injusta e criminosa daqueles.
  6. 6.             Ante a gloriosa morte deste homem, a multidão toda pasmou-se vendo a valentia do mártir divino e a virtude de toda a linhagem dos cristãos, e todos a uma voz começaram a gritar: "Morram os ateus! Que se busque Policarpo!"
  7. 7.      Tendo-se criado com a gritaria uma grande confusão, certo homem da Frigia, chamado Quinto, recentemente chegado da Frigia, ao ver as feras e tudo o mais que o ameaçava, sentiu enfraquecer-se a alma presa do medo e terminou por abandonar sua salvação.
  8. 8.             Mas o relato do escrito acima demonstra que este homem lançou-se ante o tribunal de forma demasiado precipitada e sem a devida cautela. Assim pois, uma vez preso, proporcionou a todos um exemplo manifesto de que não é lícito arriscar-se em tais empresas temerária e incautamente. Assim terminava o que se referia a estes homens.
    1. 9.             Quanto ao admirável Policarpo, quando ouviu estas coisas não se perturbou; seguiu observando firme e imutável seus costumes e queria permanecer ali, na cidade. Mas persuadido pelas súplicas dos que o rodeavam e pelos que o exortavam a afastar-se secretamente, retirou-se a uma propriedade não muito distante da cidade, e ali passava seu tempo em companhia de uns poucos, não fazendo outra coisa, noite e dia, que perseverar na oração ao Senhor. Nela pedia e suplicava pela paz, pedindo-a para as igrejas de todo o universo, o que aliás sempre fora costume seu.
    2. 10.      E foi enquanto orava, numa visão que teve à noite três dias antes de sua prisão, quando viu que o travesseiro de sua cabeceira se consumia completa­mente abrasado pelo fogo. Despertado pelo fato, logo interpretou para os presentes o ocorrido, quase adivinhando o futuro, e anunciou claramente aos circunstantes que ele haveria de morrer por Cristo no fogo.
    3. 11.  Assim pois, quando os que o procuravam com toda presteza já se achavam próximos, diz-se que ele se mudou para outro sítio, forçado novamente pela disposição e o amor dos irmãos, e ali apareceram pouco depois os perseguidores, que detiveram dois criados. Submeteram um deles a torturas e assim chegaram ao paradeiro de Policarpo.
    4. 12.     Como chegaram a uma hora tardia, encontraram-no deitado num cômodo do piso superior, de onde era possível passar para outra casa; mas ele não quis fazê-lo e disse: "Cumpra-se a vontade de Deus."

13. Efetivamente, quando soube que estavam ali - como diz o relato —, desceu e pôs-se a conversar com eles, com o rosto radiante e cheio de suavidade, de forma que aqueles que antes não o conheciam acreditavam estar vendo um prodígio, ao considerar sua avançada idade e seu porte venerável e firme, e se admiravam de tanto esforço para prender um ancião.

14. Mas ele, sem tardar, manda que lhes ponham a mesa; logo convida-os a participar de abundante jantar e pede-lhes apenas uma hora para orar tranqüilo. Como eles o permitiram, levantou-se e pôs-se a orar, cheio da graça de Deus. Os presentes estavam assombrados ouvindo-o rezar, e muitos deles arrependeram-se já de que tivesse que ser executado um ancião tão venerável e digno de Deus.

15. Depois do que foi dito, o escrito que trata dele continua a narrativa literal­mente como segue:

"Quando terminou sua oração, depois de fazer memória de todos com quem havia tratado em sua vida, pequenos e grandes, ilustres e plebeus, e de toda a Igreja católica espalhada por toda a terra habitada, quando chegou a hora de partir, sentaram-no no lombo de um asno e conduziram-no à cidade. Era dia de grande sábado. Foram ao encontro do irenarca[282] Herodes e seu pai, Nicetas, fizeram-no subir em seu carro, sentaram-no a seu lado e trataram de persuadi-lo dizendo: "Mas que há de mal em dizer: César é o Senhor! E em sacrificar, e com isto salvar a vida?"

  1. 16.     "Policarpo a princípio não respondia, mas como insistissem, disse: "Não tenho intenção de fazer o que me aconselhais.' Como não conseguiram seu intento, começaram a dizer-lhe palavras terríveis e fizeram-no descer a toda pressa, tanto que ao descer do carro arranhou a perna. Mas ele, sem virar-se, como se nada tivesse lhe acontecido, pôs-se animadamente a caminhar com pressa, conduzido ao estádio.

17. Era tal o ruído no estádio, que muitos não podiam ouvir. Entrando Policarpo no estádio, sobreveio uma voz do céu: 'Sê forte, Policarpo, e porta-te como homem.' Ninguém viu quem falou, mas muitos dos nossos ouviram a voz.

18. Quando o 'conduziam armou-se grande tumulto por parte dos que perce­beram que haviam prendido Policarpo. Logo, quando se aproximou, per­guntou-lhe o procônsul se ele era Policarpo. Tendo ele confessado, aquele tentou persuadi-lo a que renegasse, dizendo: 'Tenha consideração a tua idade', e outras coisas parecidas a estas, como tem costume de dizer: 'Jura pelo gênio do César. Muda de pensar.' Diga: 'Morram os ateus!'

  1. 19.     Mas Policarpo olhou com rosto severo a toda a turba que se encontrava no estádio, agitou para eles sua mão e, entre soluços e levantando a vista ao céu, disse: 'Morram os ateus!'
  2. 20.     Mas quando o governador lhe pediu e disse: 'Jura e te soltarei; maldiz a Cristo', Policarpo disse: 'Oitenta e sei anos venho servindo-o e nenhum mal me fez. Como posso blasfemar contra meu rei, que me salvou?'

21. Como o procônsul insistisse novamente e dissesse: 'Jura pela sorte do César', Policarpo respondeu: "Se abrigas a vã pretensão de que eu jure pelo gênio do César, como dizes, fingindo que ignoras quem sou eu, com franqueza, escuta: sou cristão. Mas se é que queres aprender a doutrina do cristianismo, dá-me um dia e escuta".

22. Disse o procônsul: "Convence ao povo". Policarpo replicou: "A ti considero digno do meu discurso, pois nos é ensinado render as honras devidas às autoridades e potestades estabelecidas por Deus[283], enquanto não seja em detrimento nosso; mas a estes não os considero dignos de que me defenda perante eles.'

23. E o procônsul disse: 'Tenho feras. A elas te lançarei se não mudas tua posi­ção.' Mas ele respondeu: 'Chama-as, porque para nós não é possível mudar de posição se é do melhor para o pior. O bom é mudar do mau para o justo.'

24. Insistiu o procônsul: 'Como não te arrependes, farei com que o fogo te dome se desprezas as feras'. Policarpo disse: "Ameaças com um fogo que arde algum tempo, mas depois de um pouco se apaga. E ignoras o fogo do juízo futuro e do castigo eterno, reservado aos ímpios. Mas, por que tardas? Traga o que quiseres.'

25. Enquanto dizia isto e muitas outras coisas mais, enchia-se de valor e de alegria, e seu rosto transbordava de graça, ao ponto de que não somente não caiu em confusão pelas coisas que lhe diziam, mas pelo contrário, foi o procônsul que ficou fora de si e chamou o arauto para que no meio do estádio apregoasse três vezes: 'Policarpo confessou que é cristão.'

26. Quando o arauto disse isso, toda a turba de gentios e de judeus que habitavam Esmirna se pôs a gritar com ânimo exaltado e grande vozerio: 'Este é o mestre da Ásia, o pai dos cristãos, o destruidor de nossos deuses, o que ensinou a muitos a não sacrificar e a não adorar.'

27. Enquanto diziam isto, gritavam mais e mais, e pediam ao asiarca[284] Felipe que lançasse um leão contra Policarpo. Disse ele que não podia, por estar terminado o combate de feras. Então acharam por bem gritar juntos que Policarpo fosse queimado vivo.

  1. 28.      E devia cumprir-se a visão que teve de seu travesseiro quando, enquanto orava, viu que se consumia abrasado, e voltando-se para os fiéis que estavam com ele, disse-lhes em tom profético: 'Devo ser queimado vivo.'
  2. 29.  Isto se fez mais depressa do que foi dito. A turba arrancou das oficinas e dos banhos a madeira e lenha miúda. Os mais entusiásticos em colaborar com a tarefa foram, como de costume, os judeus.
  3. 30.  Quando a fogueira estava pronta, Policarpo despojou-se de todas suas rou­pas e, descingindo-se, tratou de soltar também seu calçado, coisa que antes não fazia pois cada fiel sempre se esforçava para ser o primeiro a tocar sua pele; porque a todo momento, antes mesmo de ter os cabelos brancos, havia sido honrado por causa de sua santa vida.
  4. 31.  Em seguida foram colocando a sua volta os instrumentos preparados para a fogueira, mas quando já iam pregá-lo, disse-lhes: "Deixai-me assim, pois quem me dá esperar com pés firmes o fogo, me dará também, sem que seja necessária a segurança de vossos pregos, o manter-me firme na fogueira.' E não o pregaram, mas amarraram-no.
  5. 32.  Com as mãos às costas e amarrado como um carneiro escolhido que é tirado de um grande rebanho como holocausto aceitável a Deus Todo-poderoso, disse:
    1. 33.  'Pai de teu amado e bendito Filho Jesus Cristo, por quem recebemos o conhecimento acerca de ti, Deus dos anjos, das potestades, de toda a criação e de toda a raça dos justos que vivem em tua presença: Bendigo-te porque me julgaste digno deste dia e desta hora, para ter parte, entre o número dos mártires, no cálice de teu Cristo para ressurreição na vida eterna, tanto da alma como do corpo, na integridade do Espírito Santo.
    2. 34.  Oxalá seja eu recebido em tua presença hoje, com eles, em sacrifício pio e aceitável!, segundo preparaste de antemão, como de antemão o manifestaste e o cumpriste, ó Deus sem mentira e verdadeiro!
    3. 35.  Por esta razão, e por todas as coisas, te louvo, te bendigo, te glorifico, por meio do eterno e sumo sacerdote Jesus Cristo, teu Filho amado, pelo qual seja a glória a ti, com Ele no Espírito Santo, agora e nos séculos vindouros. Amém.'
    4. 36.  Quando pronunciou o Amém e terminou sua oração, os encarregados do fogo acenderam-no, mas, fazendo-se uma grande chama, vimos um prodígio, aqueles aos quais foi dado vê-lo e que fomos conservados para anunciar aos demais o ocorrido.
    5. 37.  Ocorreu que o fogo, formando uma espécie de abóbada, como a vela de um navio enchida pelo vento, protegeu o corpo do mártir como uma muralha em torno. E ele estava no meio, não como carne queimada, mas como ouro e prata candentes no forno. E nós, em verdade, sentíamos uma fragrância tal, como exalada pelo incenso ou por qualquer outro aroma precioso.
    6. 38.  Ao fim, vendo aqueles ímpios que o corpo não podia ser consumido pelo fogo, ordenaram ao confector[285] que se aproximasse e cravasse nele sua espada;
    7. 39.  feito isto, brotou um caudal de sangue tão grande que apagou o fogo e deixou assombrada a multidão que via a grande diferença entre os infiéis e os eleitos. Um destes foi este homem, admirável em demasia, mestre apostó­lico e profético de nossos dias, bispo que foi da igreja católica de Esmirna. Efetivamente, toda palavra que saiu de sua boca se cumpriu e se cumprirá.
    8. 40.  Mas o rival e invejoso maligno, adversário da raça dos justos, ao ver a grandeza de seu martírio e a vida irrepreensível que havia levado desde o princípio e que já estava coroado com a coroa da integridade e já tinha alcançado um prêmio indiscutível, dispôs as coisas de tal maneira que nós não recolhemos seu corpo, mesmo sendo muitos os que desejavam fazê-lo e ter parte em seus santos despojos.
    9. 41.  Alguns pois, sugeriram a Nicetas, pai de Herodes e irmão de Alce, solicitar do governador que não entregasse o corpo do mártir, 'não ocorra que -disse - deixando o crucificado, comecem a render culto a este'. E diziam isto por sugestão e por pressão dos judeus, que também vigiavam quando nós íamos recolhê-lo da fogueira. Pois ignoram que nós jamais poderemos abandonar a Cristo, que padeceu pela salvação de todos os que no mundo inteiro se salvam, nem render culto a nenhum outro.
    10. 42.  Porque a este adoramos por ser Filho de Deus; aos mártires, por outro lado, amamos justamente porque são discípulos e imitadores do Senhor, por causa de sua insuperável benevolência para com seu próprio rei e mestre. Oxalá também nós fôssemos partícipes de sua sorte e seus condiscípulos!
    11. 43.  Vendo pois o Centurião a insistência dos judeus, pôs o corpo no meio, como de costume, e queimou-o. E assim nós logo retiramos seus ossos, mais estimáveis que as pedras preciosas e mais dourados do que o ouro, e os guardamos em lugar conveniente.
      1. 44.  Ali, reunidos enquanto nos seja possível, jubilosos e alegres, o Senhor nos concederá celebrar o aniversário de seu martírio, para memória dos que lutaram e para exercício e preparação dos que terão que lutar.
      2. 45.  Este foi o final do bem-aventurado Policarpo. Ainda que sejam doze o número dos martirizados em Esmirna, junto com os de Filadélfia, ele é o único de quem todos mais se recordam, ao ponto de que inclusive os pagãos estão falando dele em todas as partes."
      3. 46.      Deste final fez-se digno o admirável e apostólico Policarpo, cujo relato foi exposto pelos irmãos da igreja de Esmirna na carta deles que citamos. Neste mesmo escrito que trata dele estão juntos outros martírios que tiveram lugar na mesma Esmirna na mesma época que o martírio de Policarpo. Com eles pereceu também, entregue às chamas, Metrodoro, que se acredita que fosse presbítero da seita de Márcion.
      4. 47.  Mas o mártir mais famoso dos de então foi Pionio. Suas sucessivas confissões, sua liberdade de expressão, suas apologias da fé em presença do povo e das autoridades, seus discursos didáticos ao povo e ainda sua amável acolhida aos que haviam sucumbido na prova da perseguição, assim como as exortações que, estando no cárcere, dirigia aos irmãos que a ele acudiam, e também os tormentos que depois sofreu, os suplícios que se juntaram, seu encravamento, sua integridade na fogueira e, depois de todas estas maravilhas, sua morte: tudo isto está contido de maneira muito completa no escrito que dele trata[286]. A ele remetemos quem se interessar: acha-se incluído entre os martírios dos antigos, por nós recompilados.
      5. 48.  Conservam-se também as atas de outros mártires que foram martirizados em Pérgamo, cidade da Ásia: Carpo, Papilo e uma mulher, Agatonice, que acabaram gloriosamente depois de muitas e ilustres confissões.

 

XVI

[De como Justino o Filósofo, sendo de avançada idade, sofreu martírio pela doutrina de Cristo na cidade de Roma]

  1. 1.            Por este mesmo tempo[287], Justino, mencionado há pouco, depois de dedicar aos supracitados imperadores seu segundo livro em defesa de nossas doutrinas, foi adornado com o sagrado martírio. O responsável pela cons­piração foi o filósofo Crescente - homem que se esforçava em levar uma vida e uma conduta bem adequadas ao cognome de cínico[288] -, pois Justino o havia repreendido muitas vezes em presença de seus ouvintes. Justino, com seu martírio acabou cingindo o prêmio da vitória da verdade da qual era embaixador.
  2. 2.     Também isto foi previsto por ele mesmo, consumado filósofo que era, na mencionada Apologia, e tão claramente como de fato haveria de suceder-lhe. Estes são seus termos:
  3. 3.     "E eu mesmo espero ser vítima da conspiração de algum dos nomeados e ser agrilhoado ao cepo. Talvez por obra de Crescente, o amigo, não da sabedoria, mas da ruidosa jactância, já que não é justo chamar de filósofo um homem que em público atesta o que ignora, como quando diz que os cristãos são ateus e ímpios, fazendo assim para graça e gosto do vulgo extraviado no erro.
  4. 4.      Porque, se é que nos ataca sem ter lido os ensinamentos de Cristo, é dos mais malvados e muito pior do que os ignorantes, os quais muitas vezes evitam conversar e atestar falsamente sobre o que ignoram. E se é que os leu sem entender a grandeza que há neles, ou se os entendeu, mas faz assim para não ser suspeito de ser cristão, então é muito mais ignóbil e malvado, escravo de uma opinião, ignorante e irracional, e do medo.
  5. 5.      Porque quero que saibais que, havendo-lhe já proposto e feito perguntas deste gênero, dei-me conta e o convenci de que verdadeiramente não sabe nada. E como prova de que digo a verdade, se é que não vos remeteram os informes da discussão, estou disposto a fazer novamente as perguntas inclu­sive em vossa presença, tarefa que também seria digna de um imperador.
  6. 6.      Mas se já vos são conhecidas minhas perguntas e as respostas daquele, tereis visto bem claramente que nada sabe de nossas coisas. Ou se o sabe, mas não se atreve a dizê-lo por causa dos ouvintes, como disse antes, não mostra ser um homem amante do saber, mas amante da opinião e depreciador da sentença de Sócrates[289], digníssima de todo apreço".
  7. 7.      Isto diz Justino. Segundo sua previsão, morreu vítima das maquinações de Crescente. Taciano, varão que em seus primeiros tempos professou as ciências helênicas, nas quais alcançou não pequena fama, e deixou em seus escritos muitos monumentos de seu engenho, narra em seu Discurso aos gregos como segue:

"E o admirável Justino exclamou com toda justiça que os supracitados pareciam bandidos."

8.   Depois de acrescentar algumas coisas sobre os filósofos, continua dizendo o que segue:

"Crescente, pois, o que se aninhou na grande cidade, a todos suplantava como pederasta e estava inteiramente entregue ao amor do dinheiro.

9.   Quem aconselhava a desprezar a morte, ele mesmo temia a morte de tal maneira que arranjou para precipitar Justino na morte, como num grande mal, porque este, pregando a verdade, havia provado que os filósofos eram uns glutões e embusteiros." Esta foi a causa do martírio de Justino.

 

XVII

[Dos mártires mencionados por Justino em sua própria obra]

1. O mesmo autor, antes de seu próprio combate, menciona em sua primeira Apologia a outros mártires anteriores a ele. Também este relato é útil para nosso intento.

  1. 2.      Escreve assim: "Uma mulher vivia com seu dissoluto marido, e ela mesma havia-se dado anteriormente à vida dissoluta. Mas, depois que conheceu os ensinamen­tos de Cristo, aprendeu a conter-se e tratava de persuadir seu marido a tor­nar-se casto também, apresentando os ensinamentos e anunciando-lhe o castigo que no fogo eterno terão os que não vivem castamente e conforme a reta razão.
  2. 3.             Mas ele perseverava na mesma devassidão e com suas obras seguia afas­tando-se de sua esposa, pois a mulher, considerando ímpio seguir compar­tilhando o leito com um homem que buscava recursos de prazer por todos os meios, contra a lei da natureza e contra a justiça, quis divorciar-se.
  3. 4.             E como os seus lhe suplicaram e a aconselharam que aguardasse ainda, com a esperança de que o homem pudesse um dia mudar, fazendo uma violência contra si mesma, esperou.
  4. 5.             Mas depois que seu marido foi para Alexandria e ela teve notícia de que ali fazia coisas piores, para evitar compartilhar com ele as injustiças e impiedades permanecendo no matrimônio e compartilhando a mesa e o leito, deu-lhe o que entre vós se chama repudium e se separou.
  5. 6.             Mas o bom de seu marido, que deveria alegrar-se de que sua mulher, antes entregue à vida fácil com criados e diaristas, desfrutando de bebedeiras e todo tipo de maldades, não somente havia cessado com todas estas práticas, mas que também queria que ele deixasse de fazer o mesmo, porque havia se separado sem que ele o quisesse, vai e a acusa de ser cristã.
    1. 7.             E ela apresentou a ti, imperador, um libelo em que pedia, em primeiro lugar, que lhe fosse permitido dispor de seus bens, e depois, quando seus assun­tos estivessem arranjados, apresentar sua defesa frente à acusação. E tu o permitiste.
    2. 8.             Mas seu ex-marido, não podendo então dizer nada contra ela, voltou-se contra um tal Ptolomeu - a quem Urbicio havia imposto um castigo - porque havia sido mestre daquela nas doutrinas cristãs. Procedeu da seguinte maneira:
    3. 9.      Ao Centurião que havia aprisionado Ptolomeu, e que era seu amigo, persua­diu a que se apoderasse de Ptolomeu e lhe dirigisse esta única pergunta: se era cristão. E Ptolomeu, que amava a verdade e não tinha o caráter embusteiro nem mentiroso, confessou que era cristão. O Centurião fez com que o acorrentassem, e durante muito tempo submeteu-o a castigo no cárcere.
    4. 10.  E quando por último Ptolomeu foi conduzido à presença de Urbicio, também lhe perguntaram unicamente isto: se era cristão. E novamente, consciente do bem que havia recebido por meio da doutrina de Cristo, confessou a escola da divina virtude;
    5. 11.     porque quem nega algo, o que quer que seja, ou nega porque o condena, ou rejeita a confissão porque considera a si mesmo indigno e alheio a isto. Nenhum destes casos enquadra o verdadeiro cristão.
    6. 12.     E quando Urbicio mandou que o levassem à execução, um tal Lúcio, que também era cristão, vendo que a sentença era dada tão contra a razão, disse dirigindo-se a Urbicio: 'Qual é a causa de que tenhas condenado este homem sem haver provado que seja um adúltero, um fornicador, um homicida, um ladrão e sem que, em uma palavra, tenha cometido injustiça, mas somente porque confessou levar o nome de cristão? Tu, Urbicio, não julgas como corresponde ao imperador Pio nem ao filósofo que é o filho do César, nem tampouco ao senado sagrado.'
    7. 13.     E Urbicio, sem nada responder, disse dirigindo-se também a Lúcio: 'Parece-me que também tu és cristão.' E como Lúcio respondeu: "Assim é!", mandou que também a este levassem à execução. Lúcio declarou que estava agrade­cido, pois - acrescentava - afastava-se de uns amos tão malvados e ia para Deus, seu bom Pai e Rei. E a um terceiro que se apresentou foi infligida a mesma pena."

A isto Justino acrescentou, com razão e logicamente, as palavras que já citamos mais acima:

"E eu mesmo espero ser vítima da conspiração de algum dos nomea­dos, etc."

 

XVIII

[Que tratados de Justino chegaram a nós]

  1. 1.            Justino deixou-nos um grande número de obras, extremamente úteis, teste­munho de uma inteligência cultivada e empenhada nas coisas divinas. A elas remetemos os estudiosos, depois de assinalar propriamente as que che­garam a nosso conhecimento[290].
  2. 2.            Dele há primeiramente um tratado dirigido a Antonino, o chamado Pio, e a seus filhos, assim como ao senado romano, em favor de nossas doutrinas; e outro que contém uma segunda Apologia em defesa de nossa fé, que diri­giu ao sucessor e homônimo do citado imperador Antonino Vero[291], cuja época estamos registrando até o presente.
  3. 3.            Há também esta obra, o Discurso aos gregos, na qual, depois de esten­der-se largamente sobre os problemas apresentados a nós e aos filóso­fos gregos, discorre sobre a natureza dos demônios. Mas não é urgente citá-lo aqui.
  4. 4.             Também chegou a nós outra obra sua contra os gregos, que intitulou Refutação; e além destas, outra Sobre a monarquia de Deus, que compôs com elementos recolhidos não somente de nossas Escrituras, mas também dos livros dos gregos.
  5. 5.             Escreveu ainda o intitulado Psaltes e outro, de uso escolar, Sobre a alma, no qual propõe diversas questões sobre o problema que discute, e lista as opiniões dos filósofos gregos, prometendo contradizê-las e expor a sua própria em outro escrito.
  6. 6.             Compôs também um Diálogo contra os judeus, diálogo que sustentou na cidade de Éfeso com Trífon, o mais ilustre dos hebreus de então. Nele explica de que modo a graça divina o levou à doutrina da fé, com que empenho inicialmente se inclinava para as ciências filosóficas e que entusiasmo havia depositado na busca da verdade.
  7. 7.             Na mesma obra diz dos judeus que eles foram os que prepararam uma conspiração contra a doutrina de Cristo e expõe este pensamento dirigindo-se a Trífon:

"Não somente não vos haveis arrependido do mal que fizestes, mas até, tendo escolhido então alguns homens especialmente aptos, os enviastes desde Jerusalém a toda a terra dizendo que havia aparecido um seita atéia de cristãos e enumerando as mesmas calúnias que todos os que nos des­conhecem repetem contra nós, de modo que não somente sois culpados de vossa própria injustiça, mas também, simplesmente, da de todos os demais homens."

  1. 8.            Escreve também que inclusive até seu tempo seguiam brilhando os carismas proféticos na Igreja, e menciona o Apocalipse de João dizendo claramente que é do apóstolo. E cita igualmente alguns ditos de profetas, provando a Trífon que os judeus os eliminaram da Escritura. Conhecem-se ainda outros numerosos trabalhos seus, conservados entre muitos irmãos.
  2. 9.     E assim é que inclusive aos antigos pareceram do maior interesse os tratados de Justino, tanto que Irineu cita suas palavras. Efetivamente, no livro IV Contra as heresias diz textualmente:

"E muito bem disse Justino, em sua obra Contra Márcion, que não poderia crer nem no próprio Senhor se este lhe anunciasse outro Deus diferente do demiurgo."

E no livro V da mesma obra com estas palavras:

"E muito bem disse Justino que, antes da vinda do Senhor, nunca Satanás se atreveu a blasfemar contra Deus; como se ainda não soubesse de sua condenação."

10. Isto era obrigação dizer para animar os estudiosos a um trato aplicado e solícito para com as obras deste autor. Tais eram as notícias que a ele se referem.

 

 

 

XIX

[Quem esteve frente à frente das igrejas de Roma e de Alexandria sob o reinado de Vero]

1. Havia avançado já até seu oitavo ano o reinado mencionado[292] quando Sotero sucedeu Aniceto no episcopado da igreja de Roma, tendo este passado nele onze anos completos. O da igreja de Alexandria, depois de presidida por Celadion durante catorze anos, passou a seu sucessor, Agripino.

 

XX

[Quem esteve à frente da igreja de Antioquia]

1. Na igreja de Antioquia conhecia-se como sexto sucessor dos apóstolos a Teófilo. O quarto havia sido Cornélio, instituído sobre ela depois de Heron[293]. E depois de Cornélio, em quinto lugar Eros havia recebido em sucessão o episcopado.

 

XXI

[Dos escritores eclesiásticos que brilharam naquele tempo]

1. Por estes tempos[294] florescia na igreja Hegesipo, a quem já conhecemos pelo que foi dito anteriormente; também Dionísio, bispo de Corinto, e Pinito, bispo por sua vez dos fiéis de Creta. E além destes, Felipe, Apolinário, Meliton Musano, Modesto e, sobre todos, Irineu. Deles chegou até nós por escrito a ortodoxia da santa fé da tradição apostólica.

 

XXII

[De Hegesipo e dos que ele menciona]

  1. 1.            Assim é, pois, que Hegesipo deixou-nos um monumento completíssimo de seu próprio pensamento nos cinco livros de Memórias que chegaram a nós. Neles mostra como, realizando uma viagem a Roma, esteve em contato com muitos bispos e como de todos eles recebeu uma mesma doutrina. Será bom escutá-lo, depois que disse algumas coisas sobre a Carta de Clemente aos Coríntios, acrescentar o seguinte:
  2. 2.            "E a igreja dos Coríntios permaneceu na reta doutrina até que Primo foi bispo de Corinto. Quando eu navegava para Roma, convivi com os Coríntios e com eles passei muitos dias, durante os quais me reconfortei com sua reta doutrina.
  3. 3.     E chegado a Roma, fiz-me uma sucessão até Aniceto, cujo diácono era Eleutério. A Aniceto sucedeu Sotero, e a este, Eleutério. Em cada sucessão e em cada cidade as coisas estão tal como pregam a lei, os profetas e o Senhor."

4.   O mesmo escritor nos explica o início das heresias de seu tempo nestes termos:

"E depois que Tiago o Justo sofreu o martírio, o mesmo que o Senhor e pela mesma razão, seu primo Simeão, o filho de Clopas, foi constituído bispo. Todos o haviam proposto, por ser o outro primo do Senhor. Por esta causa[295]chamavam virgem à Igreja, pois ainda não havia se corrompido com vãs tradições.

  1. 5.             "Mas foi Tebutis, por não ter sido nomeado bispo, que começou a corrompê-la, partindo das sete seitas que havia no povo, das quais também ele for­mava parte. Delas saíram Simão - daí os simonianos -, Cleobio - donde saíram os cleobinos -, Dositeo - donde os dositanos -, Gorteo - de onde os goratenos - e os masboteus. Destes procederam os menandristas, os marcianistas, os carpocratianos, os valentinianos, os basilidianos e os saturnilianos. Cada um destes introduziu sua própria opinião por caminhos próprios e diferentes.
  2. 6.             Deles saíram pseudocristos, pseudoprofetas e pseudoapóstolos, que despedaçaram a unidade da Igreja com suas doutrinas corruptoras contra Deus e contra seu Cristo."

7.   O mesmo autor descreve ainda inclusive as seitas que houve em outro tempo
entre os judeus, dizendo:

"Existiam diferentes opiniões na circuncisão, entre os filhos dos israelitas, contra a tribo de Judá e contra o Cristo, a saber: essênios, galileus, hemerobatistas, masboteus, Samaritanos, Saduceus e fariseus."

  1. 8.             Escreveu também muitas outras coisas, das quais fizemos menção anterior­mente, em parte, ao dispor as narrativas conforme as circunstâncias. Põe algumas coisas tomadas do Evangelho dos hebreus e do Siríaco, e em par­ticular tomadas da língua hebraica, mostrando assim que se fez crente sendo hebreu. E não apenas isto mas também menciona outras coisas procedentes de uma tradição judia não escrita.
  2. 9.             Mas não somente ele, pois também Irineu e todo o coro dos antigos chamavam os Provérbios de Salomão "Sabedoria toda virtuosa". E ao decidir sobre os livros chamados apócrifos conta que alguns deles foram fabricados em seu tempo por alguns hereges[296].

Mas já é hora de passar a outro.

 

XXIII

[De Dionísio, bispo de Corinto, e das cartas que escreveu]

  1. 1.            Sobre Dionísio, o primeiro que temos a dizer é que foi-lhe confiado o trono do episcopado da igreja de Corinto, e também que suas atividades divinas influenciaram abundantemente não apenas os que estavam sujeitos a ele, mas também os de outros países, sendo utilíssimo a todos com suas cartas católicas que compunha para as igrejas.
  2. 2.            Uma delas, Aos Lacedemonios, é uma catequese de ortodoxia e exorta à paz e à união; outra, Aos Atenienses, é uma chamada à fé e a uma conduta conforme o Evangelho; aos que descuidam desta, repreende-os por estarem a ponto de apostatar da doutrina, precisamente desde que seu presidente, Publio, sofreu martírio nas perseguições de então.
  3. 3.            Menciona que Codrato foi nomeado seu bispo depois do martírio de Publio, e atesta ainda que, graças a seu zelo, voltaram eles a se unir e reavivaram sua fé. Em continuação mostra que Dionísio o Areopagita, depois de convertido à fé por Paulo, segundo o exposto nos Atos, foi o primeiro a quem se confiou o episcopado da igreja de Atenas.
  4. 4.     Existe outra carta sua aos fiéis de Nicomedia, na qual combate a heresia de Márcion e compara-a com a regra da verdade.
  5. 5.            E quando escreve à igreja que peregrina em Gortina, em vez de às outras igrejas de Creta, felicita seu bispo Felipe porque a igreja que tem a seu cargo deu testemunho com suas numerosíssimas virtudes e adverte-os de que se guardem da perversão dos hereges.
  6. 6.            E escrevendo à igreja que peregrina em Amastris, em vez das do Ponto, recorda que Baquílides e Elpisto haviam-no animado a escrever, apresenta algumas interpretações das divinas Escrituras e dá a seu bispo o nome de Palmas. Sobre o matrimônio e a continência dirige-lhes não poucas exorta­ções e ordena-lhes acolher aos que se convertem de qualquer queda, seja devida à negligência, seja a erro herético[297].
    1. 7.      Entre estas cartas acha-se catalogada outra, aos de Knosos, na qual exorta Pinito, bispo daquela igreja, a não impor aos irmãos obrigatoriamente o pesado fardo da continência, mas antes a ter consideração com a fraqueza dos demais[298].
    2. 8.      Respondendo a esta carta, Pinito rende admiração e aprova Dionísio; mesmo assim, exorta-o por sua vez a que reparta um alimento mais sólido e sustente o povo a ele confiado com escritos mais perfeitos, para que ao final, depois de haver passado todo o tempo em palavras semelhantes ao leite, não venham a envelhecer, sem dar-se conta, em uma conduta pueril[299]. Por esta carta fica manifesta, como numa imagem acabada, a ortodoxia de Pinito quanto à fé, sua preocupação pelo proveito dos ouvintes, sua eloqüência e sua compreensão das coisas de Deus.
    3. 9.             Existe ainda outra carta de Dionísio, Aos Romanos, dirigida ao bispo de então, Sotero. Nada melhor do que citar dela as frases em que o autor aprova o costume romano, observado até a perseguição de nossos dias, quando escreve:
    4. 10.  "Porque desde o princípio tendes este costume, o de fazer o bem de muitas maneiras a todos os irmãos e enviar provisões por cada cidade a muitas igrejas; remediais assim a pobreza dos necessitados e, com as provisões que desde o princípio estais enviando, atendeis aos irmãos que se encontram nas minas, conservando assim, como romanos que sois, um costume roma­no transmitido de pais a filhos, costume que vosso bem-aventurado bispo Sotero não somente manteve, mas até melhorou, ministrando por um lado socorros abundantes para enviar aos santos, e por outro, como pai que ama ternamente os seus, consolando com afortunadas palavras os irmãos que chegam a ele."
    5. 11.      Na mesma carta menciona também a de Clemente Aos Coríntios, mostrando que se vinha fazendo a leitura da mesma na igreja desde tempos atrás por antigo costume; diz assim:

"Hoje pois, celebramos o dia santo do Senhor e lemos vossa carta. Conti­nuaremos lendo-a de vez em quando para admoestação nossa, tanto quanto a primeira que nos foi escrita por meio de Clemente."

12. E o mesmo, falando ainda de suas próprias cartas, que haviam sido falsi­ficadas, diz o seguinte:

"Eu escrevi efetivamente algumas cartas depois que alguns irmãos pediram que as escrevesse. Mas estes apóstolos do diabo encheram-nas de joio[300], suprimindo umas coisas e acrescentando outras. Sobre eles pesa o 'Ai de vós!'[301]. Na verdade não se deve estranhar que alguns também tenham se lançado sobre as Escrituras do Senhor, para falsificá-las, quando conspiraram até contra as que não são tão importantes."

13. E além destas, há ainda outra carta de Dionísio que escreve A Crisófora[302], irmã cheia de fé. A esta escreve o que lhe corresponde e fornece o alimento espiritual adequado.

Isto é o que tange a Dionísio.

 

XXIV

[De Teófilo, bispo de Antioquia]

1. De Teófilo, que já mencionamos como bispo da igreja de Antioquia, possuímos os três livros elementares dirigidos A Autólico, e outro que tem por título Contra a heresia de Hermógenes, no qual utiliza testemunhos tirados do Apocalipse de João. Dele possuímos também alguns outros livros de catequese.

Nesta época os hereges seguiam com o mesmo empenho corrompendo, como o joio, a limpa semente do ensinamento apostólico, e os pastores das igrejas de todo lugar os afugentavam do meio das ovelhas de Cristo como a bestas selvagens e rechaçavam-nos, ora por meio de advertências e exortações dirigidas aos irmãos, ora pondo-os em evidência com perguntas e refutações orais, cara a cara, e também corrigindo suas opiniões com argumentos bem precisos por meio de tratados escritos. Teófilo, assim como outros, lutou contra eles, segundo declara certo tratado seu nada vulgar Contra Márcion, tratado que, junto com outros de que falamos, conserva-se até hoje[303]. Teófilo foi sucedido por Maximino, sétimo da igreja de Antioquia a partir dos apóstolos.

 

XXV

[De Felipe e de Modesto]

1. Felipe, que pelas palavras de Dionísio conhecemos como bispo da igreja de Gortina, compôs também um importantíssimo tratado Contra Márcion. E o mesmo fizeram Irineu e Modesto[304]; este, inclusive melhor do que os outros, colocou à vista de todos o erro deste homem, assim como o de muitos, cujas obras se conservam ainda entre numerosos irmãos até hoje.

 

XXVI

[De Meliton e dos que ele menciona]

  1. 1.            Neste tempo floresciam também, muito destacados, Meliton, bispo da igreja de Sardes, e Apolinário, da de Hierápolis. Ambos, cada um em particular, dirigiram ao imperador romano já mencionado daquele tempo vários tratados apologéticos em favor da fé.
  2. 2.     Deles chegaram até nós as seguintes obras. De Meliton, os dois livros Sobre a Páscoa e o livro Sobre a conduta e sobre os profetas; os tratados Sobre a Igreja e Sobre o domingo; ainda, Sobre a fé do homem[305], Sobre a criação e Sobre a obediência dos sentidos à fé; além destes, os tratados Sobre a alma e o corpo...(.. .)[306], Sobre o batismo e sobre a verdade e sobre a fé e o nascimento de Cristo; um livro Sobre sua profecia; e Sobre a alma e o corpo[307], Sobre a hospitalidade, A chave e os escritos Sobre o diabo e o Apocalipse de João e o livro Sobre Deus encarnado; e além de todos estes, um livrinho A Antonino.

3.   Começando pois, o livro Sobre a Páscoa, indica o tempo em que o compôs, nestes termos:

"Sob o procônsul da Ásia Servilio Paulo, tempo em que Sagaris sofreu martírio, houve em Laodicéia muitas disputas sobre a Páscoa, que caía precisamente naqueles dias, e escreveu-se isto."

  1. 4.      Este tratado é mencionado por Clemente de Alexandria em seu Sobre a Páscoa, que ele mesmo diz ter composto por causa do escrito de Meliton. E no livrinho dirigido ao imperador conta Meliton que, sob este, deram-se contra nós coisas como estas:
  2. 5.      "Pois isto nunca havia ocorrido; agora persegue-se a linhagem dos adoradores de Deus[308], afetados na Ásia por novos editos[309]. Efetivamente, os desavergonhados sicofantas e amantes do alheio, tomando pé nas prescrições, andam roubando abertamente, e expoliam de noite e de dia os que nada fizeram de mal."
  3. 6.      E depois de outras coisas diz:

"E se isto é feito porque tu o mandas, está bem-feito, porque nunca um imperador justo poderia querer algo injustamente, e nós suportamos com gosto a honra desta morte. Um só pedido, no entanto, te dirigimos: que tu mesmo examines primeiro os causadores de tal rivalidade e julgues com justiça se são dignos de morte e de castigo, ou de ficar salvos e tranqüilos. Mas se não procedem de ti esta determinação e este novo edito - que nem sequer contra inimigos bárbaros seria conveniente -, com maior razão te pedimos que não nos abandones, indiferente a semelhante latrocínio público."

7.   Ao dito acrescenta ainda isto:

"Efetivamente, nossa filosofia alcançou sua plena maturidade entre bárba­ros, mas havendo-se estendido também a teus povos sob o grande império de teu antepassado Augusto, converteu-se sobretudo para teu reinado em um bom augúrio, pois desde então a força dos romanos cresceu em grandeza e esplendor. Dela és tu o desejado herdeiro e seguirás sendo-o com teu filho, se proteges a filosofia que se criou com o império e começou quando Augusto e teus antepassados inclusive a honraram ao par com as outras religiões.

  1. 8.             A prova maior de que nossa doutrina floresceu para bem junto com o Império felizmente iniciado é que, desde o reinado de Augusto nada de mau aconteceu, antes pelo contrário, tudo foi brilhante e glorioso, segundo as preces de todos.
  2. 9.             Entre todos, somente Nero e Domiciano, persuadidos por alguns homens malévolos, quiseram caluniar nossa doutrina, e acontece que deles derivou, por costume irracional, a mentira caluniosa contra tais pessoas.
  3. 10.  Mas teus pios pais corrigiram a ignorância daqueles repreendendo por escrito muitas vezes todos que se atreveram a criar novidades sobre os cristãos. Entre eles destaca-se teu avô Adriano, que escreveu a muitas e diferentes pessoas, inclusive ao procônsul Fundano, governador da Ásia. E também teu pai escreveu às cidades sobre não inventar nada acerca de nós, inclusive nos tempos em que tudo administravas junto com ele. Entre esses escritos acham-se os dirigidos aos habitantes de Larisa, aos tessalonicenses, aos atenienses e a todos os gregos.
  4. 11.      E quanto a ti, que sobretudo nestes assuntos tens o mesmo parecer e até muito mais humano e filosófico, estamos persuadidos de que porás em efeito o que te pedimos."
  5. 12.      Isto é o que se diz no tratado mencionado. E nos Extratos por ele escritos, o mesmo Meliton, ao começar, faz no prólogo um catálogo dos escritos admitidos do Antigo Testamento, catálogo que é necessário enumerar aqui. Escreve assim:
    1. 13.     "Meliton a seu irmão Onésimo: Saúde. Visto que muitas vezes, valendo-te de teu zelo pela doutrina, tens pedido para ti extratos da lei e dos profetas, sobre o Salvador e toda a nossa fé; mais ainda, já que quiseste saber dos livros antigos com toda exatidão quantos são em número e qual é sua ordem, pus minha diligência em fazê-lo, sabendo de teu ardor pela fé e teu afã de saber sobre a doutrina, já que em tua luta pela salvação eterna e em tua ânsia por Deus, preferes isto mais do que tudo.

14. Assim pois, tendo subido ao Oriente e chegado até o lugar em que se proclamou e se realizou, informei-me com exatidão dos livros do Antigo Testamento. Ordenei-os e envio-os a ti. Seus nomes são: cinco de Moisés: Gênesis, Êxodo, Números, Levítico, Deuteronômio; Jesus de Navé, Juízes, Rute; quatro dos Reis, dois dos Paralipômenos; Salmos de Davi; Provérbios de Salomão, ou também Sabedoria, Eclesiastes, Cantar dos Cantares, Jó; dos profetas, Isaías, Jeremias, os doze em um só livro, Daniel, Ezequiel; Esdras. Destes livros tirei os Extratos, que dividi em seis livros." E é isto que há de Meliton.

 

XXVII

[De Apolinário]

1. Sobre Apolinário, por outro lado, ainda que sejam muitas as obras que se conservaram entre muitas pessoas[310], até nós chegaram as seguintes: O Discurso dirigido ao mencionado imperador, cinco livros Contra os gregos, dois Sobre a verdade, dois Contra os judeus, e também os que, depois destes, escreveu Contra a heresia dos frígios, que não muito depois iniciaria suas inovações, mas que já então começava a despontar, pois Montano, junto com suas falsas profetisas, já andava assentando os princípios do descaminho.

 

XVIII

[De Musano]

1. E também de Musano, citado em passagens precedentes, conserva-se certo tratado, muito persuasivo, que ele escreveu para alguns irmãos seus que se inclinavam à heresia dos chamados encratitas, que então acabava de nascer e começava a introduzir na vida seu estranho e pernicioso erro.

 

XXIX

[Da heresia de Taciano]

  1. 1.      Uma tradição sustenta que o autor do descaminho foi Taciano, cujas pala­vras sobre o admirável Justino citamos há pouco, ao fazer constar que foi discípulo do mártir. E isto é demonstrado por Irineu no primeiro livro de sua obra Contra as heresias, onde escreve sobre ele e sua heresia como segue:
  2. 2.      "Os chamados encratitas, que procediam de Saturnino e de Márcion, proclamavam a abstenção do matrimônio, rechaçando assim a primitiva criação de Deus e condenado indiretamente aquele que fez o varão e a fêmea[311] para procriar homens. E em sua ingratidão para com o Deus que tudo criou, introduziram também a abstenção do que eles chamam "animado" e negam a salvação do primeiro homem.
  3. 3.      Isto mesmo encontramos também agora entre eles, sendo um tal Taciano o primeiro a ter introduzido esta blasfêmia. Foi discípulo de Justino; enquanto conviveu com ele, nada manifestou de tal espécie, mas depois do martírio de Justino, afastou-se da Igreja. Envaidecido pela crença de ser um mestre e inflado por sentir-se diferente dos demais, constituiu um tipo próprio de escola, inventou alguns éons invisíveis - como faziam os seguidores de Valentim -, proclamou o matrimônio como corrupção e fornicação - como fizeram Márcion e Saturnino — e de sua própria invenção negou a salvação de Adão."
  4. 4.             Isto é o que Irineu escreveu na ocasião. Mas um pouco mais tarde, um homem chamado Severo deu força à mencionada heresia e foi causa de que os membros da seita recebessem por ele o nome de severianos.
  5. 5.             Estes utilizam, é verdade, a lei, os profetas e os Evangelhos, interpretando de maneira peculiar o pensamento das Sagradas Escrituras; mas, blasfemando sobre o apóstolo Paulo, rechaçam suas Cartas e nem sequer aceitam os Atos dos Apóstolos.
  6. 6.             Mesmo assim, Taciano, seu primeiro líder, compôs certa combinação e agrupamento - não sei como - dos Evangelhos, ao que deu o nome de Diatessáron e que ainda hoje se conserva entre alguns. E diz-se que teve a ousadia de mudar algumas expressões do apóstolo, alegando completar a correção de seu estilo.
  7. 7.      Deixou grande número de escritos, entre os quais muitos citam como o mais famoso o discurso Contra os gregos, no qual menciona os tempos primitivos e manifesta que Moisés e os profetas hebreus são mais antigos que todos os homens famosos dentre os gregos. De fato, parece ser este o mais belo e mais útil de seus escritos.

E isto é o que havia sobre estes.

 

XXX

[De Bardesanes o Sírio e das obras que se diz serem suas]

  1. 1.            Sob o mesmo reinado, multiplicaram-se as heresias na Mesopotâmia, e Bardesanes, homem muito capaz e habilíssimo dialético na língua Siríaca, compôs diálogos contra os marcionitas e contra outros líderes de diferentes crenças e os transmitiu em sua própria língua e escrita junto com muitos outros escritos seus. Seus discípulos - e tinha muitos, subjugados por seu poderoso verbo - traduziram-nos do siríaco para o grego.
  2. 2.            Entre eles encontra-se também aquele seu vigorosíssimo Diálogo sobre o destino, dirigido a Antonino, e tudo o mais que, segundo dizem, escreveu devido à perseguição de então.
  3. 3.            Inicialmente foi membro da escola de Valentim, mas depois de condená-la e de refutar a maior parte de suas fábulas, pareceu-lhe estar de alguma forma convertido a uma crença mais ortodoxa, ainda que de fato não tenha chegado a limpar-se completamente da antiga heresia.

Também neste tempo morreu Sotero, o bispo da igreja de Roma.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Livro V

 

[Prólogo]

  1. 1.            Assim pois, Sotero, o bispo da igreja de Roma, morreu depois de governar até seu oitavo ano, e foi sucedido por Eleutério, décimo segundo a partir dos apóstolos. Corria o décimo sétimo ano do imperador Antonino Vero. Neste tempo reavivou-se com maior violência em algumas partes da terra a perseguição contra nós e, pelos ataques dos habitantes das cidades, pode-se conjeturar que foram milhares os mártires que se distinguiram se levamos em conta o ocorrido em uma só nação, que por ser realmente digno de lembrança imorredoura, foi transmitido por escrito à posteridade.
  2. 2.            O escrito inteiro do completíssimo relato sobre estes fatos consta de nossa Recompilação de Martírios, que compreende uma explicação não apenas narrativa, mas também instrutiva. Na presente obra tomarei e citarei ao menos o que aquela contenha sobre o tema que nos ocupa.
  3. 3.            Outros, ao fazerem as narrativas históricas, não transmitem por escrito mais do que vitórias em guerras, troféus de inimigos, façanhas de generais e valentias de soldados manchados de sangue e de mortes inumeráveis por causa dos filhos, da pátria e demais bens.
  4. 4.     Nossa obra, por outro lado, que descreve o modo de vida segundo Deus, gravará em lápides eternas as mais pacíficas lutas pela própria paz da alma e o nome dos que nelas se comportaram varonilmente, mais pela verdade do que pela terra pátria, e mais pela religião do que pelos seres queridos, e se proclamará publicamente, para eterna memória, a resistência dos atletas da fé, sua bravura, curtida em mil sofrimentos, os troféus conquistados contra os demônios, as vitórias sobre os adversários invisíveis e, depois de tudo, suas coroas.

 

I

[Quantos foram e de que modo lutaram nos tempos de Vero pela religião na Gália]

  1. 1.            Foi pois a Gália o país em que se preparou o estádio, lugar dos fatos mencionados. Duas metrópoles eram célebres por sua distinção e por sua importância entre as outras: Lion e Viena. Ambas são atravessadas pelo Ródano, que flui ao longo de todo o país com grande caudal.
  2. 2.            As ilustríssimas igrejas daquela região transmitiram às igrejas da Ásia e Frígia[312] a carta sobre os mártires, e narram o ocorrido da seguinte maneira. Citarei suas próprias palavras.
  3. 3.             "Os servos de Cristo que peregrinam em Viena e em Lion da Gália, aos irmãos que na Ásia e na Frígia compartilham conosco a mesma fé e a mesma esperança da redenção: paz, graça e glória por parte de Deus Pai e de Jesus Cristo, nosso Senhor."
  4. 4.             Depois, em continuação, seguem dizendo outras coisas como prólogo e dão início a seu relato nos seguintes termos:

"Descrever pois, com justiça a magnitude desta tribulação daqui, o grau de irritação dos pagãos contra os santos e o número de sofrimentos que os bem-aventurados mártires suportaram, nem está em nossa capacidade nem sequer é possível encerrar em um escrito.

  1. 5.             E ocorreu que o adversário[313] atacou com todas as suas forças, como prelúdio já do descaramento de sua vinda iminente. Meteu-se por todos os lados, acostumando os seus e exercitando-os de antemão contra os servos de Deus, de forma que não só nos expulsam das casas, dos banhos e das praças, mas que inclusive proíbem que algum de nós deixe-se ver de qualquer forma em qualquer lugar que seja.
  2. 6.      Mas a graça de Deus opunha-se a sua estratégia: retinha os fracos e apresen­tava à frente uma formação de sólidas colunas, capazes de atrair sobre si, com sua paciência, todo o ímpeto do malvado. Estes marcharam a seu encontro, suportando toda sorte de injúrias e castigos[314]. Considerando pouco o que era muito, apressavam seu passo para Cristo e mostravam realmente que os sofrimentos do tempo presente não são comparáveis com a glória que está para ser revelada em nós[315].
  3. 7.      Em primeiro lugar suportaram generosamente os assaltos massivos de toda a plebe: insultos, golpes, sacudidas, rapinas, apedrejamentos, passagem por apertos e tudo quanto fosse do gosto de uma plebe enfurecida contra pessoas que considera odiosas e inimigas.
    1. 8.             E depois de serem conduzidos a praça pública e de serem julgados pelo tribuno e pelos magistrados da cidade em presença de toda a multidão, foram encerrados no cárcere até a chegada do governador.
    2. 9.      Mais tarde conduziram-nos ante o governador. Como estes usou de toda sua crueldade contra nós, um dos irmãos, Vetio Epágato, que possuía em plenitude o amor a Deus e ao próximo e cuja conduta tinha sido tão estrita que, sendo ainda jovem, fez-se merecedor do testemunho do ancião Zacarias, já que havia caminhado irrepreensivelmente em todos os mandamentos e preceitos do Senhor, diligente em todo serviço ao próximo, com muito zelo com Deus e fervor de espírito, por ser de tal índole, não suportou que se procedesse contra nós com um juízo tão irracional. Fortemente indignado, pediu para ser também ele ouvido e defendeu, em favor dos irmãos, que entre nós nada há de ateu nem de ímpio.
    3. 10.     Os que rodeavam o tribunal passaram a gritar contra ele - pois era homem importante -, e o juiz, não tolerando a petição assim proposta por ele, queria unicamente saber se também era cristão. Como Vetio o confessasse com voz claríssima, também ele foi recebido nas fileiras dos mártires. Foi chama­do consolador[316] dos cristãos, pois dentro de si tinha o consolador, o Espírito de Zacarias, o que havia mostrado com a plenitude de seu amor achar bom sair em defesa dos irmãos e expor sua própria vida, porque era e conti­nua sendo genuíno discípulo de Cristo, que vai atrás do Cordeiro onde quer que este vá.
    4. 11.     A partir daqui, os demais se dividem: aparecem claramente os preparados para dar testemunho, os que com todo ser ardor completavam a confissão do martírio; mas também se manifestaram os que não estavam dispostos, destreinados e até fracos, incapazes de agüentar a tensão de um grande combate. Destes uns dez abortaram. Grande foi a aflição e imensa a dor que nos causaram e grave o dano causado ao entusiasmo dos outros que não haviam sido presos com eles e que, apesar de estar sofrendo toda classe de horrores, contudo, assistiam os mártires e não os abandonaram.
    5. 12.     Mas então todos ficamos muito aterrados ante a incerteza da confissão, não por temor aos castigos, mas porque víamos como distante o fim e temíamos que alguém sucumbisse.
    6. 13.     Mesmo assim, a cada dia detinham os que eram dignos de completar o número daqueles, tanto que juntaram todas as pessoas importantes das duas igrejas, graças às quais, sobretudo, tem importância os assuntos daqui.
    7. 14.     Foram presos também alguns pagãos, criados dos nossos, quando o governa­dor mandou que se buscassem todos os nossos. Estes, pelas insídias de Sata­nás, temendo os tormentos que viam padecer os santos e forçados a isto pelos soldados, acusaram-nos falsamente de ceias canibais, de promiscuida­des edípicas e de tantas outras coisas que para nós não é lícito nem dizer nem pensar, nem mesmo crer que tais coisas tenham ocorrido entre os homens.

15. Quando este rumor se espalhou, todos se revoltaram como feras contra nós, tanto que, se a princípio alguns se comportaram com moderação por amizade, começaram então a mostrar-se muito hostis e raivosos contra nós. Estava se cumprindo o que dissera nosso Senhor: Virá um tempo em que todo aquele que vos matar pensará estar prestando culto a Deus[317].

  1. 16.     Desde então os santos mártires suportaram castigos que excedem a toda descrição, enquanto Satanás se esforçava para arrancar-lhes também alguma palavra blasfema.

17. Toda a fúria da multidão, do governador e dos soldados abateu-se transbordante sobre o diácono Santos, de Viena, sobre Maturo, recém-batizado mas nobre lutador, sobre Atalo, oriundo de Pérgamo e que sempre havia sido coluna e fundamento dos cristãos daqui, e sobre Blandina, por meio da qual Cristo demonstrou que o que entre os homens parece vulgar, disforme e facilmente desprezável, por parte de Deus é considerado digno de grande glória devido ao amor a Ele, amor que se mostra na força e que não se van­gloria da aparência.

  1. 18.     Efetivamente, enquanto todos nós estávamos temerosos e sua própria senhora segundo a carne - também ela uma de nossos mártires combatentes -temíamos que por fraqueza de seu corpo não tivesse forças para proclamar livremente sua confissão, Blandina viu-se cheia de uma força tão grande que extenuava e esgotava aqueles que, em turnos e de todas as maneiras, torturavam-na desde o amanhecer até o ocaso; eles mesmos confessavam que estavam vencidos, sem nada poder fazer com ela, e se admiravam de como podia manter-se com alento estando todo seu corpo dilacerado e aberto, e atestavam que um só tipo de suplício bastaria para tirar a vida, sem neces­sidade de tantos e tão terríveis.

19. Mas a bem-aventurada mulher, como nobre atleta, rejuvenescia na confissão, e para ela era recuperação de forças, descanso e ausência de dor em meio aos acontecimentos o dizer: "Sou cristã, e nada de mal é feito entre nós!"

20. Também Santos suportou nobremente, além de toda medida humana, todos os maus-tratos que provêm dos homens. Os iníquos esperavam que pela persistência e magnitude dos tormentos ouviriam dele algo indevido, mas resistiu-lhes com tal firmeza, que não revelou nem seu próprio nome, nem de sua família, nem da cidade de onde vinha nem se era escravo ou se era livre, mas a tudo que lhe perguntavam respondia em latim: "Sou cristão!" Em lugar de seu nome, de sua cidade, de sua família e de tudo, isto é o que confessava sucessivamente, e nenhuma outra palavra ouviram dele os pagãos.

  1. 21.  Por esta razão, tanto o governador quanto os torturadores ensandeceram-se de tal maneira contra ele que, quando já não sabiam o que fazer-lhe, por último aplicaram-lhe placas de cobre em brasa aos membros mais delicados de seu corpo.
  2. 22.  Estes certamente se queimaram, mas ele se manteve inflexível e firme, constante na confissão, borrifado e fortalecido pela fonte santa da água viva que brota das entranhas de Cristo[318].
  3. 23.  Seu corpo atestava o ocorrido: todo ele era uma chaga, todo confusão, moído e tendo perdido toda forma humana; mas Cristo padecia nele e realizava grandes glórias anulando o adversário e mostrando, para exemplo dos demais, que nada há de temível onde está o amor do Pai, nem doloroso onde está a glória de Cristo.
  4. 24.  Efetivamente, depois de alguns dias, aqueles malvados começaram nova­mente a torturar o mártir, pensando que poderiam vencê-lo se, estando suas carnes inchadas e inflamadas, lhe aplicassem os mesmos suplícios agora que nem sequer suportava o toque das mãos, ou então que, morrendo em meio aos tormentos, infundiria temor aos outros. Mas não somente nada disso aconteceu com ele, mas, contra o que todos pensavam, recuperou-se, e seu corpo se endireitou entre os tormentos que seguiram e recobrou sua forma original e o uso dos membros, de maneira que a segunda tortura foi para ele não um suplício, mas cura pela graça de Cristo.
  5. 25.  E Biblida também, uma das que haviam renegado. O diabo já pensava que a havia devorado[319], mas querendo também condená-la por blasfêmia, con­duziu-a à tortura e a forçava a declarar sobre nós aquelas ímpias calúnias, já seguro de sua fragilidade e covardia.
  6. 26.  Mas ela, no tormenta, voltou a si e, por assim dizer, despertou de um sono profundo. Recordando então, graças àqueles castigos temporários, o castigo eterno no inferno[320], pôs-se pelo contrário, a replicar aos detratores e dizia: "Como poderiam estas pessoas comer uma criança se nem sequer lhes é permitido comer sangue de animais irracionais?"[321] E desde esse instante passou a confessar que também ela mesma era cristã, e foi incorporada à fila dos mártires.
  7. 27.  Anulados por Cristo os tormentos dos tiranos por meio da constância dos santos, o diabo pôs-se a imaginar outros recursos, o encerramento no pior e mais escuro lugar do cárcere, a distensão dos pés no cepo, separados até o quinto furo, e os demais suplícios que os funcionários irritados e endiabrados costumavam infligir aos presos, tanto que no cárcere a maior parte morreu asfixiada, ao menos quando o Senhor quis que assim morressem, mostrando sua própria glória.

28. Efetivamente, alguns que haviam sido cruelmente torturados até o ponto de parecer que não poderiam viver ainda que se lhes desse todo tipo de cuidados, permaneciam no cárcere, desprovidos, naturalmente, de toda assistência humana; mas fortalecidos pelo Senhor em seus corpos e em suas almas, animavam e consolavam os demais. Outros, em compensação, jovens e recém-detidos, cujos corpos não haviam sido torturados antes, não suportavam o peso do encerramento e morriam lá dentro.

  1. 29.  O bem-aventurado Potino, a quem fora confiado o ministério do episcopado de Lion, passava já da idade de noventa anos e seu corpo estava fraco. Por causa desta sua debilidade corporal apenas conseguia respirar, mas por seu grande desejo do martírio[322], o ardor de seu espírito devolvia-lhe as forças. Também ele foi arrastado ao tribunal com o corpo desfazendo-se pela velhice e pela enfermidade, mas com sua alma conservada para que por ela Cristo triunfasse.
  2. 30.  Levado pelos soldados ante o tribunal com acompanhamento das autoridades da cidade e de toda a plebe gritando-lhe toda classe de injúrias, como se ele mesmo fosse o Cristo, deu formoso testemunho.
  3. 31.  Quando o governador perguntou-lhe quem era o Deus dos cristãos, disse: "Se fores digno, o conhecerás." Então arrastaram-no sem cuidados e sofreu diversas feridas; os que estavam perto faziam-lhe todo tipo de afronta com pés e mãos, sem o menor respeito por sua idade, e os que estavam distantes atiravam cada um o que tivesse à mão, e todos criam errar gravemente e ser uns ímpios se omitissem alguma insolência contra ele, pois pensavam que assim vingavam seus deuses. Ele, apenas respirando, foi jogado no cárcere, e ao fim de alguns dias entregou sua alma.
  4. 32.  Foi então que teve lugar uma grande dispensação de Deus e se manifestou a imensa misericórdia de Jesus, como raramente havia ocorrido na comuni­dade dos irmãos, mas muito de acordo com o modo de Cristo.
  5. 33.  Efetivamente, os que haviam renegado nas primeiras detenções foram também encarcerados e compartilhavam dos mesmos horrores, já que nesta ocasião de nada lhes serviu sua apostasia. Os que confessavam o que na verdade eram, eram encerrados como cristãos, sem nenhuma outra acusação; em compensação, os outros eram presos como homicidas e impuros e castigavam-nos em dobro do que aos demais[323].
    1. 34.  E assim os primeiros eram aliviados pela alegria do martírio, pela esperança do prometido, pelo amor de Cristo e o Espírito do Pai, enquanto que para estes outros, a consciência os atormentava grandemente, ao ponto de que, ao morrerem, podia-se reconhecer seu aspecto entre todos.
    2. 35.  De fato, enquanto uns avançavam prazerosamente, com um misto de glória e graça abundantes em seus rostos, de modo que até suas correntes os cingiam como esplêndido adorno, como uma noiva ataviada com multicoloridos fios de ouro, e ao mesmo tempo espalhavam o suave odor de Cristo a ponto de fazer os outros pensarem que tinham-se ungido com perfumes mundanos, os outros, pelo contrário, faziam-no sombrios, cabisbaixos, disformes e cheios de rancor, e como se fosse pouco, até os pagãos tachavam-nos de ignóbeis e covardes: levavam a acusação de homicidas além de terem perdido seu nome venerabilíssimo, glorioso e vivificador. Quando os demais viram isto, reafirmaram-se, e os que iam sendo detidos confessavam já sem vacilação e sem ter um único pensamento de cálculo diabólico."
    3. 36.  Depois de juntar a isto algumas coisas intermediárias continuam: "Além disto, os gêneros de morte dos mártires eram muito variados, pois com flores de toda espécie trançavam uma só coroa para oferecê-la ao Pai, e assim era necessário que aqueles generosos atletas, depois de ter sustentado uma luta variada e ter vencido em toda a linha, recebessem a grande coroa da imortalidade[324].
    4. 37.  Assim pois, Maturo e Santos, assim como Blandina e Atalo, foram condu­zidos às feras, ao local público e para espetáculo comum da inumanidade dos pagãos, pois o dia de luta de feras deu-se precisamente por causa dos nossos.
    5. 38.  No anfiteatro, Maturo e Santos passaram novamente por todo tipo de tormentos como se antes não tivessem padecido absolutamente nada, ou melhor, como atletas que já venceram os adversários em muitos combates e que seguem lutando pela mesma coroa. De novo sofreram as passadas dos chicotes que ali eram de costume, os puxões das feras e tudo o que o povo enlouquecido, cada qual de seu lugar, gritava e ordenava. E como arremate de tudo, a cadeira de ferro, de onde os corpos, ao serem assados, lançavam ao público um odor de carne queimada.
    6. 39.  Mas estes, nem com tudo isto recuavam, mas até aumentava-se-lhes o frenesi querendo vencer a constância daqueles. Mas nem assim conseguiram ouvir de Santos outra coisa além da frase de confissão que desde o começo costumava repetir.
    7. 40.  Assim pois, os mártires, que depois de atravessar o grande combate seguiam com muita vida foram por fim sacrificados[325], convertidos naquele dia em espetáculo para o mundo em substituição à variada série de combates de gladiadores.
    8. 41.  Blandina, por outro lado, foi pendurada num madeiro e ficou exposta às feras, que se lançavam sobre ela. Apenas por vê-la pendendo em forma de cruz e com sua oração contínua, infundia-se muito ânimo aos outros combatentes, que neste combate viam com seus olhos corpóreos, através de sua irmã, aquele que por eles próprios havia sido crucificado. E assim ela persuadia aos que crêem n'Ele de que todo aquele que padece pela glória de Cristo entra em comunhão perpétua com o Deus vivo.
    9. 42.  Por não ter sido tocada então por nenhuma fera, desceram-na do madeiro e de novo levaram-na ao cárcere, guardando-a para outro combate; assim, depois de vencer em mais lutas, por um lado tornaria implacável a conde­nação da serpente tortuosa[326], e por outro animaria seus irmãos; ela. Pequena, frágil e desprezada, mas revestida do grande e invencível atleta, Cristo, bateria o adversário em sucessivos combates, e pelo combate seria cingida com a coroa da incorruptibilidade.
    10. 43.  Atalo, por sua vez, também foi reclamado com grande empenho pela plebe (pois tinha grande renome). Entrou já como lutador treinado, graças a sua boa consciência, pois havia-se exercitado sinceramente na disciplina cristã e sempre havia sido entre nós uma testemunha da verdade.
    11. 44.  Conduziram-no dando a volta ao anfiteatro, precedido de um cartaz no qual estava escrito em latim "Este é Atalo, o cristão"[327], enquanto o público se inflamava terrivelmente contra ele. Ao saber o governador que ele era romano, mandou que o levassem com os demais que estavam no cárcere, acerca dos quais escreveu uma carta ao imperador e ficou esperando sua resposta.
    12. 45.  O tempo que passou não foi ocioso nem estéril para eles, mas por sua paciência manifestou-se a imensa misericórdia de Cristo: por viverem eles, reviviam os mortos, e por serem mártires, outorgavam a graça aos que não o eram; assim, grande foi a alegria da Virgem Mãe ao recuperar vivos os que havia abortado mortos[328].
      1. 46.  Efetivamente, por meio deles, a maioria dos que haviam renegado voltavam sobre seus passos e de novo eram concebidos, reanimavam-se e aprendiam a confessar, e já com vida e fortalecidos, aproximavam-se do tribunal para serem novamente interrogados pelo governador, enquanto Deus, que não quer a morte do pecador[329], preferindo o arrependimento, suavizava-lhes o caminho.
      2. 47.  De fato, o imperador dispunha em seu edito que uns fossem degolados e os outros, contanto que renegassem, absolvidos[330]. Ao iniciar-se a grande festa local (comparece a ela grande multidão de pessoas de todas as raças), o governador fez levar novamente ao tribunal os bem-aventurados, como forma de teatro e de espetáculo para as multidões. Por isso interrogou-os novamente, e aos que pareciam ter título de cidadãos romanos, fazia decapitar[331], enquanto os demais eram mandados às feras.

48. Mas Cristo foi grandemente glorificado naqueles que primeiramente haviam renegado e que agora, contra o que poderiam esperar os pagãos, confessavam sua fé. Estes, na verdade, eram interrogados privadamente, como para serem em seguida postos em liberdade, mas ao confessar sua fé foram sendo juntados à fila dos mártires. Ficaram fora, porém, os que nunca tiveram nem um vestígio de fé, nem o sentido da vestimenta nupcial[332] nem idéia do temor a Deus, mas que com sua maneira de viver infamavam o caminho[333], ou seja, os filhos da perdição.

49. Por outro lado, todos os demais foram incorporados à Igreja. Quando estavam sendo interrogados, um tal Alexandre, frígio de nascimento e médico por profissão, que tinha vivido muitos anos nas Gálias e era conhecido de quase todos por seu amor a Deus e pela franqueza de seu falar (pois também participava do carisma apostólico), achava-se de pé junto ao tribunal e com gestos animava-os à confissão, parecendo aos que rodeavam a tribuna como se tivesse dores de parto.

50. A plebe, enfurecendo-se porque novamente confessavam aqueles que primeiro tinham renegado, pôs-se a gritar contra Alexandre, considerando-o causador de tudo, e o governador, notando-o, perguntou-lhe quem era, e como respondesse: "Um cristão", encolerizou-se e condenou-o às feras. No dia seguinte entrou na arena junto com Atalo, já que o governador, para agradar a plebe, entregou novamente Atalo às feras.

  1. 51.  Os que passaram por todos os instrumentos inventados para torturar no anfiteatro e sustentaram um grande combate, também eles foram ao final sacrificados. Alexandre nem soluçou nem murmurou um mínimo sequer, mas em seu coração conversava com Deus.
  2. 52.  Atalo, por outro lado, quando foi posto sobre a cadeira de ferro e começou a queimar-se e de seu corpo desprendia-se o cheiro de carne queimada, disse dirigindo-se em latim à multidão: "Estais vendo! Isto é comer homens, o que estais fazendo. Nós, por outro lado, nem comemos homens nem fazemos nada de mau." E como lhe perguntassem que nome tem Deus, respondeu: "Deus não tem nome como um homem."
  3. 53.  Depois de tudo isto, no último dia de lutas de gladiadores, levaram nova­mente Blandina junto com Pôntico, rapaz de uns quinze anos. Cada dia tinham sido apresentados para que vissem as torturas dos outros. Começa­ram obrigando-os a jurar pelos ídolos dos pagãos; mas como eles perma­neciam firmes e até os menosprezaram, a multidão ficou enfurecida contra eles ao ponto de não ter pena da idade do rapaz nem respeito pelo sexo feminino.

54. Entregaram-nos a todos os horrores e fizeram-nos percorrer todo o ciclo de torturas, uma após a outra, tentando forçá-los a jurar, sem que o conseguis­sem. Efetivamente, Pôntico, animado por sua irmã tanto que até os pagãos podiam ver que era ela que o exortava e confortava, depois de sofrer genero­samente todo tipo de tormentos, entregou o espírito.

55. E a bem-aventurada Blandina, a última de todos, como nobre mãe que infun­diu ânimo a seus filhos e os enviou adiante vitoriosos para seu rei, depois de percorrer também ela todos os combates de seus filhos, voava para eles alegre e prazerosa da partida, como se fosse convidada a um banquete de bodas e não lançada às feras.

56. Depois dos açoites, depois da feras e depois das chamas, por último atiraram-na a um touro. Lançada ao alto longo tempo pelo animal, insensível já ao que lhe acontecia por sua esperança mantida em tudo o que havia crido e por sua conversação com Cristo, também ela foi sacrificada, enquanto os próprios pagãos confessavam que jamais entre eles uma mulher havia padecido tantos e tais suplícios.

57. Mas nem assim fartou-se sua loucura e crueldade para com os santos, porque, incitada por uma fera selvagem, aquela tribo selvagem e bárbara não podia calar-se facilmente. Sua cruel insolência tomou outro rumo particular: fartar-se nos cadáveres.

58. De fato, não lhes causava a menor vergonha terem sido vencidos, já que não raciocinavam como homens, mas inflamava-se ainda mais sua cólera, como a de uma fera, e assim, tanto o governador como a plebe demonstravam ter o mesmo ódio injusto contra nós, para que se cumprisse a Escritura: que o injusto continue em sua injustiça, e que o justo continue sendo justificado[334].

59. Efetivamente, os que haviam perecido asfixiados no cárcere eram lançados aos cães, sendo vigiados noite e dia para evitar que algum dos nossos lhes fizesse as honras fúnebres. Também então expuseram os restos deixados pelas feras e pelo fogo, em parte despedaçados e em parte carbonizados, e durante alguns dias seguidos custodiaram com guarda militar as cabeças dos outros, junto com seus troncos, assim mesmo insepultos.

60. E sobre estes restos alguns resmungavam e rangiam os dentes, buscando tomar deles alguma vingança suplementar; outros riam-se e zombavam, ao mesmo tempo que engrandeciam seus ídolos, a quem atribuíam o castigos daqueles, e os mais moderados e que pareciam compadecer-se um pouco repetiam insultos dizendo: "Onde está seu Deus e de que lhes valeu sua religião, a qual preferiram inclusive a sua própria vida?"

  1. 61.  Assim variada era a atitude daqueles; nós, por outro lado, afundávamos em grande dor porque não podíamos enterrar os corpos, já que nem a noite nos ajudava nisto, nem o dinheiro conseguia persuadir nem as súplicas abrandar, mas por todos os meios os custodiavam, como se no fato de que os corpos não receberem sepultura eles tivessem grande vantagem."
  2. 62.  Em continuação a isto, depois de algumas outras coisas, dizem: "Assim pois, os corpos dos mártires, depois de serem expostos ao escárnio de todos os modos possíveis e de ficarem às intempéries durante seis dias, foram logo queimados e reduzidos a cinzas, que aqueles ímpios lançaram ao rio Ródano, que passa perto dali, para que nem sequer suas relíquias ficassem ainda visíveis sobre a terra.
  3. 63.  E faziam isto pensando que poderiam vencer Deus e arrebatar daqueles seu novo nascimento, com a finalidade de que, como eles diziam, "nem sequer esperança tenham de ressurreição; persuadidos dela, estão introduzindo uma religião estranha e nova, desprezam os tormentos e vêm dispostos e alegres à morte: vejamos agora se vão ressuscitar e se seu Deus pode socorrê-los e arrancá-los de nossas mãos".

 

II

[De como os mártires, amados de Deus, acolhiam e cuidavam dos que

haviam falhado na perseguição]

  1. 1.            Isto foi o que, sob o mencionado imperador, aconteceu às igrejas de Cristo, e partindo disto pode-se também conjeturar num cálculo razoável o que ocorreu nas demais províncias; será conveniente juntar ao que foi dito mais algumas passagens do mesmo documento, nas quais se descreve a suavi­dade e humanidade dos citados mártires com estas mesmas palavras:
  2. 2.            "Os quais, no zelo e imitação de Cristo, que subsistindo em forma de Deus não considerou usurpação o ser igual a Deus[335], chegaram a tão alto grau que, apesar de sua glória e de terem dado testemunho, não uma vez ou duas, mas muitas vezes mais, e de terem sido retirados das feras e de estarem cobertos por toda parte de queimaduras, equimoses e feridas, nem eles próprios se proclamaram mártires nem a nós mesmos permitiram que os chamássemos por este nome; mas antes, se algum de nós por carta ou por palavra se dirigia a eles como a mártires, repreendiam-no severamente.
  3. 3.            E compraziam-se em ceder o título do martírio a Cristo, o fiel e verdadeiro mártir, primogênito dos mortos e autor da vida de Deus, e recordando os mártires que já haviam partido, inclusive diziam: 'Aqueles sim é que são mártires, posto que Cristo teve por bem levá-los consigo em sua confissão e selou seus martírios com suas mortes; nós porém somos uns confessores medianos e sem expressão'; e com lágrimas exortavam os irmãos pedindo-lhes que se fizessem assíduas orações para lograr sua consumação.
  4. 4.            E com seu trabalho demonstravam a força de seu martírio, dirigindo a palavra com inteira liberdade aos pagãos, e manifestavam sua nobreza mediante sua paciência, sua integridade e sua impavidez; mas o título de mártires dado pelos irmãos eles rechaçavam, repletos do temor de Deus."
  5. 5.            E logo, pouco mais adiante, dizem:

"Humilhavam-se sob a mão poderosa que agora os tem grandemente exal­tados. E então defendiam a todos e não condenavam a ninguém, desatavam a todos e não atavam ninguém, e como Estevão, o mártir perfeito, rogavam pelos que lhes infligiam os tormentos: Senhor, não lhes imputes este pecado. E se rogava pelos que o apedrejavam, quanto mais não faria pelos irmãos?"

6.   E novamente, depois de outros detalhes, dizem:

"Porque este foi para eles seu maior combate contra ele[336], pela verdade de seu amor, para que a besta se engasgasse e vomitasse vivos os que primeiro pensava ter engolido. Efetivamente, não se mostraram arrogantes frente aos caídos, mas sim, com entranhas maternas, acudiam em socorro dos necessitados com sua própria abundância e, derramando muitas lágrimas por eles ao Pai, pediam vida e para eles a davam.

  1. 7.      Também a repartiam aos demais quando, vencedores em tudo, marchavam para Deus. Sempre amaram a paz, e em paz emigraram para Deus recomendando-nos a paz, não deixando para trás trabalhos para a mãe[337] nem revolta e guerra para os irmãos, mas alegria, paz, concórdia e amor."
  2. 8.      O dito sobre o amor daqueles bem-aventurados para com os irmãos caídos poderá ser útil, por causa da atitude desumana e inclemente daqueles que, depois disto, tornaram-se implacáveis nos membros de Cristo.

 

III

[Que aparição teve em sonhos o mártir Atalo]

1. O mesmo escrito sobre os citados mártires contém ainda outro relato digno de menção e não haverá inconveniente em que eu o proponha ao conheci­mento dos leitores. É assim:

  1. 2.             Alcibíades, um deles, levava uma vida austera até a miséria. A princípio não recebia nada em absoluto, nada ingerindo além de pão e água. Inclu­sive no cárcere tratava de seguir o mesmo regime. Mas a Atalo, depois de seu primeiro combate travado no anfiteatro, foi revelado que Alcibíades não fazia bem não usando das criaturas de Deus e deixando para os outros um exemplo de escândalo[338].
  2. 3.      Alcibíades, persuadido, começou a tomar de tudo sem reservas e dava graças a Deus[339]. A graça de Deus não se descuidava deles, mas antes, o Espírito Santo era seu conselheiro. E baste assim destes casos.
  3. 4.      Como foi justamente então que os partidários de Montano, Alcibíades[340] e Teodoto, começaram a dar a conhecer entre muitos na Frígia sua opinião sobre a profecia (pois os muitos outros milagres do carisma de Deus, que até então ainda vinham se realizando pelas diversas igrejas, produziam em muitos a crença de que também aqueles eram profetas), havendo surgido discrepâncias por sua causa, novamente os irmãos da Gália formularam seu próprio juízo, precavido e inteiramente ortodoxo, sobre eles, expondo também diferentes cartas dos mártires consumados entre eles, cartas que, estando ainda no cárcere, haviam escrito aos irmãos da Frígia, e não somente a eles, mas também a Eleutério, então bispo de Roma, como embaixadores em favor da paz das igrejas.

 

IV

[De como os mártires recomendavam Irineu em sua carta]

  1. 1.             Os mesmos mártires recomendavam Irineu, que já então era presbítero da igreja de Lion[341], ao mencionado bispo de Roma, dando sobre ele numerosos testemunhos, como demonstram as palavras seguintes:
  2. 2.             "De novo e sempre rogamos que gozes de saúde em Deus, pai Eleutério. Estimulamos nosso irmão e companheiro Irineu para que te leve esta carta, e te rogamos que o tenhas por recomendado, zelador como é do testamento de Cristo, porque, sabendo que um cargo confere justiça a alguém, desde o primeiro momento o recomendaríamos como presbítero da Igreja, o que precisamente é."
  3. 3.      Que necessidade há de transcrever a lista dos mártires, assim dos que mor­reram por decapitação como dos que foram lançados como pasto para as feras, como também dos que morreram no cárcere e o número dos confessores sobreviventes até aquele momento? Para quem goste, será fácil repassar detalhadamente estas listas se tomar em mãos o escrito que, como já disse, encontra-se recolhido em nossa Recompilação de martírios. Mas isto foi o ocorrido sob Antonino[342].

 

V

[De como Deus atendeu as orações dos nossos e fez chover do céu para o

imperador Marco Aurélio]

  1. 1.            E tradição que o irmão deste, Marco Aurélio César, estando em ordem de batalha frente aos germânicos e aos sármatas, passava grande dificuldade por causa da sede que castigava seu exército. Mas os soldados que serviam sob a assim chamada legião de Melitene[343] - que por sua fé subsiste desde então até hoje -, formados frente ao inimigo, puseram seus joelhos no chão, segundo nosso familiar costume de orar, e dirigiram suas súplicas a Deus.
  2. 2.     Tal espetáculo pareceu, na verdade, muito estranho aos inimigos, mas outro documento conta que no mesmo instante foram surpreendidos por outro espetáculo ainda mais estranho: um furacão punha em fuga e aniquilava os inimigos, enquanto que a chuva caía sobre o exército dos que haviam invocado o socorro divino e o reanimava quando já estava todo ele a ponto de perecer pela sede.
  3. 3.            O relato conserva-se inclusive entre os escritores alheios a nossa doutrina que se preocuparam em escrever sobre aqueles tempos. Também os nossos o dão a conhecer. No entanto, os historiadores de fora, alheios a nossa fé, expõe o prodígio mas não confessam que este se realizou pelas orações dos nossos; já os nossos, como amantes da verdade, transmitem o ocorrido com simplicidade e sem malícia.
    1. 4.      Destes poderia ser também Apolinário, que afirma que a legião autora do prodígio por sua oração recebeu do imperador, a partir de então, um nome adequado ao sucedido, que em língua latina se diz Fulmínea.
    2. 5.      Testemunha destes fatos, digno de crédito, poderia também ser Tertuliano, que dirigiu ao senado a Apologia latina em favor da fé, da qual fizemos menção mais acima[344], e confirma o relato com uma demonstração mais ampla e mais clara.
    3. 6.      Escreve pois também ele e diz que até agora conservam-se cartas de Marco, o imperador mais sábio, nas quais ele mesmo atesta que, estando seu exército a ponto de perecer na Germania e por falta de água, salvou-se pelas orações dos cristãos. E segue dizendo Tertuliano que o imperador ameaçou inclu­sive com a pena de morte aos que tentassem acusar-nos.

7.   A tudo isso o mesmo autor junta o seguinte:

"Que tipo de leis são estas então, ímpias, injustas e cruéis, seguidas somente contra nós? Vespasiano não as observou, apesar de ter vencido os judeus; Trajano teve-as em parte como nada, ao impedir que se perseguissem os cristãos, e Adriano, apesar de ocupar-se com muita curiosidade com muitas coisas, não as sancionou, como tampouco o que é chamado Pio." Mas isto, que cada um o deixe onde quiser.

  1. 8.             Nós, por nossa parte, voltemos ao fio do que se segue. Quando Potino, com seus noventa anos cumpridos, morreu em companhia dos mártires da Gália, Irineu recebeu em sucessão o episcopado da igreja de Lion, que Potino havia regido. Sabemos que ele, em sua juventude, foi ouvinte de Policarpo.
  2. 9.      No livro terceiro de sua obra Contra as heresias expõe a sucessão dos bispos de Roma até Eleutério, de cuja época também investigamos os aconteci­mentos, e estabelece a lista como se, de fato, sua obra fosse composta nos tempos deste; escreve como segue:

 

VI

[Lista dos bispos de Roma]

  1. 1.            "Os bem-aventurados apóstolos, depois de haverem fundado e edificado a Igreja, puseram o ministério do episcopado em mãos de Lino. Este Lino é mencionado por Paulo em sua carta a Timóteo[345].
  2. 2.            Sucede-o Anacleto, e depois deste, em terceiro lugar a partir dos apóstolos, obtém o episcopado Clemente, que também havia visto os bem-aventurados apóstolos e tratado com eles, e tinha ainda ressoando-lhe nos ouvidos a pregação dos apóstolos e diante dos olhos sua tradição. E não apenas ele, porque então ainda sobreviviam muitos que haviam sido instruídos pelos apóstolos.
  3. 3.            Quando nos tempos deste Clemente surgiu entre os irmãos de Corinto uma não pequena dissensão, a igreja de Roma escreveu aos Coríntios uma carta importantíssima tentando reconciliá-los na paz e renovar sua fé e a tradição que tinham recebido dos apóstolos."

E depois de breve espaço diz:

4.   "A este Clemente sucede Evaristo, e a Evaristo, Alexandre; depois é insti­tuído Sixto, o sexto portanto a partir dos apóstolos; e depois deste, Telésforo, que também sofreu gloriosamente o martírio; logo Higinio; depois Pio, e depois deste, Aniceto; havendo Sotero sucedido a Aniceto, agora é Eleutério que ocupa o cargo do episcopado, em décimo segundo lugar a partir dos apóstolos.

5.   Pela mesma ordem e com a mesma sucessão chegaram até nós a tradição e a pregação da verdade que procederam dos apóstolos na Igreja.

 

VII

[De como inclusive até aqueles tempos realizavam-se por meio dos fiéis grandiosos milagres]

  1. 1.            Irineu, coincidindo com as narrações que discutimos anteriormente nos livros que, em número de cinco, intitulou Refutação e destruição da falsamente chamada gnosis, esboça também estas coisas. No livro segundo da mesma obra assinala que, em algumas igrejas, persistiram inclusive até ele manifestações do maravilhoso poder divino. Ele o diz com estas palavras:
  2. 2.            "Muito lhes falta para ressuscitar um morto[346], como fizeram o Senhor e os apóstolos mediante a oração e como se deu na comunidade de irmãos muitas vezes: por causa da necessidade, a igreja toda do lugar estava rogando com jejuns e repetidas súplicas, e o espírito do morto voltou, e o homem recebeu o favor pela graça das orações dos santos."

E de novo, depois de outras coisas, diz:

  1. 3.            "Mas se chegam a dizer que o Senhor fez tais prodígios apenas em aparência, então os faremos recorrer aos escritos proféticos e por estes lhes demons­traremos que assim está previsto sobre Ele, e que assim sucedeu com segu­rança e que somente Ele é o Filho de Deus. Por isso, também em seu nome os que são verdadeiramente seus discípulos recebem d'Ele a graça e a utilizaram em benefício dos demais homens, segundo o dom que cada um recebeu d'Ele[347].
  2. 4.     Uns, efetivamente, expulsam firme e verdadeiramente os demônios, de modo que muitas vezes aqueles mesmos que foram purificados dos maus espíritos crêem e estão na Igreja; outros têm conhecimento antecipado do porvir, assim como visões e declarações proféticas; outros ainda, curam os enfer­mos mediante a imposição das mãos e os restituem sãos; mais ainda, como dissemos, inclusive mortos foram ressuscitados e permaneceram conosco muitos anos. E para que mais?

5. Não é possível dizer o número de graças que por todo o mundo a Igreja recebeu de Deus em nome de Jesus Cristo crucificado sob Pôncio Pilatos e que cada dia utiliza em benefício dos pagãos, sem nunca enganar ninguém nem despojá-lo de seu dinheiro, porque gratuitamente o recebeu de Deus e gratuitamente o serve."

6.   E em outro lugar escreve o mesmo:

"Assim como também ouvimos que há muitos irmãos na Igreja que têm dons proféticos e que por meio do Espírito falam em todo tipo de línguas, que põe a descoberto os segredos dos homens quando é proveitoso e que explicam os mistérios de Deus."

Isto é o que há sobre a permanência dos diferentes dons até os tempos mencionados entre os que deles eram dignos.

 

VIII

[De como Irineu menciona as diversas Escrituras]

  1. 1.            Posto que ao dar início a esta obra[348] prometemos citar oportunamente as palavras dos antigos presbíteros e escritores eclesiásticos, nas quais nos transmitiram por escrito as tradições chegadas até eles sobre as Escrituras canônicas, e como Irineu era um destes, citemos também suas palavras;
  2. 2.            e em primeiro lugar as que se referem aos sagrados evangelhos; são as seguintes:

"Mateus publicou entre os hebreus, em sua própria língua, um Evangelho também escrito[349], enquanto Pedro e Paulo estavam em Roma evangelizando e lançando os fundamentos da Igreja.

  1. 3.            "Depois da morte destes, Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, trans­mitiu-nos por escrito, também ele, o que Pedro havia pregado. E Lucas, por sua parte, o seguidor de Paulo, colocou em livro o Evangelho que este havia pregado.
  2. 4.     Finalmente João, o discípulo do Senhor, o que havia se reclinado sobre seu peito, também ele publicou o Evangelho, enquanto morava em Éfeso da Ásia."
  3. 5.     Isto é o que diz o livro terceiro antes mencionado da dita obra, mas no quinto expressa-se acerca do Apocalipse de João e do número do nome do anticristo[350] como segue:

"Sendo isto assim e encontrando-se este número em todas as boas e antigas cópias, e atestando-o aqueles mesmos que viram João face a face, e visto que a razão nos ensina que o número do nome da besta aparece manifesto segundo o cálculo dos gregos por meio das letras que nele há..."

6.   E um pouco mais abaixo segue dizendo sobre o mesmo:

"Nós pois, não nos arrisquemos a manifestarmo-nos de maneira segura sobre o nome do anticristo, porque, se houvesse sido necessário na presente ocasião proclamar abertamente seu nome, ter-se-ia feito por meio daquele que também tinha visto o Apocalipse, já que não faz muito tempo que foi visto, mas quase em nossa geração, ao final do império de Domiciano."

7.   Isto é o que o citado autor refere acerca do Apocalipse, mas menciona também a primeira carta de João ao apresentar numerosos testemunhos tirados dela, assim como da primeira de Pedro; e não apenas conhece, mas também aceita[351] o escrito do Pastor quando diz:

"Porque bem diz a Escritura: O primeiro de tudo, crê que há um só Deus, o que criou e ordenou tudo, etc."

8.   E até utiliza algumas sentenças tiradas da Sabedoria de Salomão, dizendo mais ou menos:

"Visão de Deus que produz incorrupção; e a incorrupção faz estar perto de Deus", e menciona as Memórias de certo presbítero apostólico, sobre cujo nome silenciou, e cita suas Explicações das divinas Escrituras.

  1. 9.      Faz menção ainda ao mártir Justino e a Inácio, utilizando uma vez mais testemunhos tirados das obras escritas por eles, e promete refutar ele mesmo, com trabalho próprio, a Márcion, partindo de seus escritos.
  2. 10.  E quanto à tradução das Escrituras inspiradas realizada pelos Setenta, ouve o que escreve textualmente:

"Deus pois fez-se homem, e o Senhor mesmo nos salvou, depois de dar-nos o sinal da Virgem, mas não como dizem alguns de agora que se atrevem a traduzir a Escritura: Eis aqui que a jovem conceberá em seu ventre e dará à luz um filho[352], como traduziram Teodósio, o de Éfeso, e Áquila, o do Ponto, ambos judeus prosélitos, aos que seguem os ebionitas quando dizem que Ele nasceu de José."

11.  Depois de um breve espaço, acrescenta ao dito:

"Efetivamente, antes que os romanos fizessem prevalecer seu governo e quando os macedônios ainda dominavam a Ásia, Ptolomeu, filho de Lagos, ambicionando adornar a biblioteca por ele organizada em Alexandria com as obras de todos os homens, ao menos as boas, pediu aos de Jerusalém para ter traduzidas em língua grega suas Escrituras.

  1. 12.     Eles, que então ainda estavam submetidos aos macedônios, enviaram a Ptolomeu setenta anciãos, os mais versados dentre eles nas escrituras e em ambas as línguas. Deus fazia precisamente o que queria.
  2. 13.     Ptolomeu, querendo testá-los separadamente e evitando que se pusessem de acordo para ocultar por meio da tradução o que há de verdade nas Escrituras, separou-os uns dos outros e ordenou que escrevessem a mesma tradução, e assim fez com todos os livros.
  3. 14.     Mas logo que se reuniram junto a Ptolomeu e cada um comparou sua própria tradução, Deus foi glorificado e as Escrituras foram reconhecidas como verdadeiramente divinas: todos haviam proclamado as mesmas coisas com as mesmas expressões e os mesmos nomes, desde o começo até o fim, de forma que até os pagãos ali presentes reconheceram que as Escrituras foram traduzidas sob a inspiração de Deus.
  4. 15.     E não há que estranhar que Deus fizesse isto, porque foi Ele que, havendo sido destruídas as Escrituras no cativeiro do povo sob Nabucodonosor e tendo os judeus regressado a seu país depois de setenta anos, logo, nos tempo de Artaxerxes, rei dos persas, inspirou o sacerdote Esdras, da tribo de Levi, a refazer todas as palavras dos profetas que o haviam precedido e restituir ao povo a legislação dada por meio de Moisés."

Tudo isto diz Irineu.

 

IX

[Os que foram bispos sob Cômodo]

1. Tendo-se mantido Antonino no império por dezenove anos, Cômodo recebe o principado. No primeiro ano deste e depois de Agripino ter cumprido o ministério pelo espaço de doze anos, é Juliano que assume o cargo do episcopado das igrejas de Alexandria.

X

[De Panteno, o filósofo]

  1. 1.            Naquele tempo a escola dos fiéis dali era dirigida por um varão celebérrimo por sua instrução, cujo nome era Panteno. Existia entre eles, por costume antigo, uma escola das sagradas letras. Esta escola continua prolongando-se até nós e, pelo que ficamos sabendo, é formada por homens eloqüentes e estudiosos das coisas divinas. Mas uma tradição afirma que entre os daquela época brilhava sobremaneira o mencionado Panteno. E procedia da escola filosófica dos chamados estóicos!
  2. 2.            Conta-se pois, que demonstrou um zelo tão grande pela doutrina divina com sua ardente disposição de ânimo, que inclusive foi proclamado arauto do Evangelho de Cristo para os pagãos do Oriente e enviado até as terras Índias[353]. Porque havia, sim, havia até aquele tempo ainda numerosos evangelistas da doutrina, cuja preocupação era colocar à disposição seu inspirado zelo de imitação dos apóstolos para crescimento e edificação da doutrina divina.
  3. 3.     Destes foi também Panteno, e diz-se que foi à Índia, onde é tradição que descobriu que o Evangelho de Mateus havia-se adiantado à sua chegada entre alguns habitantes do país que conheciam Cristo: Bartolomeu, um dos apóstolos, teria pregado para eles e havia-lhes deixado o escrito de Mateus nos próprios caracteres hebreus, escritos que conservavam até o tempo mencionado.
  4. 4.     Certo é, ao menos, que Panteno, por seus muitos merecimentos, terminou dirigindo a escola de Alexandria, comentando de viva voz e por escrito os tesouros dos dogmas divinos.

 

XI

[De Clemente de Alexandria]

  1. 1.            Por este tempo[354] exercitava-se nas Escrituras divinas e era célebre em Alexandria Clemente, homônimo do discípulo dos apóstolos que antigamente regeu a igreja de Roma.
  2. 2.            Nas Hypotyposeis que compôs menciona Panteno pelo nome, no livro primeiro de seus Stromateis quando, ao assinalar os mais célebres da sucessão apostólica por ele recebida, diz o seguinte:
  3. 3.            "Em verdade esta obra não é um escrito composto com arte para ostentação, mas apontamentos guardados para minha velhice, remédio contra o esquecimento, imagem sem arte e desenho em sombras daquelas palavras brilhantes e cheias de vida que eu tive a honra de ouvir, e daqueles varões bem-aventurados e realmente eminentes.
  4. 4.     Um deles, o jônico, na Grécia; outro na Magna Grécia; outro era de Celesiria, outro do Egito; outros ainda estavam pelo Oriente, um deles da Assíria e outro, hebreu de origem, na Palestina. Mas quando deparei com o último -mas que era o primeiro em poder - e procurei por ele no Egito, onde se ocultava, descansei[355].
  5. 5.            Mas estes homens, que conservavam a verdadeira tradição do ensinamento bendito proveniente em linha reta dos santos apóstolos, de Pedro e de Tiago, de João e de Paulo, recebendo-a o filho do pai (mas poucos foram os filhos parecidos com os pais), com a ajuda de Deus chegaram inclusive até nós para depositar aquelas sementes ancestrais e apostólicas."

 

XII

[Dos bispos de Jerusalém]

1. Nestes tempos era célebre e famoso - ainda hoje continua sendo entre muitos - Narciso, bispo da igreja de Jerusalém, décimo quinto na sucessão desde o assédio dos judeus sob Adriano. Já mostramos que foi desde então que pela primeira vez ali a Igreja foi composta por gentios, depois dos oriundos da circuncisão, e que o primeiro dos bispos gentios que os dirigiu foi Marcos[356].

2. E as sucessões do lugar assinalam que depois dele foi bispo Cassiano, e depois deste, Públio, depois Máximo; depois deles, Juliano; depois, Caio, e depois deste, Símaco e um segundo Caio; de novo outro Juliano; depois destes, Capiton, Valente e Doliquiano, e depois de todos, Narciso, trigésimo desde os apóstolos, segundo a sucessão da série.

 

XIII

[De Ródon e as dissensões que menciona dos marcionitas]

  1. 1.            Também por este tempo, Ródon[357], oriundo da Ásia e discípulo em Roma, como ele mesmo conta, de Taciano, a quem já conhecemos por relato ante­rior[358], compôs diversos livros e alinhou-se também com os outros contra a heresia de Márcion. Conta que em seu tempo esta encontrava-se dividida em diversas correntes, descreve os causadores da ruptura e refuta com rigor as falsas doutrinas imaginadas por cada um deles.
  2. 2.            Ouve pois, o que escreve:

"Por isso discordam também entre si, porque reivindicam doutrinas incon­sistentes. Efetivamente, de seu rebanho é Apeles, venerado por sua conduta e por sua idade, que confessa sim um único princípio, mas diz que os profetas procedem do espírito contrário, e obedece aos preceitos de uma virgem possuída pelo demônio chamada Filomena.

  1. 3.     Outros ainda, assim como o próprio piloto (Márcion), introduziram dois princípios. De suas fileiras vêm Potito e Basílico.
  2. 4.            Também estes seguiram o lobo do Ponto, e não encontrando, como ele também não encontrou, a divisão das coisas, deram meia volta para o lado fácil e proclamaram dois princípios, arbitrariamente e sem demonstração. E outros, partindo por sua vez destes, chegaram ao pior e já supõe não apenas duas, mas três naturezas; seu chefe e patrão é Sineros, segundo dizem os que estão a cargo de sua escola."
  3. 5.            Escreve também o mesmo autor que inclusive chegou a ocupar-se de Apeles; diz assim:

"Porque o velho Apeles, quando tratou conosco convenceu-se de que estava dizendo muitas coisas equivocadamente, e a partir de então costumava repetir que não convinha examinar absolutamente as razões, mas que cada um ficasse com sua própria crença; declarava mesmo que se salvavam os que tinham posta sua esperança no Crucificado, contanto que apresentem boas obras. Mas, como já dissemos, declarava que para ele, de todos, o assunto mais obscuro era o que se refere a Deus. E dizia, assim como nossa doutrina, que há somente um princípio."

6.   Logo, depois de expor toda a opinião deste, segue dizendo:

"Como eu lhe perguntasse: De onde tiras esta prova ou como podes tu dizer que há um princípio? Explica-nos. Respondeu que as profecias se refuta­vam a si mesmas porque nada disseram de inteiramente verdadeiro, já que discrepam, são enganosas e contradizem umas às outras. Quanto a como há um só princípio, dizia que o ignorava, que assim, apenas isto, sentia-se movido.

  1. 7.             Então eu o conjurei a que dissesse a verdade, e ele jurou que estava dizendo a verdade: que não sabia como existe um só Deus incriado, mas que ele o cria. Eu então pus-me a rir e acusei-o de dizer que é mestre e ainda assim não dominar o que ensina."
  2. 8.             O mesmo autor, dirigindo-se a Calistion na mesma obra, confessa que ele mesmo foi discípulo de Taciano em Roma e diz também que Taciano preparou um livro de Problemas; como Taciano prometera mostrar através deles o obscuro e oculto das divinas Escrituras, o próprio Ródon anuncia por sua vez que vai expor num livro especial as soluções dos problemas daquele. Conserva-se também dele um Comentário sobre o Hexameron.
  3. 9.      Apeles, no entanto, proferiu impiamente inúmeros ultrajes contra a lei de Moisés, blasfemando contra as divinas palavras com seus numerosos escritos e pondo grande empenho, pelo menos em aparência, em refutá-las e destruí-las.

Isto é, pois, o que há sobre eles.

 

XIV

[Dos falsos profetas catafrigas]

1. Como o inimigo da Igreja de Deus é em último grau avesso ao bem e amante do mal e de forma alguma deixa de lado qualquer maneira de conspirar contra os homens, fez com que de novo brotassem estranhas heresias contra a Igreja. Destes hereges alguns, como serpentes venenosas, rastejavam pela Ásia e Frígia, vangloriando-se de ter como modelo Montano e nas mulheres de sua companhia, Priscila e Maximila, as supostas profetisas de Montano.

 

XV

[Do cisma de Blasto em Roma]

1. Os outros floresciam em Roma, eram dirigidos por Florino, um excluído do presbitério da Igreja, e com ele Blasto, que tivera uma queda[359] similar. Estes arrastaram muitos da Igreja e os submeteram a sua vontade, tentando um e outro introduzir novidades sobre a verdade, cada um por seu lado.

 

 

 

XVI

[O que se menciona sobre Montano e os pseudoprofetas de sua compa­nhia]

  1. 1.           Contra a heresia chamada catafriga, o poder defensor da verdade levantou em Hierápolis uma arma potente e invencível: Apolinário, a quem esta obra já mencionou mais acima[360], e com ele muitos outros homens doutos daquele tempo, dos quais foi-nos deixado abundante material para historiar.
  2. 2.           Ao começar pois, um dos mencionados seu escrito contra aqueles, assinala primeiramente que também lutou contra eles com argumentos orais. Escreve no prólogo desta maneira:
  3. 3.     Faz muito e bem longo tempo, querido Avircio Marcelo, que tu me ordenaste escrever algum tratado contra a heresia dos chamados "de Milcíades", mas até agora de certa maneira sentia-me indeciso, não por dificuldade em poder refutar a mentira e dar testemunho da verdade, mas por temor de que, apesar de minhas precauções, parecesse a alguns que de certo modo acres­cento ou junto[361] algo novo à doutrina do Novo Testamento, ao qual não pode juntar nem tirar nada quem tenha decidido viver conforme este mesmo Evangelho.
  4. 4.     Encontrando-me recentemente em Ankira da Galácia e compreendendo que a igreja local estava aturdida por esta, não como dizem, nova profecia, mas mais propriamente, como se demonstrará, pseudoprofecia, enquanto nos foi possível e com a ajuda do Senhor, durante vários dias, discutimos intensamente sobre estes mesmos homens e sobre os pontos propostos por eles, tanto que a igreja encheu-se de alegria e ficou robustecida na verdade, enquanto que os contrários eram rechaçados na hora e os inimigos abatidos.
    1. 5.            Em conseqüência, os presbíteros do lugar pediram que lhes deixássemos alguma nota do que havia sido dito contra os que se opõe à doutrina da verdade, achando-se também presente nosso co-presbítero[362] Zotico, o de Otreno, mas nós não o fizemos; em troca, prometemos escrevê-lo aqui, com a ajuda de Deus, e enviá-lo com toda a presteza."
    2. 6.            Depois de expor no começo isto e em seguida alguma outra coisa, segue adiante e narra a causa da mencionada heresia desta maneira:

"Agora bem, sua conduta e sua recente ruptura herética a respeito da Igreja tiveram como causa o que segue.

  1. 7.             "Diz-se que em Misia da Frígia existe uma aldeia chamada Ardaban. Ali foi, dizem, que um recém-convertido à fé chamado Montano, pela primeira vez, em tempos de Grato, procônsul da Ásia, saindo contra o inimigo com a paixão desmedida de sua alma ambiciosa de proeminência, ficou a mercê do espírito e de repente entrou em arrebatamento convulsivo como se pos­sesso e em falso êxtase, e começou a falar e a proferir palavras estranhas, profetizando desde aquele momento contra o costume recebido pela tradição e por sucessão desde a Igreja primitiva.
  2. 8.             Dentre os que naquela ocasião escutaram estas expressões bastardas, uns, ofendidos com ele como energúmeno, endemoninhado, embebido no espírito do erro e perturbador das multidões, repreendiam-no e tentavam impedi-lo de falar, lembrando-se da explicação e advertência do Senhor sobre estar em guarda e alerta com a aparição de falsos profetas[363]; os outros em troca, como que excitados por um espírito santo e um carisma profético, e não menos inchados de orgulho e esquecidos da explicação do Senhor, fascinados e extraviados pelo espírito insano, sedutor e desencaminhador do povo, provocavam-no para que não permanecesse mais em silêncio.
  3. 9.             Com certa habilidade, ou melhor, com tais métodos fraudulentos, o diabo maquinou a perdição dos desobedientes e, honrado por eles contra todo merecimento, excitou e inflamou ainda suas mentes adormecidas, já distan­tes da fé verdadeira, e assim suscitou outras duas mulheres quaisquer[364]e encheu-as com seu espírito bastardo, de maneira que também elas começa­ram a falar delirando, inoportunamente e de modo estranho, como o men­cionado antes. O espírito proclamava bem-aventurados aos que se alegra­vam e vangloriavam nele e os enchia com a grandeza de suas promessas; às vezes, no entanto, por motivos aceitáveis e verossímeis, condenava-os publicamente a fim de parecer também ele capaz de argumentar; mas contudo, poucos eram os frígios enganados. O orgulhoso espírito ensinava também a blasfemar contra a Igreja católica inteira que se estende sob o céu, porque o espírito pseudoprofético não tinha conseguido louvor nem entrada nela.
    1. 10.     Efetivamente, os fiéis da Ásia haviam-se reunido para isto muitas vezes e em muitos lugares da Ásia, e depois de examinar as recentes doutrinas, declararam-nas profanas e as rechaçaram como heresia; desta maneira aqueles foram expulsos da Igreja e separados da comunhão."
    2. 11.     É a isto que se refere no início; logo continua através de todo o livro a refutação do erro montanista, e no segundo livro diz sobre o fim das pessoas citadas o que segue:
    3. 12.     "Pois bem, posto que nos chamam mata-profetas[365] porque não aceitamos seus profetas charlatães (dizem efetivamente que estes são os que o Senhor havia prometido enviar a seu povo[366]), que ante Deus nos respondam: dos que começam a falar[367] a partir de Montano e das Mulheres, há algum, amigos, a quem os judeus tenham perseguido ou alguém que os crimino­sos tenham assassinado? Nenhum. Nem sequer algum deles foi preso e crucificado por causa do nome? Também não, desde logo. Nem sequer alguma das mulheres foi açoitada nas sinagogas dos judeus e apedrejada?
    4. 13.     Nem em parte alguma, em absoluto. Por outro lado, diz-se que Montano e Maximila findaram com outro gênero de morte. Efetivamente, é corrente que estes, por influência do espírito perturbador da mente, que movia tanto um quanto a outra, enforcaram-se, ainda que não ao mesmo tempo, e que ao tempo da morte de ambos correu forte boato de que haviam terminado e morrido da mesma maneira que Judas o traidor.
    5. 14.     Como também é rumor insistente que aquele inefável Teodoto, o primeiro intendente[368], por assim dizer, de sua pretendida profecia, achando-se um dia como que elevado e alçado aos céus, entrou em êxtase e entregou-se por completo ao espírito do engano, e então, lançado com força, acabou desastrosamente. Ao menos dizem que foi assim.
    6. 15.     No entanto, querido, não o tendo visto nós mesmos, pensamos que nada sabemos a respeito; porque talvez tenha ocorrido assim, mas talvez não tenham morrido assim nem Montano nem Teodoto nem a citada mulher."

16. Volta a dizer no mesmo livro que os sagrados bispos daquele tempo tentaram refutar o espírito que havia em Maximila, mas que outros o impediram, colaboradores, evidentemente, daquele espírito.

17. Escreve como segue:

"E que aquele espírito que opera por meio de Maximila não diga no mesmo livro de Asterio Urbano: 'Perseguem-me como a um lobo longe das ovelhas; eu não sou lobo, sou palavra e espírito e poder', antes é bom que demonstre claramente o poder que há no espírito, que o prove e que por meio do espírito obrigue a confessar aos que naquela ocasião achavam-se presentes para examinar e para dialogar com o espírito que falava, varões probos e bispos: Zotico, da aldeia de Cumana, e Juliano, de Apamea, cujas bocas foram amordaçadas pelos partidários de Temiso, impedindo assim que refutassem o espírito enganador e desencaminhador de povos."

18. Novamente no mesmo livro, quando dizem algumas outras coisas refutando as falsas profecias de Maximila, indica o tempo em que escreveu isto e menciona os vaticínios dela, nos quais predizia que haveria guerras e revoluções; a falsidade de tudo isto ele revela quando escreve:

19. "E como não se evidenciou também esta mentira? Porque já são transcorridos mais de treze anos até hoje desde que aquela mulher morreu e no mundo não tem havido guerra, nem parcial nem geral, mas que até para os cristãos a paz tem sido mais permanente, por misericórdia divina."

20. Isto tomamos do livro segundo. Mas também do terceiro citaremos algumas frases breves, pelas quais diz contra os que se jactavam de que entre eles houve mais mártires:

"Agora bem, quando os refutamos com todo o dito e vêem-se apurados, tentam refugiar-se nos mártires, dizendo que têm muitos mártires e que isto é uma garantia fidedigna do poder do espírito que eles chamam profético, mas isto, ao que parece, é de tudo o menos verdadeiro.

21. Efetivamente, das outras heresias algumas têm numerosos mártires, e nem por isso vamos aprová-las nem confessar que possuem a verdade. Os primeiros ao menos, os que se chamam Marcionitas por seguir a heresia de Márcion, também eles dizem que têm inúmeros mártires, mas ao próprio Cristo não confessam conforme a verdade."

E depois de breve espaço, acrescenta ao dito:

22. "Por isso, sempre que os fiéis da Igreja chamados a dar testemunho da fé conforme a verdade encontram-se com algum dos chamados mártires procedentes da heresia catafriga, afastam-se deles e morrem sem terem se comunicado com eles, porque não querem dar assentimento ao espírito que se vale de Montano e de suas mulheres. Que isto é verdadeiro e que, até em
nossos tempos, tem ocorrido em Apamea, às margens do Meandro, evidencia-se nos martírios de Caio e Alexandre de Eumenia e de seus companheiros."

 

XVII

[De Milcíades e os tratados que compôs]

1. Na mesma obra[369] menciona-se também Milcíades, um escritor que, parece, também escreveu um tratado contra a dita heresia. Depois de citar algumas passagens destes[370] continua dizendo:

"Isto encontrei em uma obra das que atacam o escrito de Milcíades, nosso irmão, escrito que demonstra não ser necessário que um profeta fale em êxtase, e fiz um resumo."

2. Um pouco mais abaixo na mesma obra estabelece uma lista dos que profe­tizaram no Novo Testamento; entre eles enumera um tal Amias e a Codrato; diz assim:

 ".. .mas o falso profeta, no êxtase - ao qual seguem o descaramento e a ousa­dia -, começa em voluntária ignorância e termina em demência involuntária da alma, como se disse anteriormente.

  1. 3.             Mas não poderão mostrar um só profeta, nem do Antigo nem do Novo (Testamento) que tenha sido arrebatado pelo espírito desta maneira, nem poderão gloriar-se de Agabo, nem de Judas, nem de Silas, nem das filhas de Felipe, nem de Amias de Filadélfia, nem de Codrato nem de nenhum outro, se há, porque nada tem a ver com eles."
  2. 4.      E logo, depois de curto espaço, diz o seguinte:

"Porque, se é como dizem, que depois de Codrato e de Amias de Filadélfia, o carisma profético passou por sucessão às mulheres do séquito de Montano, que demonstrem quem dentre eles sucedeu aos discípulos de Montano e a suas mulheres, já que o Apóstolo sustenta que é necessário que o caris­ma profético subsista em toda a Igreja até a parousia final[371]. Mas não pode­rão mostrar ninguém, apesar de já ser este o décimo quarto da morte de Maximila."

5.   Isto diz ele. No que tange a Milcíades, por ele mesmo mencionado, também deixou-nos outras lembranças de sua aplicação diligente às divinas Escrituras nos tratados que compôs Contra os gregos e Contra os judeus, temas com os quais se debateu separadamente nos dois livros. E mais, fez também uma Apologia dirigida aos príncipes[372] do mundo em favor da filosofia por ele
professada[373].

 

 

 

 

XVIII

[Em que termos Apolônio refutou aos catafrigas e quem ele menciona]

  1. 1.            Como a heresia chamada catafriga ainda estivesse florescendo por aqueles tempos na Frígia, também Apolônio, escritor eclesiástico, empreendeu o trabalho de uma refutação. Compôs contra eles um escrito próprio, no qual corrige, palavra por palavra, as falsas profecias alegadas por eles e des­creve como foi a vida dos líderes da heresia. Mas escuta isto que diz sobre Montano, literalmente:
  2. 2.     "Mas suas obras e seus ensinamentos mostram quem é este novo mestre. Este é o que ensinou o rompimento de matrimônios[374], o que impôs leis de jejuns, o que deu o nome de Jerusalém a Pepuza e a Timio (cidades insigni­ficantes da Frígia), porque queria reunir ali gente de todas as partes, o que estabeleceu arrecadadores de dinheiro, o que inventava a aceitação de dona­tivos sob o nome de oferendas, o que assalariava os arautos de sua doutrina[375], com a finalidade de que o ensinamento de sua doutrina se afirmasse por meio da glutonaria."

3.   Isto sobre Montano. Mas um pouco mais abaixo escreve também sobre suas profetisas como segue:

"Demonstramos portanto que estas primeiras profetisas em pessoa são as que, desde o momento em que ficaram cheias do espírito, abandonaram seus maridos. Como então tratavam de enganar-nos chamando de virgem Priscila?"

4.   Ainda segue dizendo:

"Não te parece que toda a Escritura proíbe que um profeta receba donativos e dinheiro? Portanto, quando vejo que a profetisa recebeu ouro e prata e vestidos suntuosos, como posso não rechaçá-la?"

5.   E um pouco mais abaixo, outra vez diz sobre alguns de seus confessores o que segue:

"Mais ainda: também Temiso, que envolveu sua avidez com mantos de aceitabilidade e que não suportou as insígnias da confissão[376], mas que depôs as correntes em troca de muito dinheiro, quando por tudo isto devia humilhar-se, fez-se de mártir e, compondo uma Carta católica, em imitação ao Apóstolo, atreveu-se a catequizar aos que eram melhores crentes do que ele, a combater com palavras vazias de sentido e a blasfemar contra o Senhor, os apóstolos e a santa Igreja."

6.   E sobre outro, também dos que eles estimam como mártires, escreve assim:
"E para não falar demais, que nos diga a profetisa o que há de Alexandre, o que a si mesmo chama de mártir, com o qual ela banqueteia e que muitos inclusive adoram. Não é preciso que citemos os latrocínios e demais crimes seus pelos quais foi castigado: estão conservados no opistodomo[377].

7.   "Quem pois perdoa a quem de seus pecados? Qual dos dois: o profeta ao mártir por seus latrocínios, ou o mártir ao profeta por sua avareza? Porque, tendo dito o Senhor: não possuireis nem ouro nem prata nem duas túnicas[378], estes pecaram fazendo tudo ao contrário no que tange à posse destas coisas proibidas. Efetivamente, vamos demonstrar que os chamados entre eles de
profetas e mártires não somente caem sobre as posses dos ricos, mas também sobre as dos pobres, dos órfãos e das viúvas.

  1. 8.             E se estão seguros, que se apresentem aqui e se expliquem sobre estes pontos para que, no caso de serem convencidos, deixem de continuar prevaricando. Efetivamente, há que se examinar os frutos dos profetas,
  2. 9.             "já que por seu fruto se conhece a árvore[379]. E para que todos que o desejem conheçam a história de Alexandre, foi julgado por Emílio Frontino, procônsul de Éfeso[380], não por causa do nome[381], mas pelos roubos que ousou cometer, porque já era um delinqüente. Logo, juntando mentira a mentira em nome do Senhor, enganou os fiéis do lugar e foi posto em liberdade, e sua própria comunidade de origem não o recebeu, por ser ladrão; os que queiram saber sua história têm o arquivo público da Ásia.
  3. 10.      O profeta não o conhece, apesar de conviver com ele muitos anos. Nós, desmascarando-o, por ele colocamos em evidência a natureza do profeta. Coisas semelhantes podemos demonstrar de muitos; e se se atrevem, que suportem a prova".
  4. 11.      E novamente, em outro lugar da obra, acrescenta o que segue, sobre os profetas de que se jactam:

"Se porventura negam que seus profetas receberam presentes, que admitam isto: se for provado que os receberam, não são profetas, e nós apresentaremos provas disto aos milhares. É preciso comprovar todos os frutos do profeta. Um profeta, diga-me, tinge os cabelos? Um profeta pinta de negro as sobran­celhas e pestanas? Um profeta é amigo de enfeites? Um profeta joga com tabuleiros e dados? Um profeta empresta dinheiro a juros? Que confessem se é permitido ou não, e eu demonstrarei que entre eles ocorreu."

  1. 12.     Este mesmo Apolônio refere na mesma obra que, quando escrevia seu livro, haviam transcorrido já quarenta anos desde que Montano empreendeu sua fingida profecia.
  2. 13.     E diz ainda que, estando Maximila em Pepuza fingindo que profetizava, Zotico - que também foi mencionado pelo escritor anterior - enfrentou-a tentando refutar o espírito que operava nela, mas que foi impedido pelos que pensavam o mesmo que aquela mulher. Menciona também um certo Traseas, um dos mártires de então.
  3. 14.     Diz ainda, como proveniente de uma tradição, que o Salvador ordenou a seus discípulos que não se afastassem de Jerusalém em doze anos; utiliza também testemunhos tirados do Apocalipse de João e refere que o mesmo João ressus­citou um morto com o poder divino em Éfeso; e ainda diz outras coisas mediante as quais corrigiu acertada e completamente o erro da citada heresia. Isto disse Apolônio.

 

XIX

[De Serapion sobre a heresia dos frígios]

  1. 1.             As obras de Apolinário contra a referida heresia são mencionadas por Serapion, que, segundo quer uma tradição, foi bispo da igreja de Antioquia nos tempos a que nos referimos, depois de Maximino. Menciona-o numa carta particular dirigida a Carico e Pôncio, na qual, refutando também ele a mesma heresia, acrescenta o que segue:
  2. 2.             "Mas, para que também saibais que a influência desta enganosa tropa - a chamada nova profecia- é abominada por todos os irmãos do mundo, enviei-vos também uns escritos de Cláudio Apolinário, bispo beatíssimo que foi de Hierápolis da Ásia."
  3. 3.             Na mesma carta de Serapion conservam-se também as assinaturas de diversos bispos, um dos quais assina assim: "Aurélio Cirinio, mártir: rogo que estejais bem"; e outro desta maneira:

"Elio Publio Júlio, bispo de Develto, colônia da Tracia: vive o Deus dos céus, que o bem-aventurado Sotas de Anquialo quis expulsar o demônio de Priscila, e os hipócritas não o deixaram."

4.   Também se conservam na carta aludida as assinaturas autógrafas de muitos outros bispos que estão de acordo com estes. Isto é o que há sobre eles.

 

XX

[O que Irineu discute por escrito com os cismáticos de Roma]

  1. 1.           Contrariamente aos que em Roma falsificavam o são estatuto da Igreja, Irineu compôs várias cartas: uma que intitulou A Blasto, sobre o cisma; outra, A Florino, sobre a monarquia ou que Deus não é o autor dos males, já que, ao que parece, Florino defendia esta opinião, e como também estivesse seduzido pelo erro de Valentim, Irineu compôs outro trabalho, Sobre a Ogdoada, na qual dá a entender que ele mesmo recebeu a primeira sucessão dos apóstolos.
  2. 2.           Perto do final da obra encontramos uma grata indicação sua que necessaria­mente temos que registrar no presente escrito, e que diz desta maneira: "Conjuro-te que copies este livro, por nosso Senhor Jesus Cristo e por sua vinda gloriosa, quando vier julgar os vivos e os mortos, que compares o que transcreves e o corrijas cuidadosamente conforme este exemplar de onde o copiaste. E copiarás igualmente este conjuro e o porás na cópia."
  3. 3.     Advertência útil para quem a fez e para nós, que a referimos, para que tenhamos aqueles antigos e realmente sagrados varões como o melhor exemplo de solicitude diligentíssima.
  4. 4.     Na Carta a Florino de que falamos acima, Irineu novamente menciona sua convivência familiar com Policarpo, dizendo:

"Estas opiniões, Florino, falando com moderação, não são próprias de um pensamento são. Estas opiniões destoam das da Igreja e lançam na maior impiedade aos que as obedecem; estas opiniões nem sequer os hereges que estão fora da Igreja atreveram-se alguma vez a proclamar; estas opiniões não te foram transmitidas pelos presbíteros que nos precederam, os que juntos freqüentaram a companhia dos apóstolos.

  1. 5.            Porque sendo eu ainda criança, te vi na casa de Policarpo na Ásia infe­rior[382], quando tinhas uma brilhante atuação no palácio imperial[383] e te esforçavas para ter crédito perante ele. E recordo-me mais dos fatos de então do que dos recentes.
  2. 6.     (o que se aprende em criança vai crescendo com a alma e vai se tornando um com ela), tanto que posso inclusive dizer o local em que o bem-aven­turado Policarpo dialogava sentado, assim como suas saídas e entradas, seu modo de vida e o aspecto de seu corpo, os discursos que fazia ao povo, como descrevia suas relações com João e com os demais que haviam visto o Senhor e como recordava as palavras de uns e de outros; e o que tinha ouvido deles sobre o Senhor, seus milagres e seu ensinamento; e como Policarpo, depois de tê-lo recebido destas testemunhas oculares da vida do Verbo, relata tudo em consonância com as Escrituras.
  3. 7.            E estas coisas, pela misericórdia que Deus teve para comigo, também eu escutava então diligentemente e as anotava, mas não em papel, mas em meu coração, e pela graça de Deus, sempre as estou ruminando fielmente e posso testemunhar diante de Deus que, se aquele bem-aventurado e apostólico presbítero tivesse escutado algo semelhante, teria lançado um grito, teria tampado os ouvidos e, dizendo como era seu costume: "Deus bondoso! Até que tempos me conservaste, para ter que suportar estas coisas!", teria até fugido do local em que estava sentado ou de pé quando escutou tais palavras.

8.   Isto pode-se também comprovar claramente pelas cartas que escreveu, seja às igrejas vizinhas, confortando-as, seja a alguns irmãos admoestando-os e exortando-os"

isto diz Irineu.

 

XXI

[De como Apolônio morreu mártir em Roma]

1. Por este tempo do reinado de Cômodo, nossa situação mudou para uma maior suavidade. A paz, com ajuda da graça divina, abarcava todas as igrejas de toda a terra habitada. Foi também quando a doutrina salvadora ia pouco a pouco ganhando todas as almas de toda classe de homens para o culto piedoso do Deus de todas as coisas, tanto que inclusive muitos dos que em Roma sobressaíam por sua riqueza e linhagem marchavam ao encontro de sua salvação com toda sua casa e toda sua família.

  1. 2.             Mas o demônio não podia suportar isto, inimigo do bem e invejoso como é por natureza, e em conseqüência preparava-se novamente para o combate enquanto maquinava variados atentados contra nós. Na cidade de Roma conduziu Apolônio ante os tribunais, varão famoso entre os fiéis de então por sua educação e filosofia, e para acusá-lo levantou um ministro seu qualquer, gente apropriada para estas tarefas.
  2. 3.             Mas em má hora o desgraçado introduziu a causa, porque segundo um decreto imperial[384], não se permitia que vivessem os acusadores de tais homens, e na hora foram-lhe quebradas as pernas, pois tal sentença foi formulada contra ele pelo juiz Perennio[385].
  3. 4.      O mártir, por sua parte, amado de Deus, apesar de o juiz rogar-lhe com muita insistência e pedir-lhe que desse razão ante o senado, apresentou diante de todos uma eloqüente apologia da fé pela qual dava testemunho, e morreu decapitado, como por decreto do senado, já que uma antiga lei ordenava entre eles que não se deixasse ir os que comparecessem uma vez ante o tribunal e não mudassem em absoluto de propósito.
  4. 5.      Assim pois, quem deseje ler as palavras de Apolônio ante o juiz e as respostas que deu ao interrogatório de Perennio, assim como sua apologia dirigida ao senado, inteira, poderá vê-lo na relação escrita dos antigos martírios que compilamos.

 

XXII

[Que bispos eram célebres naquele tempo]

1. No décimo ano do reinado de Cômodo, Victor sucede a Eleutério, que havia exercido o episcopado durante treze anos. E pelo mesmo tempo, havendo Juliano cumprido seu décimo ano, Demétrio assume o cargo do minis­tério das comunidades de Alexandria. E também por estas datas era ainda conhecido como bispo da igreja de Antioquia, oitavo a partir dos apóstolos, Serapion, do qual já fizemos menção anteriormente. Cesaréia da Palestina era governada por Teófilo. E também Narciso, que esta obra já mencio­nou acima, ainda então exercia o ministério da igreja de Jerusalém. Já em Corinto, na Grécia, nestas mesmas datas, Baquilo era bispo; e na comunidade de Éfeso, Polícrates. E além destes - pelo menos assim supomos -, nesta época brilharam também muitos outros. Mas, como é natural, enumeramos em lista por seus nomes somente aqueles cuja ortodoxia na fé chegou por escrito até nós.

 

XXIII

[Da questão então movida sobre a Páscoa]

  1. 1.            Por este tempo levantou-se uma questão bastante grave, por certo, porque as igrejas de toda a Ásia, apoiando-se em uma tradição muito antiga, pensavam que era preciso guardar o décimo quarto dia da lua para a festa da Páscoa do Salvador, dia em que os judeus deviam sacrificar o cordeiro e no qual era necessário a todo custo, caindo no dia que fosse na semana, pôr fim aos jejuns, sendo que as igrejas de todo o resto do mundo não tinham por costume realizá-lo deste modo, mas por tradição apostólica, guardavam o costume que prevaleceu até hoje: que não é correto terminar os jejuns em outro dia que não o da ressurreição de nosso Salvador.
  2. 2.     Para tratar deste ponto houve sínodos e reuniões de bispos, e todos unânimes, por meio de cartas, formularam para os fiéis de todas as partes um decreto eclesiástico: que nunca se celebre o mistério da ressurreição do Senhor de entre os mortos em outro dia que não no domingo, e que somente nesse dia guardemos o fim dos jejuns pascais.
  3. 3.            Ainda se conserva até hoje um escrito dos que se reuniram naquela ocasião na Palestina; presidiram-nos Teófilo, bispo da igreja de Cesaréia, e Narciso, da de Jerusalém. Também sobre o mesmo assunto conserva-se outro escrito dos reunidos em Roma, que mostra Victor como bispo; e também outro dos bispos do Ponto presididos por Palmas, que era o mais antigo, e outro das igrejas da Gálía, das quais era bispo Irineu.

4.   Assim como também das de Osroene e demais cidades da região, e em particular de Baquilo, bispo da igreja de Corinto, e de muitos outros, todos os quais, emitindo um único e idêntico juízo, estabelecem a mesma decisão. Estes pois, tinham como regra única de conduta a já exposta.

 

XXIV

[Sobre a dissensão na Ásia]

  1. 1.            Os bispos da Ásia, por outro lado, com Polícrates à frente, seguiam insistindo com força que era necessário guardar o costume primitivo que lhes fora transmitido desde antigamente. Polícrates mesmo, numa carta que dirige a Victor e à igreja de Roma, expõe a tradição chegada até ele com estas palavras:
  2. 2.     "Nós pois, celebramos intacto este dia, sem nada juntar nem tirar. Porque também na Ásia repousam grandes luminárias, que ressuscitarão no dia da vinda do Senhor, quando vier dos céus com glória e em busca de todos os santos: Felipe, um dos doze apóstolos, que repousa em Hierápolis com duas filhas suas, que chegaram virgens à velhice, e outra filha que, depois de viver no Espírito Santo, descansa em Éfeso.
  3. 3.            E também João, o que se recostou sobre o peito do Senhor e que foi sacerdote portador do pétalon, mártir e mestre; este repousa em Éfeso.
  4. 4.            E em Esmirna, Policarpo, bispo e mártir. E Traseas, também ele bispo e mártir, que procede de Eumenia e repousa em Esmirna.
  5. 5.            E que falta faz falar de Sagaris, bispo e mártir, que descansa em Laodicéia, assim como o bem-aventurado Papirio e de Meliton, o eunuco[386], que em tudo viveu no Espírito Santo e repousa em Sardes esperando a visita que vem dos céus no dia em que ressuscitará de entre os mortos?
  6. 6.     Todos estes celebraram como dia da Páscoa o da décima quarta lua, conforme o Evangelho, e não transgrediram, mas seguiam a regra da fé.

E eu mesmo, Polícrates, o menor de todos vós, (faço)[387] conforme a tradição de meus parentes, alguns dos quais segui de perto. Sete parentes meus foram bispos, e eu sou o oitavo, e sempre meus parentes celebraram o dia quando o povo tirava o fermento.

  1. 7.     Portanto, irmãos, eu com mais de sessenta e cinco anos no Senhor, que conversei com irmãos procedentes de todo o mundo e que recorri toda a Sagrada Escritura, não me assusto com os que tratam de impressionar-me, pois os que são maiores do que eu disseram: Importa mais obedecer a Deus do que aos homens."
  2. 8.     Logo acrescenta isto que diz sobre os bispos que estavam com ele quando escrevia e eram da mesma opinião:

"Poderia mencionar os bispos que estão comigo, que vós pedistes que convidasse e que eu convidei. Se escrevesse seus nomes seria demasiado grande seu número. Eles, mesmo conhecendo minha pequenez, deram seu assentimento a minha carta, sabedores de que não é em vão que levo meus cabelos brancos, mas que sempre vivi em Cristo Jesus."

  1. 9.      Ante isto, Victor, que presidia a igreja de Roma, tentou separar em massa da união comum todas as comunidades da Ásia e as igrejas limítrofes, alegando que eram heterodoxas, e publicou uma condenação por meio de cartas proclamando que todos os irmãos daquela região, sem exceção, estavam excomungados.
  2. 10.      Mas esta medida não agradou a todos os bispos, que por sua parte exorta­vam-no a ter em conta a paz e a união e a caridade para com o próximo. Conservam-se inclusive as palavras destes, que repreendem Victor com bastante energia.

11. Entre eles está Irineu, na carta escrita em nome dos irmãos da Gália, dos quais era o chefe. Irineu concorda que é necessário celebrar unicamente no domingo o mistério da ressurreição do Senhor; no entanto, com muito bom senso, exorta Victor a não amputar igrejas de Deus inteiras que haviam observado a tradição de um antigo costume, e a muitas outras coisas[388]. E acrescenta textualmente o que segue:

12. "Efetivamente, a controvérsia não é somente sobre o dia, mas também sobre a própria forma do jejum, porque uns pensam que devem jejuar durante um dia, outros que dois e outros que mais; e outros dão a seu dia uma medida de quarenta horas do dia e da noite.

13. E uma tal diversidade de observantes não se produziu agora, em nossos tempos, mas já muito antes, sob nossos predecessores, cujo forte, segundo parece, não era a exatidão, e que forjaram para a posteridade o costume em sua simplicidade e particularidade. E todos eles nem por isso viveram menos em paz uns com os outros, tanto quanto nós; o desacordo quanto ao jejum confirma o acordo quanto à fé."

14. A isto acrescenta também um relato que será conveniente citar e que diz assim:

"Entre ele, também os presbíteros antecessores de Sotero, que presidiram a igreja que tu reges agora, quero dizer Aniceto, Pio e Higinio, assim como Telesforo e Sixto: nem eles mesmos observaram o dia nem permitiam aos que estavam com eles escolher, e nem por isso eles mesmos, que não obser­vavam o dia, viviam menos em paz com os que procediam das igrejas em que se observava o dia, e ainda assim, observar o dia resultava mais em oposição para os que não o observavam.

15. E nunca se rechaçou ninguém por causa desta forma, antes, os próprios presbíteros, teus antecessores, que não observavam o dia, enviavam a eucaristia[389] aos de outras igrejas que o observavam.

16. E encontrando-se em Roma o bem-aventurado Policarpo nos tempos de Aniceto, surgiram entre os dois pequenas divergências, mas em seguida estavam em paz, sem que sobre este capítulo se querelassem mutuamente, porque nem Aniceto podia convencer Policarpo a não observar o dia -como sempre o havia observado, com João, discípulo de nosso Senhor, e com os demais apóstolos com quem conviveu -, nem tampouco Policarpo convenceu Aniceto a observá-lo, pois este dizia que devia manter o cos­tume dos presbíteros seus antecessores.

17. E apesar de estarem assim as coisas, mutuamente comunicavam entre si, e na igreja Aniceto cedeu a Policarpo a celebração da eucaristia, evidentemente por deferência, e em paz se separaram um do outro; e toda a Igreja tinha paz, tanto os que observavam o dia como os que não o observavam."

18. E Irineu, fazendo honra a seu nome[390], pacificador pelo nome e por seu próprio caráter, fazia estas e semelhantes exortações e servia de embaixador em favor da paz das igrejas, pois tratava por correspondência epistolar ao mesmo tempo, não somente com Victor, mas também com muitos outros chefes de diferentes igrejas, sobre o problema debatido.

 

XXV

[De como houve acordo unânime entre todos sobre a Páscoa][391]

1. Os bispos da Palestina antes mencionados, Narciso e Teófilo, e com eles Cassio, bispo da igreja de Tiro, e Claro da de Ptolemaida[392], assim como os que haviam se reunido com estes, deram detalhadas e abundantes explicações acerca da tradição sobre a Páscoa, vinda até eles por sucessão dos apóstolos, e ao final da carta acrescentam textualmente:

"Procurai que se envie cópia de nossa carta a cada igreja, para que não seja­mos responsáveis pelos que, com grande facilidade, desencaminham suas próprias almas. Manifestamos a vós que em Alexandria celebram precisa­mente o mesmo dia que nós, pois entre eles e nós vêm-se trocando corres­pondência epistolar, de modo que nos é possível celebrar o dia santo em consonância e simultaneamente."

 

XXVI

[Quanto chegou a nós de Irineu]

1. Acontece que além dos escritos e cartas de Irineu já mencionados, conservam-se dele um tratado contra os gregos, curtíssimo e bastante peremptório, intitulado Sobre a ciência, e outro que dedicou a seu irmão, chamado Marciano, Em demonstração da pregação apostólica, assim como um livro de Dissertações variadas, no qual faz menção à Carta aos Hebreus e à chamada Sabedoria de Salomão, citando deles algumas sentenças. E isto é o que chegou a nosso conhecimento dos escritos de Irineu[393]. E tendo Cômodo terminado seu império ao fim de treze anos e depois de Pertinax manter-se depois de Cômodo uns seis meses incompletos, prevalece como imperador Severo.

 

 

 

XXVII

[Quanto chegou dos outros que floresceram naquela época]

1. Muitos, pois, conservam ainda até hoje em grande número documentos do zelo virtuoso dos antigos eclesiásticos de então. Alguns nós mes­mos chegamos a ler, como são os escritos de Heráclito Sobre o Apóstolo, e os de Máximo Sobre o problema da origem do mal, e De como a maté­ria é criada, problema famosíssimo entre os hereges; e também os de Cândido Sobre o Hexameron e os de Apion, sobre o mesmo tema, assim como os de Sexto Sobre a ressurreição; outro tratado de Arabiano e muitos outros, dos quais, por não ter um ponto de referência, não é possí­vel transmitir por escrito a data nem insinuar alguma memória de sua his­tória. Mas chegaram também até nós tratados de muitos outros, dos quais não é possível catalogar os nomes, autores ortodoxos e eclesiásticos, como certamente demonstram as corretas interpretações da Escritura divina. Mesmo assim, são para nós desconhecidos porque não se dá o nome de seus autores.

 

XXVIII

[Dos que acolheram a heresia de Artemon desde o princípio, qual foi seu comportamento e de que modo ousaram corromper as Escrituras]

  1. 1.            Numa obra de algum destes, fruto do trabalho contra a heresia de Artemon - a mesma que em nossos tempos Paulo de Samosata tentou renovar -conserva-se um relato que vem ao caso da história que estamos examinando.
  2. 2.            Deixando entendido que a mencionada heresia afirma que o Salvador não é mais do que um puro homem, e que ela era de invenção recente, ainda que seus introdutores quisessem fazê-la valer como se fosse antiga, o tratado, depois de citar muitos outros argumentos para refutar a mentira blasfema destes, refere textualmente o que segue:
  3. 3.            "Dizem mesmo que todos os primeiros, inclusive os próprios apóstolos, receberam e ensinaram isto que agora eles estão dizendo, e que se conservou a verdade da pregação até os tempos de Victor, que era o décimo terceiro bispo de Roma desde Pedro, mas que, a partir de seu sucessor, Zeferino, falsificou-se a verdade.
  4. 4.            O dito poderia ser convincente se em primeiro lugar as divinas Escrituras não o contradissessem. E também há obras de alguns irmãos anteriores aos tempos de Victor, obras que eles escreveram contra os pagãos e con­tra as heresias de então em defesa da verdade. Refiro-me às de Justino, Milcíades, Taciano, Clemente e muitos outros, todas obras que atribuem a divindade a Cristo.
  5. 5.     Porque, quem desconhece os livros de Irineu, de Meliton e dos restantes, livros que proclamam a Cristo Deus e homem? E os muitos salmos e cânticos escritos desde o princípio por irmãos crentes que cantam hinos ao Verbo de Deus, ao Cristo, atribuindo-lhe a divindade?
  6. 6.      Como pois, estando declarado o pensamento da Igreja desde há tantos anos pode-se admitir que os anteriores a Victor o tenham proclamado no sentido que dizem estes? E como não se envergonham de acusar Victor falsamente de tais coisas, sendo que com toda exatidão sabem que Victor excluiu da comunhão Teodoto o curtidor, líder e pai desta apostasia negadora de Deus, e primeiro a dizer que Cristo foi um simples homem? Porque se Victor tivesse pensado da mesma maneira que ensina a blasfêmia destes, como poderia expulsar Teodoto, inventor desta heresia?"
  7. 7.      Estes são os fatos dos tempos de Victor. Tendo estado ele à frente do ministério por dez anos, é instituído seu sucessor Zeferino, era o nono ano do império de Severo. O mesmo que compôs o supracitado livro sobre o iniciador da mencionada heresia acrescenta também outro assunto ocorrido em tempos de Zeferino e escreve nos seguintes termos:
  8. 8.      "Vou pois, recordar ao menos para muitos de nossos irmãos, o fato ocorrido em nosso tempo, que, por ter acontecido em Sodoma, creio que seguramente teria sido um aviso para aquela gente. Era Natalio um confessor, não dos tempos antigos, mas de nosso próprio tempo.
  9. 9.      Um dia este foi enganado por Asclepiodoto e por outro Teodoto, cambista. Estes dois eram discípulos de Teodoto o curtidor, primeiro que por este pensamento, ou melhor, por esta loucura, foi separado da comunhão por Victor, então bispo, como já disse.

10. Ambos persuadiram Natalio para que por um salário se chamasse bispo desta heresia, de maneira que podia receber deles cento e cinqüenta denários.

11. Estando já com eles, o Senhor o avisou muitas vezes por meio de sonhos, já que nosso Deus misericordioso e Senhor Jesus Cristo não queria que uma testemunha de seus próprios padecimentos saísse da Igreja e perecesse.

12. Mas como não prestasse grande atenção às visões, enganado por aquele primeiro posto entre eles e pela torpe ganância que a tantos perde, finalmente foi açoitado por anjos santos durante toda a noite, pelo que ficou bastante maltratado, tanto que se levantou com a aurora, vestiu-se com um saco, cobriu-se de cinza e com muita diligência e lágrimas correu até o bispo Zeferino, e se atirava aos pés, não apenas do clero, mas também dos laicos. Com suas lágrimas comoveu a Igreja compassiva de Cristo misericordioso e, depois de pedi-lo com reiteradas súplicas e de haver mostrado as contusões que os golpes lhe fizeram, a duras penas foi admitido à comunhão."

13. A isto juntaremos também outras expressões do mesmo escritor sobre os mesmos assuntos, que soam assim:

"Adulteraram sem escrúpulo as divinas Escrituras e violaram a regra da fé primitiva; e desconheceram a Cristo por não investigar o que dizem as divinas Escrituras, em vez de andar trabalhosamente exercitando-se em encontrar uma figura de silogismo para legitimar seu ateísmo. Porque, se alguém lhes apresenta uma sentença da Escritura divina, começam a discorrer que figura de silogismo se pode fazer, se conexo ou disjuntivo.

  1. 14.     Deixaram as Santas Escrituras de Deus e se ocupam de geometria, como quem é da terra; falam por influência da terra e desconhecem o que vem de cima[394]. Pelo menos entre alguns deles estuda-se com afã a geometria de Euclides e se admira Aristóteles e Teofrasto, porque Galeno talvez seja até adorado por alguns.
  2. 15.     Mas os que se aproveitaram das artes dos infiéis para o desígnio de sua própria heresia e com as artes dos ímpios falsificaram a fé simples das divinas Escrituras, que necessidade há de dizer que já não estão perto da fé? Por esta causa puseram suas mãos sem escrúpulo sobre as divinas Escrituras, dizendo que as haviam corrigido[395].
  3. 16.     E quem quiser pode saber que digo isto sem caluniá-los, já que, se alguém quiser reunir as cópias de cada um deles e compará-las entre si, notará que divergem muito. Pelo menos as de Asclepíades[396] destoarão das de Teodoto.
  4. 17.     E podem-se adquirir muitas cópias, porque os discípulos transcreveram com grande zelo as que foram, como dizem eles, corrigidas, isto é, corrompidas por cada um daqueles. Tampouco as de Hermófilo concordam com estas; quanto às de Apoloníades[397], nem sequer concordam entre si mesmas, pois é possível discernir as que eles prepararam primeiro e as que logo depois foram alteradas, e se vê que discordam muito.
  5. 18.     Do atrevimento deste pecado, não é provável que eles o ignorem, porque, ou não crêem que as divinas Escrituras foram ditadas pelo Espírito Santo, e nesse caso são incrédulos, ou então acham que são mais sábios do que o Espírito Santo: e que outra coisa é isto se não estar possuído pelo demônio? Porque não podem negar que o atrevimento é deles mesmos, já que as cópias estão escritas por suas mãos e não receberam as Escrituras nesse estado daqueles que os instruíram, nem poderão mostrar um exemplar de onde tenham copiado as suas.

19. Alguns deles nem sequer trataram de falsificá-las, mas depois de simplesmente negar a lei e os profetas, com o pretexto de um ensinamento iníquo e ímpio, caíram da graça na extrema ruína da perdição." E já basta deste tipo de relatos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Livro VI

 

I

[Da perseguição de Severo]

1. E como também Severo suscitou uma perseguição contra as igrejas, em todas as partes consumaram-se esplêndidos martírios dos atletas da religião, mas multiplicaram-se especialmente em Alexandria. Os atletas de Deus foram enviados para lá, como ao maior estádio, desde o Egito e de toda a Tebaida, e por sua firme paciência em diversos tormentos e gêneros de morte, cingiram-se com as coroas preparadas por Deus. Entre eles achava-se também Leônidas, chamado "o pai de Orígenes"[398], que foi decapitado, e deixou seu filho ainda muito jovem. Não seria demais descrever brevemente com que predileção pela palavra divina viveu o rapaz desde então, já que é muito abundante o que se conta sobre ele entre o povo.

II

[Da educação de Orígenes desde menino]

  1. 1.            Muitas coisas poderia dizer, na verdade, quem tentasse colocar por escrito a seu gosto a vida deste homem, mas dispor ordenadamente o que a ele diz respeito exigiria inclusive uma obra especial[399]. Mesmo assim, nós resumi­remos por enquanto com a brevidade possível a maior parte e exporemos sobre ele somente algumas coisas, tomando dos dados de algumas cartas e do relato dos discípulos que sobreviveram até nossos dias.
  2. 2.            Sobre Orígenes, mesmo os fatos de quando usava fraldas, por assim dizer, parecem-me dignos de menção. Seguia Severo pelo décimo ano de seu reinado, e Leto governava Alexandria e o resto do Egito. O episcopado das igrejas dali acabara de passar a Demétrio, sucedendo a Juliano[400].
  3. 3.            Ao acender-se pois, com a maior violência a fogueira da perseguição e sendo inumeráveis os que se cingiam com a coroa do martírio, tal foi a paixão do martírio que se apoderou da alma de Orígenes, ainda um menino, que ardia para lançar-se de encontro aos perigos e pular e jogar-se à luta.
  4. 4.     Muito pouco faltou, na verdade, para que a morte se aproximasse, não fosse pela divina e celestial providência que, em proveito da grande maioria e por meio de sua mãe, se interpôs como obstáculo ao seu zelo.
  5. 5.            Ela primeiramente rogou-lhe com palavras, exortando-o a ter consideração por suas disposições maternais para com ele, mas quando o viu terrivelmente excitado, todo ele preso pelo desejo do martírio ao saber que seu pai tinha sido preso e encarcerado, escondeu todas suas roupas e assim obrigou-o a permanecer em casa.
  6. 6.            Mas ele, não podendo fazer outra coisa e sendo-lhe impossível dar sossego a um zelo que excedia sua idade, enviou a seu pai uma carta muito estimulante sobre o martírio, na qual o animava dizendo textualmente: "Cuida-te, não aconteça que por nossa causa mudes de parecer." Fique isto consignado por escrito como primeiro indício da agudeza de pensamento do menino Orígenes e de sua nobilíssima disposição para a religião.
  7. 7.            E efetivamente, tendo-se exercitado já desde pequeno nas divinas Escrituras, tinha já lançados não pequenos fundamentos para as doutrinas da fé. Também nestas tinha se ocupado sem medida, pois seu pai, antes do ciclo de estudos comum a todos, fez com que sua preocupação por elas não fosse secundária.
  8. 8.            Em conseqüência, antes de ocupar-se das disciplinas helênicas, em toda ocasião o introduzia a exercitar-se nos estudos sagrados, exigindo-lhe cada dia passagens de memória e relações escritas.
  9. 9.     Estes exercícios não desagradavam o menino, antes até, empenhava-se neles com ardor excessivo, ao ponto de que, não se contentando com os sentidos simples e óbvios das Escrituras Sagradas, já desde então buscava algo mais e investigava visões mais profundas, de forma que chegava a pôr em apuros seu pai perguntando-lhe o que queria significar o sentido da Escritura divinamente inspirada.
    1. 10.     Este aparentava repreendê-lo abertamente, exortando-o a não indagar nada que excedesse sua idade nem mais adiante do sentido evidente, mas no seu íntimo regozijava-se enormemente e proclamava perante Deus, autor de todo bem, seu maior agradecimento por tê-lo feito digno de ser pai de tal filho.
    2. 11.     E conta-se que muitas vezes, pondo-se junto ao menino que dormia, desnudava-lhe o peito como se dentro dele habitasse um espírito divino, beijava-o com referência e se considerava feliz por seu nobre rebento. Estas coisas e outras do mesmo estilo recordam-se sobre a infância de Orígenes.
    3. 12.     Quando seu pai morreu mártir, ele ficou só com sua mãe e seis irmãos menores, quando ainda não contava mais de dezessete anos[401].
    4. 13.     A fazenda paterna foi confiscada pelo tesouro imperial, e ele com os seus encontrou-se em indigência das coisas necessárias para a vida. Mas foi considerado digno da providência divina e encontrou proteção além de tranqüilidade em uma senhora riquíssima em meados da vida e muito distinta, mas que rodeava de atenções um homem muito conhecido, um dos hereges que então havia em Alexandria. Este era antioquenho de origem, e a mencionada senhora tinha-o consigo como filho adotivo e rodeava-o das maiores honras.

14. Mas Orígenes, que por necessidade estava habitualmente com ele, já desde aquela idade dava provas claras de sua ortodoxia na fé, pois ainda que uma multidão incontável, não apenas de hereges, mas também dos nossos, se reunia junto a Paulo (assim se chamava o homem), porque lhes parecia eloqüente, jamais se conseguiu que o acompanhasse na oração, guardando desde menino a regra de Igreja e abominando - como diz textualmente sobre si mesmo em alguma parte - os ensinamentos das heresias. 15. Previamente iniciado por seu pai nas disciplinas dos gregos, depois da morte deste entregou-se por inteiro com maior zelo ao estudo das letras, de forma que, não muito depois da morte do pai, tinha já uma preparação suficiente em conhecimentos gramaticais. Com sua entrega a estes estudos procurava em abundância - para sua idade - o que era necessário[402].

 

III

[De como Orígenes, sendo ainda um rapaz, ensinava a doutrina de Cristo]

  1. 1.            E estando entregue ao ensino - segundo ele mesmo nos informa em algum de seus escritos - e não havendo em Alexandria ninguém dedicado à instrução catequética, pois todos tinham sido expulsos pela ameaça de perseguição[403], alguns gentios acudiram a ele para escutar a palavra de Deus.
  2. 2.            Dá a entender que o primeiro deles foi Plutarco, o qual, depois de uma vida honesta, foi adornado com o martírio divino. O segundo foi Heraclas, irmão de Plutarco, que depois de dar ele mesmo numerosos exemplos de vida filosófica e disciplina, foi considerado digno do episcopado de Alexandria, depois de Demétrio.
  3. 3.            Orígenes ia completar dezoito anos quando foi posto à frente da escola cate­quética, momento em que, sob a perseguição do governador de Alexan­dria Aquila, realizava grandes progressos. Foi então também que seu nome se fez famoso entre todos a quem movia a fé, pela acolhida e solicitude que mostrava para com todos os santos mártires conhecidos e desconhecidos.
  4. 4.            Com efeito, não somente os assistia quando estavam no cárcere e quando eram julgados, até a sentença final, mas também depois desta, quando os santos mártires eram conduzidos à morte, com extrema ousadia e expondo-se aos mesmos perigos. Tanto é que muitas vezes, por aproximar-se resoluta­mente e atrever-se a saudar os mártires com um beijo, faltou pouco para que a plebe de pagãos que estava em redor, enfurecida, o apedrejasse, mas a cada vez, com a ajuda da destra divina, escapou milagrosamente.
  5. 5.     E esta mesma e celestial graça o guardou em outras ocasiões uma e outra vez - impossível dizer quantas - quando se conspirava contra ele devido ao seu excesso de zelo e de ousadia em favor da doutrina de Cristo. A guerra que os infiéis faziam contra ele era tal que se formaram esquadrões e postavam soldados em torno da casa em que se achava, devido à multidão dos que dele recebiam a instrução da fé sagrada.
  6. 6.             Dia a dia a perseguição contra ele se acirrava tanto que em toda a cidade já não havia lugar para ele: mudando de casa em casa, de todos os lugares o expulsavam por causa do grande número dos que por ele se aproximavam do ensinamento divino. E a sua própria conduta prática tinha traços admiráveis de virtude da mais genuína filosofia.
  7. 7.      (Demonstrava pois o ditado, "tal como sua palavra, assim seu caráter, e tal como seu caráter, assim sua palavra".) Esta era sobretudo a causa de que, com a ajuda do poder divino, arrastasse milhares de pessoas a imitá-lo.
  8. 8.             E quando viu que os discípulos acorriam ainda mais numerosos e que ele era o único encarregado pelo chefe da igreja, Demétrio, da escola catequética, considerando que o ensino da gramática era incompatível com o exercício das disciplinas divinas, rompeu sem vacilar com o estudo da gramática como inútil e contrário às ciências divinas.
  9. 9.      Depois, com bom cálculo, para não precisar da ajuda de outros, desfez-se de todas as obras que até então tinha de literatura antiga[404], trabalhadas com muito gosto, e se contentava com os quatro óbolos que diariamente lhe levava aquele que as comprou. Durante muitos anos continuou levando este tipo de vida de filósofo, arrancando de si mesmo tudo que pudesse dar estímulo a suas paixões juvenis, suportando durante todo o dia consideráveis fadigas ascéticas, e à noite consagrando a maior parte do tempo ao estudo das divinas Escrituras. Assim perseverava numa vida a mais filosófica possí­vel, seja em exercícios de jejum, seja reduzindo o tempo de sono, que de qualquer forma, nunca tomava sobre o leito, mas a toda custa sobre o chão.
    1. 10.     Acima de tudo achava que era necessário guardar aquelas sentenças evangélicas do Salvador que exortava a não usar duas túnicas, nem sandálias, e a não consumir-se com as preocupações do amanhã[405].
    2. 11.     E mais, com um ardor superior aos seus anos, mantendo-se firme no frio e na nudez[406] e avançando em direção a uma pobreza extrema, enchia de admiração os que o rodeavam. Também causava pena a muitos, que lhe suplicavam que compartisse de seus bens, pois viam as dificuldades que passava pelo ensinamento divino; mas ele em nada cedia a sua insistência.

12. Conta-se por exemplo que durante muitos anos pisou a terra sem usar calça­do algum; e mais, absteve-se por muitos anos do uso do vinho e de todo outro alimento não necessário, ao ponto de arriscar-se a arruinar e estropear seu peito. 13. Oferecendo tais exemplos de vida filosófica a quantos o contemplavam, era natural que incitasse a maioria de seus discípulos a um zelo semelhante ao seu, tanto que pessoas destacadas, inclusive entre os gentios infiéis e dos que procediam da ilustração e da filosofia[407], pouco a pouco se submetiam ao ensinamento que ele dava, e tão sinceramente receberam dele no fun­do de suas almas a fé na palavra divina, que também eles sobressaíram no momento de perseguição de então, de forma que alguns inclusive foram detidos e acabaram no martírio.

 

IV

[Quantos dos instruídos por Orígenes foram elevados à categoria de már­tires]

  1. 1.            O primeiro destes, pois, foi Plutarco, mencionado pouco acima. Quando este era conduzido à morte, novamente faltou pouco para que aquele de quem estamos falando e que o assistia até o último instante de sua vida fosse linchado ali mesmo pelos cidadãos, como culpado evidente daquela morte. Mas também então a vontade de Deus continuava guardando-o.
  2. 2.            Depois de Plutarco, o segundo dos discípulos de Orígenes a assinalar-se como mártir é Sereno, que por meio do fogo deu prova da fé que havia recebido.
  3. 3.            O terceiro mártir da mesma escola foi Heráclides, e depois dele, o quarto, Heron; aquele ainda era catecúmeno, este neófito; ambos foram decapitados. Todavia, além destes, da mesma escola houve outro Sereno, distinto do primeiro, quinto a proclamar-se atleta da religião, de quem diz a tradição que, depois de suportar muitos tormentos, foi decapitado. E entre as mulheres também Herais, ainda catecúmena, terminou a vida "após receber - como diz ele mesmo em alguma parte - o batismo de fogo".

 

V

[De Potamiena]

1. Entre eles conta-se como sétimo Basílides, o que conduziu a famosíssima Potamiena a sua execução. Muita coisa se conta ainda hoje sobre ela entre seus compatriotas. Depois de sustentar mil combates contra homens dissolutos em defesa da pureza de seu corpo e de sua virgindade que a distinguiam (pois assim como a força de sua alma, também a beleza de seu corpo estava em plena floração) e depois de suportar inúmeros tormentos, por fim, depois de torturas terríveis e que fazem estremecer só em nomeá-las, morreu ardendo viva juntamente com sua mãe, Marcela.

  1. 2.             Conta-se que o juiz, cujo nome era Aquila, depois de fazê-la atormentar cruelmente por todo o corpo, finalmente ameaçou entregá-la aos gladia­dores para ultraje de seu corpo, mas ela, depois de refletir ensimesmada por breves instantes, ao ser questionada sobre o que decidia, deu tal resposta, que aos ouvidos daqueles parecia soar como algo ímpio.
  2. 3.             Ainda falava quando recebeu os termos de sua sentença. Basílides, um dos funcionários militares, tomou-a e a conduziu para sua execução. Como a turba tentava molestá-la com palavras indecentes, ele rechaçava e afugentava os insolentes e mostrava para com ela a maior compaixão e humanidade. Ela, por sua parte, aceitando a simpatia de que era alvo, exortava aquele homem a ter valor, pois ela pediria a seu próprio Senhor nada mais que partir e em breve poderia corresponder ao que ele havia feito por ela.
  3. 4.      Dito isto, enfrentou com nobreza seu fim enquanto derramavam o piche fervente sobre ela lenta e paulatinamente pelos diversos membros de seu corpo, desde a planta dos pés até o topo da cabeça.
  4. 5.             E assim foi o combate travado por esta jovem digna de louvor. Não muito depois, Basílides, tendo seus companheiros de milícia exigido juramento por algum motivo, afirmou que de modo algum poderia jurar[408], porque era cristão e o proclamava publicamente. A princípio, durante algum tempo, pensavam que gracejava, mas como ele insistisse obstinadamente, conduziram-no ao juiz; e também perante este proclamou sua resistência e foi lançado à prisão.
  5. 6.      Quando seus irmãos em Deus chegaram-se a ele e trataram de informar-se sobre a causa desta repentina e maravilhosa decisão, conta-se que disse que Potamiena tinha lhe aparecido durante a noite, três dias depois de seu martírio, cingira-lhe a cabeça com uma coroa e lhe havia dito que pedira ao Senhor graça por ele, que havia obtido o pedido e que não tardando muito o tomaria consigo. Ante isto os irmãos aplicaram-lhe o selo do Senhor[409], e no dia seguinte, depois de brilhar no testemunho do Senhor, foi decapitado.
  6. 7.      Conta-se mesmo que, pelas datas mencionadas, muitos outros cidadãos de Alexandria se acercavam em massa à doutrina de Cristo, porque em sonhos lhes aparecera Potamiena, segundo diziam, e os convidara a isto. Mas baste já com isto.

 

 

 

 

 

 

 

VI

[De Clemente de Alexandria]

1. Tendo sucedido a Panteno, Clemente vinha regendo a catequese de Ale­xandria até aquele mesmo tempo, de maneira que também Orígenes foi

 

 

um de seus discípulos. Pelo menos Clemente, ao apresentar o material de seus Stromateis, no livro primeiro, expõe um quadro cronológico assi­nalando como limite a morte de Cômodo, com o que fica claro que com­pôs esta obra em tempos de Severo, cuja época se descreve na presente história.

 

VII

[Do escritor Judas]

1. Neste mesmo tempo, outro escritor, Judas, comentando por escrito as setenta semanas de Daniel[410], detêm também sua cronologia no décimo ano do Severo. Também cria que a tão decantada aparição do anticristo estava já então se aproximando. A tal ponto a violência daquela perseguição contra nós transtornava as mentes da maioria!

 

VIII

[Da façanha de Orígenes]

  1. 1.            Neste tempo, estando ocupado no trabalho da catequese em Alexandria, Orígenes leva a cabo uma façanha que, se demonstra um ânimo imatu­ro e juvenil, oferece ao mesmo tempo uma prova plena de fé e de conti­nência.
  2. 2.            Efetivamente, tomando muito ao pé da letra com ânimo bastante juvenil a frase: Há eunucos que se castraram a si mesmos pelo reino dos céus[411]e pensando, por um lado, cumprir assim a palavra do Salvador, e por outro, com o fim de evitar entre os infiéis toda suspeita e calúnia vergonho­sa, já que sendo tão jovem, tratava das coisas de Deus não apenas com homens, mas também com mulheres, decidiu-se a concretizar a palavra do Salvador, cuidando para que passasse despercebido para a maioria de seus discípulos.
  3. 3.     Mas não lhe era possível, mesmo querendo-o, ocultar semelhante façanha, e assim mais tarde soube-o Demétrio, como presidente daquela igreja. Muito se admirou por aquela façanha, e aceitando o zelo e a sinceridade de sua fé, exortava-o a ter ânimo e o estimulava a empenhar-se agora com mais força na obra da catequese.
  4. 4.     Tal era então a atitude de Demétrio. Mas não muito tempo depois, vendo o êxito de Orígenes, sua grandeza, seu brilho e sua fama universal, foi vítima de paixão humana e tratou de descrever aos bispos de todo o mundo aquela façanha como sendo totalmente absurda, quando os bispos mais experientes e mais ilustres da Palestina, a saber, os de Cesaréia e Jerusalém, considerando Orígenes digno de privilégio e da mais alta honra, impuseram-lhe as mãos para ordená-lo presbítero.
  5. 5.             Assim pois, no mesmo momento em que Orígenes havia alcançado uma grande glória e havia conquistado em todas as partes e entre todos os homens considerável renome e fama de virtude e sabedoria, Demétrio, não tendo nenhum ouro motivo de acusação, armou um escândalo tre­mendo por aquela ação que Orígenes havia cometido sendo um menino e se atreveu a envolver em suas acusações os que o haviam promovido aos presbiterato.
  6. 6.             Isto ocorreu, em realidade, pouco tempo depois. Por este tempo, no entan­to, Orígenes estava entregue em Alexandria ao ensino divino para todos os que acudiam a ele, sem reservas, à noite e inclusive de dia, dedicando sem vacilação todo seu tempo às ciências divinas e aos discípulos que o freqüen­tavam.
  7. 7.             Depois de exercer o império durante dezoito anos, Severo é sucedido por seu filho Antonino[412]. Neste tempo, um dos que se portaram virilmente na perseguição e, depois dos combates de sua confissão, foram preservados pela providência divina, foi um tal Alexandre, mencionado a pouco como bispo da igreja de Jerusalém; por ter-se distinguido em sua confissão por Cristo foi considerado digno do mencionado episcopado, ainda que Narciso, seu predecessor, ainda estivesse vivo.

 

IX

[Dos milagres de Narciso]

  1. 1.            Muitos, pois, e diversos são os milagres que os cidadãos daquela igreja recordam de Narciso, transmitidos por tradição dos irmãos que se sucederam. Entre eles relatam também o seguinte prodígio realizado por ele.
  2. 2.            Dizem que uma vez, durante a grande vigília de Páscoa, faltou o azeite aos diáconos, devido a isso apoderou-se da multidão um grande desânimo. Narciso mandou então aos que preparavam as luzes que pegassem água e a levassem a ele.
  3. 3.     Feito isto, orou sobre a água e com toda a sinceridade de sua fé no Senhor ordenou que a derramassem nas lâmpadas. Feito também isto, por um poder maravilhoso e divino e contra toda razão, a natureza da água mudou sua qualidade para a do azeite, e muitos dos irmãos que ali estavam conservaram por longo tempo, desde então até nossos dias, um pouco daquele azeite como prova do milagre de então.
  4. 4.      Muitas outras coisas dignas de menção contam-se sobre a vida deste homem, entre elas também a seguinte. Uns pobres homenzinhos, incapazes de supor­tar o vigor daquele e a constância de sua vida, temerosos de serem presos e submetidos a castigo, pois eram conscientes de seus inúmeros delitos, toma­ram a dianteira e tramaram e espalharam uma calúnia terrível contra ele.
  5. 5.             Assim, com o fim de assegurar-se da confiança dos ouvintes, confirmaram com juramento suas acusações: um jurava para que o fogo o destruísse; outro para que uma enfermidade funesta consumisse seu corpo, e um terceiro, para que seus olhos cegassem. Mas nem assim, nem mesmo jurando, um só fiel prestou-lhes atenção, pela temperança de Narciso, que sempre brilhou ante todos e por sua conduta virtuosa em tudo.
  6. 6.             Ele, no entanto, não conseguindo relevar de forma alguma a maldade destas calúnias, e por outro lado, estando há muito tempo em busca de uma vida filosófica, fugiu da multidão inteira da igreja e passou muitos anos oculto em regiões desertas e recônditas.
  7. 7.      Mas o grande olho da justiça tampouco permaneceu quieto ante tais abusos, mas a toda pressa começou a perseguição daqueles ímpios com as mesmas desgraças com que se haviam ligado perjurando contra si mesmos, pois o primeiro, sem nenhum motivo, simplesmente assim, tendo caído uma fagulha na casa em que morava, incendiando-a completamente à noite, morreu abrasado com toda a família; o outro se viu de repente com o corpo, desde a planta dos pés até a cabeça, cheio daquela enfermidade com que ele mesmo se castigou de antemão;
  8. 8.             e o terceiro, assim que viu o fim dos primeiros, tremendo ante a inelutável justiça de Deus que tudo vê, fez confissão pública do que os três haviam tramado em comum. Em seu arrependimento, consumia-se de tanto gemer e não cessava de chorar, tanto que chegou a perder os dois olhos. Tais foram os castigos que sofreram estes por suas mentiras.

 

X

[Dos bispos de Jerusalém]

1. Tendo-se retirado Narciso e não sabendo ninguém onde poderia achar-se, os bispos que presidiam as igrejas limítrofes resolveram impor as mãos a um novo bispo. Este se chamava Díos. Depois de presidir não muito tempo, sucedeu-o Germanion, e a este, Górdio, sob o qual reapareceu Narciso, de alguma parte, como um ressuscitado. Os irmãos chamaram-no novamente para ocupar a presidência. Todos se admiraram ainda mais, por causa de seu retiro, de sua filosofia, e sobretudo pela vingança que Deus tinha opera­do em seu favor.

 

 

 

XI

[De Alexandre]

  1. 1.            Como Narciso já não estivesse em condições de exercer o ministério por causa de sua extrema velhice, a providência de Deus chamou o mencionado Alexandre, que era bispo de outra igreja, para exercer as funções episco­pais junto com Narciso, conforme uma revelação que este teve em sonhos à noite.
  2. 2.            Ocorreu pois que Alexandre, como obedecendo a um oráculo, empreendeu uma viagem desde a Capadócia, onde pela primeira vez foi investido do episcopado, a Jerusalém, por motivos de oração e de estudo dos lugares. O povo dali o recebeu com os melhores sentimentos e já não lhe permitiram regressar a seu país, conforme outra revelação que também eles haviam tido durante a noite e segundo uma voz que se fez ouvir claríssima aos mais zelosos dentre eles, pois lhes indicava que saíssem para fora das portas da cidade e recebessem o bispo que Deus lhes havia predestinado. Depois de assim fazer, com o parecer comum dos bispos que regiam as igrejas circundantes, obrigaram Alexandre a permanecer ali forçosamente.
  3. 3.            O próprio Alexandre, em carta privada aos antinoítas[413], que ainda se con­serva entre nós, menciona o episcopado de Narciso, compartilhado com ele, quando escreve textualmente ao final da carta:

"Saúda-vos Narciso, o que regeu antes de mim a sede episcopal daqui, e agora, aos cento e dezesseis anos completos, ocupa seu lugar junto a mim nas orações e exorta-vos, assim como eu, a ter um mesmo sentimento."

4.   Assim ocorreram estas coisas. Na igreja de Antioquia, ao morrer Serapion, o episcopado passou em sucessão a Asclepíades, que também fora destacado por sua confissão no tempo da perseguição.

5.    Alexandre menciona também a instituição deste quando escreve assim aos antioquenhos:

"Alexandre, servo e prisioneiro de Jesus Cristo, à bem-aventurada igreja de Antioquia: saúde no Senhor. O Senhor me fez suportáveis e leves as corren­tes quando no tempo de meu encarceramento soube que, por providência divina, se havia confiado o episcopado de vossa santa igreja de Antioquia a Asclepíades, o mais indicado por seu merecimento."

6.    Alexandre faz saber que esta carta foi enviada por meio de Clemente; ao final escreve como segue:

"Esta carta, queridos irmãos meus, envio-a pelo bem-aventurado presbítero Clemente, varão virtuoso e probo, a quem vós já conheceis e a quem também aprovareis. Em sua estada aqui, conforme a providência e super­visão do Dono, consolidou e fortaleceu a Igreja do Senhor."

 

XII

[De Serapion e das obras que dele se conservam]

  1. 1.            Quanto ao fruto do afã literário de Serapion, é natural que se hajam conservado também outras obras entre outras pessoas, mas a nós não chegaram mais do que estas: A Domno, um que no tempo da perseguição havia caído da fé de Cristo para dar na superstição judia; e A Poncio e Carico, varões eclesiásticos ambos, e outras cartas a outras pessoas;
  2. 2.            e outro tratado que compôs Acerca do chamado Evangelho de Pedro[414]; escreveu-o refutando as falsidades que neste se dizem, por causa de alguns da igreja de Rosos que, com o pretexto da dita Escritura, haviam-se desviado para ensinamentos heterodoxos. Será bom oferecer deste livro algumas sentenças nas quais apresenta sua opinião sobre aquele livro; escreve assim:
  3. 3.            "Porque também nós, irmãos, aceitamos Pedro e os demais apóstolos como a Cristo[415], mas como homens de experiência que somos, rechaçamos os falsos escritos que levam seus nomes, pois sabemos que não nos transmitiram semelhantes escritos.
  4. 4.            Porque eu mesmo, achando-me entre vós, supunha que todos vos ativésseis à fé reta, e sem ter lido o Evangelho que eles me apresentavam com o nome de Pedro, disse: 'se é apenas isto que parece preocupar-vos, que se leia'. Mas agora que me inteirei, pelo que me disseram, de que seu pensamento se ocultava em certa heresia, terei pressa para estar novamente entre vós; de maneira que, irmãos, esperai-me em breve.
  5. 5.     Quanto a nós, irmãos, compreendemos a que heresia pertencia Marciano, o qual se contradizia e não sabia o que falava (isto aprendereis pelo que vos escrevi).
  6. 6.            Efetivamente, graças a outros que praticaram este mesmo Evangelho, ou seja, graças aos sucessores dos que o iniciaram, aos quais chamaremos docetas (porque a maior parte de seu pensamento pertence a este ensino), por terem-no emprestado eles, pudemos lê-lo cuidadosamente, e achamos a maior parte conforme a reta doutrina do Salvador, mas também algumas coisas que se distinguem e que vos submetemos." Isto sobre Serapion.

 

XIII

[Das obras de Clemente]

1. De Clemente, por outro lado, conservaram-se entre nós os Stromateis, os oito livros inteiros, aos quais se dignou intitular: De Tito Flávio Clemente, Stromateis das Memórias gnósticas segundo a verdadeira filosofia.

  1. 2.            De igual número que estes são seus livros intitulados Hypotyposeis[416], nos quais menciona expressamente Panteno como seu mestre e expõe suas interpretações das Escrituras e suas tradições.
  2. 3.            Há também de Clemente um Discurso aos gregos, O Protréptico, e três livros da obra intitulada O Pedagogo; outro tratado seu, o assim chamado Quem é o rico que se salva?, e o tratado Sobre a Páscoa; e tratados Sobre o jejum e Sobre a maledicência, assim como a Exortação à paciência ou Aos recém-batizados, e o intitulado Cânon eclesiástico ou Contra os judaizantes, que ele dedicou ao mencionado bispo Alexandre.
  3. 4.            Agora bem, nos Stromateis fabricou-se uma tapeçaria de citações não somente da divina Escritura, mas também das obras dos gregos, sempre que lhe parecia que também eles haviam dito algo aproveitável. E menciona as opiniões do povo, enquanto explica as dos gregos e as dos bárbaros;
  4. 5.            e além disso emenda as falsas opiniões dos heresiarcas, desdobra uma grande informação e nos proporciona a base de uma sábia e variada instrução. Com tudo isto mistura também as opiniões dos filósofos, de onde provavel­mente se originou que inclusive o título dos Stromateis se ajustasse ao tema.
  5. 6.            Nos mesmos livros faz também uso de testemunhos tomados das Escrituras discutidas: das chamadas Sabedoria de Salomão e Sabedoria de Jesus (filho) de Sirac; da Carta aos Hebreus, das Cartas de Barnabé, de Clemente e de Judas;
    1. 7.             e menciona o discurso de Taciano Contra os gregos e também a Cassiano por haver composto uma Cronografia, e também os escritores judeus Fílon, Aristóbulo, Josefo, Demétrio e Eupolemo, por todos eles haverem demons­trado em seus escritos que Moisés e o povo judeu eram mais antigos do que as origens dos gregos.
    2. 8.             De muitos outros ensinamentos úteis estão cheias as mencionadas obras deste homem. Na primeira delas declara sobre si mesmo que está muito próximo da sucessão dos apóstolos, e nela promete escrever também um comentário do Gênesis.
    3. 9.      E em seu tratado Sobre a Páscoa confessa que foi compelido por seus companheiros a colocar por escrito, em proveito dos que viessem depois, as tradições que ele teve a sorte de ouvir da boca dos antigos presbíteros, e menciona Meliton, Irineu e alguns outros, dos quais inclusive cita passagens.

 

 

 

 

XIV

[De quantas escrituras Clemente faz menção]

1. Nas Hypotyposeis, para resumir, Clemente dá algumas explicações precisas da Escritura testamentária inteira, sem omitir os escritos discutidos, quero dizer, a Carta de Judas e as demais Cartas católicas, assim como a Carta de Barnabé e o chamado Apocalipse de Pedro.

  1. 2.             Diz também que a Carta aos Hebreus é certamente de Paulo, mas que foi escrita em língua hebraica para os hebreus, sendo que Lucas a traduziu cuidadosamente e a editou para os gregos; daí que se encontre o mesmo colorido no estilo desta carta e nos Atos.
  2. 3.             E acrescenta que é natural que a expressão "Paulo apóstolo" não esteja escrita no cabeçalho,

"porque - diz - como escrevia aos hebreus, que tinham prevenção contra ele e dele suspeitavam, com absoluta prudência não quis espantá-los já no início pondo seu nome".

4.   E um pouco abaixo acrescenta:

"Pois bem, como dizia o bem-aventurado presbítero, posto que o Senhor, apóstolo do Todo-Poderoso, foi enviado aos hebreus, Paulo, que o havia sido dos gentios, por modéstia não se intitulou apóstolo dos hebreus, e ao mesmo tempo por deferência para com o Senhor e porque, apesar de ser arauto e apóstolo dos gentios, escreve em anexo também uma carta aos hebreus."

  1. 5.             Nos mesmos livros Clemente ainda inseriu, sobre a ordem dos Evangelhos, uma tradição recebida dos antigos presbíteros, que é como segue. Dizia que dos Evangelhos escreveram-se primeiro os que contêm as genea­logias[417];
  2. 6.      que o Evangelho de Marcos teve a seguinte origem: estando Pedro em Roma pregando publicamente a doutrina e explicando o Evangelho pelo Espírito, os que estavam presentes – e eram muitos - exortaram Marcos, já que este o seguia há muito tempo e recordava-se do que havia dito, a que o pusesse por escrito. Depois que o fez distribuiu o Evangelho a todos que o pediam.
    1. 7.             Ao saber Pedro disto, não o impediu nem o estimulou. Quanto a João, o último, sabendo que o corpóreo já estava exposto nos Evangelhos, estimulado por seus discípulos e inspirado pelo sopro divino do Espírito, compôs um Evangelho espiritual. Isto refere Clemente.
    2. 8.             E novamente o supracitado Alexandre, em certa carta a Orígenes, faz por sua vez menção a Clemente e a Panteno como a homens conhecidos seus. Escreve assim:

"Porque também isto foi - como sabes - vontade de Deus, que a amizade que provinha de nossos pais[418] permanecesse inviolável; e mais, que fosse mais quente e mais firme;

9.   "efetivamente, reconhecemos como pais aqueles bem-aventurados que nos precederam no caminho e com os quais estaremos dentro em pouco: Panteno, o verdadeiramente bem-aventurado e senhor, e o santo Clemente, que foi meu senhor e me ajudou, e algum outro, se o há. Por meio deles conheci a ti, que em tudo és o melhor e senhor e irmão meu".

E assim estão as coisas.

  1. 10.      Quanto a Adamancio (pois também este nome tinha Orígenes)[419], ele mesmo escreve em alguma parte que residiu em Roma no tempo em que Zeferino estava à frente da igreja dos romanos. Diz: "Desejando ver a antiquíssima igreja dos romanos..." Depois de passar ali muito pouco tempo,
  2. 11.      regressou a Alexandria, e ali continuava com toda sua diligência as tarefas costumeiras de instrução catequética. Demétrio, bispo do lugar, então ainda o animava e quase suplicava que fosse diligente em dar proveito a seus irmãos.

 

XV

[De Heraclas]

1. Mas quando Orígenes viu que ele sozinho não se bastava para um estudo mais profundo dos mistérios divinos, para a investigação e interpretação das Sagradas Escrituras e, além disso, para a instrução catequética dos que dele se acercavam e que nem lhe deixavam respirar, acorrendo à escola uns após outros desde a aurora até o anoitecer, dividiu as multidões, escolheu entre seus discípulos Heraclas[420], varão zeloso nas coisas de Deus, e também muito erudito e não desprovido de filosofia, e o constituiu seu sócio na instrução catequética. E encarregou-o da primeira iniciação dos recém-admitidos, reservando para si a instrução dos já experientes.

 

XVI

[De como Orígenes havia se ocupado com afã das divinas Escrituras]

1. E tão cuidadosa era a investigação que Orígenes fazia das palavras divinas, que até aprendeu a língua hebraica, comprou as Escrituras originais, conservadas entre os judeus com os próprios caracteres hebreus, e seguiu a pista das edições de outros tradutores das Sagradas Escrituras, além dos Setenta. Além das traduções trilhadas e alternantes[421] de Aquila, de Simaco e de Teodocio, descobriu outras que, após seguir-lhes o rastro, tirou à luz, não sei de que esconderijos, onde se ocultavam desde antigamente.

  1. 2.            A respeito destas, por sua obscuridade e por não saber de quem eram, indicou somente o seguinte: a saber, que uma foi encontrada em Nicópolis, perto de Accio, e a outra em outro lugar parecido.
  2. 3.            Nas Hexaplas dos Salmos, ao menos, depois das quatro edições conhecidas, não somente pôs uma quinta tradução, mas também uma sexta e uma sétima; sobre uma delas está indicado que foi encontrada em Jericó, dentro de um jarro, em tempos de Antonino, o filho de Severo.
  3. 4.     Todas estas traduções ele reuniu em um só corpo, dividiu-as em membros de frase e as colocou umas frente às outras, junto com o próprio texto hebreu, deixando assim a cópia das chamadas Hexaplas[422]. Aparte, preparou a edi­ção de Aquila, Simaco e Teodocio, junto com a dos Setenta, nas Tetraplas.

 

XVII

[Do tradutor Simaco]

1. Pelo que toca a estes mesmos tradutores, deve-se saber que Simaco foi ebionita. A heresia, assim chamada dos ebionitas, é a dos que afirmam que Cristo nasceu de José e de Maria, crêem que foi puramente homem e insistem em que é necessário guardar a lei mais ao modo judeu, segundo o que já sabemos pelo referido anteriormente. E ainda hoje se conservam Comentários de Simaco, nos quais parece querer confirmar a mencionada heresia, explicando-se longamente à custa do Evangelho de Mateus. Orígenes declara que estes escritos, junto com outras interpretações de Simaco sobre as Escrituras, recebeu-os de uma tal Juliana, que por sua vez diz ter herdado os livros do próprio Simaco.

 

XVIII

[De Ambrósio]

  1. 1.            Por esta época também Ambrósio, que tinha as opiniões da heresia de Valentim, convencido pela verdade apresentada por Orígenes e como se uma luz tivesse iluminado sua mente, deu seu assentimento à doutrina da ortodoxia eclesiástica.
  2. 2.            E muitas outras pessoas instruídas, quando se estendeu a fama de Orígenes por todas as partes, acudiam também a ele para experimentar a perícia deste homem nas doutrinas sagradas. E milhares de hereges e não poucos filósofos dos mais ilustres aderiam a ele com afã, e ele os instruía não somente nas coisas divinas, mas inclusive na filosofia de fora.
  3. 3.             De fato, àqueles que via naturalmente bem dotados iniciava nos conheci­mentos filosóficos, dando-lhes geometria, aritmética e as outras disciplinas preliminares, guiando-os pelas seitas existentes entre os filósofos, explicando minuciosamente as obras destes e comentando e examinando cada um; de modo que, inclusive entre os gregos proclamavam-no como grande filósofo.
  4. 4.      E a muitos, inclusive entre os menos preparados, iniciava nas disciplinas cíclicas, declarando que através delas teriam não pequena capacitação para o exame e preparação das divinas Escrituras; daí que considerasse neces­sário, sobretudo para si mesmo, o exercício nas disciplinas mundanas e nas filosóficas.

 

XIX

[Quantas coisas se mencionam sobre Orígenes]

  1. 1.            Outras testemunhas de seu êxito nestes estudos são, dentre os próprios gregos, aqueles filósofos que floresceram em seu tempo e em cujas obras encontramos mencionado este homem muitas vezes, umas porque lhe dedicaram suas próprias obras, e outras porque submetem-lhe o fruto de seus próprios trabalhos, como a um mestre, para que os julgasse.
  2. 2.     Mas, que necessidade há de dizer isto quando o próprio Porfírio, nosso contemporâneo, estabelecido na Sicília, compôs umas obras contra nós[423], tentando com elas caluniar as Sagradas Escrituras e menciona os que as interpretaram? Não podendo de forma alguma levantar a menor acusação por conta de nossas doutrinas e à falta de razões, volta-se contra os próprios intérpretes para injuriá-los e caluniá-los, e mais especialmente a Orígenes.
  3. 3.            Sobre este diz que o conheceu na primeira juventude e trata de caluniá-lo. No entanto, o que realmente faz é recomendá-lo sem saber, seja dizendo a verdade ali onde não lhe era possível dizer outra coisa, seja mentindo no que pensava que passaria despercebido, e então, algumas vezes o acusa de cristão, e outras descreve sua entrega às ciências filosóficas.
  4. 4.     Ouve pois o que diz textualmente:

"Alguns, em seu afã de encontrar, não o abandono, mas uma explicação da perversidade das Escrituras judaicas, entregaram-se a umas interpretações que são incompatíveis e estão em desacordo com o escrito, pelo que ofere­cem, mais do que uma apologia em favor do estranho, a aceitação e louvor do mesmo. Efetivamente, as coisas que em Moisés estão ditas com claridade, eles alardeiam que são enigmas e lhes dão um ar divino, como de oráculos cheios de ocultos mistérios, e depois de enfeitiçar com o fumo de seu orgulho a faculdade crítica da alma, levam a cabo suas interpretações."

5.   Depois de mais algumas coisas, diz:

"Mas este gênero de absurdo eles receberam daquele varão com quem eu também tratei sendo ainda muito jovem, que teve enorme reputação e que ainda a tem pelos escritos que deixou, de Orígenes, digo, cuja glória se espalhou amplamente entre os mestres daquelas doutrinas.

  1. 6.      Efetivamente, tendo sido ouvinte de Ammonio, que em nosso tempo foi o que mais progrediu em filosofia, chegou a adquirir de seu mestre um grande aproveitamento para o domínio das ciências, mas no que tange à reta orienta­ção da vida empreendeu um caminho contrário ao de Ammonio.
  2. 7.             De fato, Ammonio era cristão e seus pais o educaram nas doutrinas cristãs, mas quando entrou em contato com o pensar e a filosofia, imediatamente converteu-se a um gênero de vida conforme as leis. Orígenes, por outro lado, grego e educado nas doutrinas gregas, veio a dar na temeridade própria dos bárbaros. Entregando-se a ela corrompeu-se e corrompeu seu domínio das ciências. Quanto a sua vida, vivia como cristão e contra as leis. Quanto a suas opiniões sobre as coisas e sobre a divindade, pensava como grego e introduzia o grego nas fábulas estrangeiras.
  3. 8.             Porque ele vivia em trato contínuo com Platão e freqüentava as obras de Numenio, de Cronio, de Apolofanes, de Longino, de Moderato, de Nicomaco e dos outros autores mais conspícuos dos pitagóricos. Também usava os livros do estóico Queremon e de Comuto. Por eles conheceu a interpreta­ção alegórica dos mistérios dos gregos e a acomodou às Escrituras judias."
  4. 9.             Isto diz Porfírio no livro terceiro dos que escreveu Contra os cristãos. Diz a verdade no que tange à educação e à múltipla sabedoria de Orígenes, mas mente claramente (por que não haveria de fazê-lo o adversário dos cristãos?) ao afirmar que este se converteu das doutrinas gregas, enquanto que Ammonio caiu num gênero de vida gentio a partir de uma vida conforme a religião.
    1. 10.         Efetivamente, Orígenes conservou vivos os ensinamentos cristãos que vinham de seus pais, como é demonstrado pelas passagens precedentes desta história, e Ammonio manteve com firmeza puros e inatacáveis, inclusive até o fim de sua vida, os princípios da filosofia inspirada, como é atestado de certa forma até hoje pelos trabalhos deste homem, famoso entre a maioria pelos escritos que deixou, como por exemplo o intitulado Da harmonia entre Moisés e Jesus, e todos os outros que se encontram em poder dos amantes do saber.
    2. 11.         O que vimos dizendo fica pois como prova da calúnia deste mentiroso, e ao mesmo tempo do múltiplo saber de Orígenes nas ciências dos gregos, sabe­mos do que ele mesmo escreve numa carta defendendo-se contra alguns que o acusavam de seu zelo por aquelas ciências:
    3. 12.   "Mas como eu me entregasse à doutrina, e a fama de nossa capacidade ia-se espalhando, e se aproximavam de mim ora hereges, ora os que provinham das ciências gregas, sobretudo os filósofos, determinei-me a examinar as opiniões dos hereges e o que proclamam os filósofos acerca da verdade.
    4. 13.     Isto fizemos imitando Panteno, aquele varão que antes de nós ajudou a tantos e que possuía não pequena preparação naquelas ciências, e também a Heraclas, que agora ocupa um posto no presbitério de Alexandria e a quem encontrei junto ao mestre das disciplinas filosóficas, com o qual ele já tinha permanecido cinco anos, antes que eu começasse a ouvir suas lições.

14. Por causa do mestre despojou-se da roupa corrente que antes usava e adotou o uniforme dos filósofos[424], que ainda conserva até hoje, e não cessa de estudar nos livros dos gregos tudo o que pode."

Isto é o que diz Orígenes em defesa de seu exercício na literatura grega.

15. Neste tempo, vivendo ele em Alexandria, apresentou-se-lhe um soldado que entregou umas cartas a Demétrio, o bispo da comunidade, e ao gover­nador do Egito de então, de parte do governador da Arábia, com o fim de que a toda pressa enviassem Orígenes para que se entrevistasse com ele. E Orígenes chegou à Arábia. Mas não muito depois, cumprido o objetivo de sua ida, regressou outra vez a Alexandria.

16. Entretanto deu-se novamente na cidade uma não pequena guerra[425], e Orígenes, saindo ocultamente de Alexandria, foi à Palestina e residiu em Cesaréia. Aqui os bispos lhe pediram que desse conferências e interpretasse as divinas Escrituras publicamente na igreja, apesar de que ainda não havia recebido a ordenação de presbítero.

  1. 17.     Que isto foi assim declaram as palavras de Alexandre, o bispo de Jerusalém, e Teoctisto, o de Cesaréia, os quais, escrevendo sobre Demétrio, defendem-se como segue:

"Acrescenta em sua carta que isto jamais se ouviu, nem agora se faz, que preguem leigos estando presentes os bispos. Eu não sei como diz o que evidentemente não é verdade,

  1. 18.     porque onde quer que se encontrem homens com capacidade para trazer proveito aos irmãos, os santos bispos os convidam a pregar ao povo. Como convidaram nossos bem-aventurados irmãos: Néon e Evelpis em Laranda, Celso e Paulino em Iconio e Ático e Teodoro em Sinade. E provável que também em outros lugares ocorra o mesmo, sem que nós o saibamos." Assim é que o mencionado varão, ainda que jovem, era honrado não somente pelos compatriotas, mas também pelos bispos do estrangeiro.
  2. 19.     Pois bem, quando Demétrio o chamou novamente por carta e exigiu por meio de diáconos de sua igreja que regressasse a Alexandria, depois de chegar, continuou cumprindo as tarefas costumeiras.

 

XX

(Quantas obras subsistem dos homens de então)

  1. 1.            Floresciam nesta época muitos varões eloqüentes e eclesiásticos, cujas cartas, que mutuamente se escreviam, ainda hoje se conservam e são fáceis de encontrar. Também foram preservadas até nossos dias na biblioteca de Elia, formada por Alexandre, que então regia a igreja dali, e na qual nós também pudemos reunir pessoalmente o material para a presente obra.
  2. 2.            Entre eles, Berilo deixou também, junto com as cartas, diversos e belos escritos; era bispo dos árabes em Bostra. E o mesmo de Hipólito, que provavel­mente presidia também outra igreja.
  3. 3.            Também chegou até nós de Caio, varão sapientíssimo, um Diálogo composto em Roma, em tempos de Zeferino, contra Proclo, defensor da heresia catafriga. Neste Diálogo, ao pôr freio aos contrários em sua propensão e atrevimento a compor novas escrituras, somente faz menção às treze Cartas do santo Apóstolo e não enumera com as demais a Carta aos Hebreus, pois até hoje alguns romanos pensam que não é do Apóstolo.

 

XXI

[Quantos bispos eram célebres naqueles tempos]

  1. 1.            Mas tendo Antonino reinado sete anos e seis meses, sucedeu-o Macrino, este manteve-se por um ano, e novamente recebeu o principado dos romanos outro Antonino. Em seu primeiro ano morreu Zeferino, bispo dos romanos, depois de ter exercido o ministério pelo espaço de dezoito anos completos. Depois dele se confiou o episcopado a Calixto, que viveu ainda cinco anos e deixou o ministério a Urbano.
  2. 2.            Depois disto, não tendo Antonino se mantido mais do que quatro anos, sucedeu-o como imperador Alexandre no principado dos romanos. Também neste tempo Fileto sucede a Asclepíades na igreja de Antioquia.
  3. 3.            Pois bem, a mãe do imperador, chamada Mamea, mulher piedosa como nenhuma outra, ao ressoar por todas as partes a fama de Orígenes ao ponto de chegar a seus ouvidos, pôs todo seu empenho em ser considerada digna de contemplar este homem e experimentar sua inteligência nas coisas de Deus, por todos admirada.
  4. 4.            Assim pois, estando ela em Antioquia, mandou-o comparecer escoltado por soldados. Passou junto a ela algum tempo e, depois de expor o maior número de coisas possível, para glória do Senhor e da virtude do ensinamento divino, apressou-se a retomar suas tarefas habituais.

 

XXII

[Quantas obras de Hipólito chegaram a nós]

1. Foi precisamente então que Hipólito compôs também, junto com muitos outros comentários, a obra Sobre a Páscoa, na qual expõe uma relação dos tempos, propõe certa regra de um ciclo de dezesseis anos para a Páscoa e fixa como limite dos tempos o primeiro ano do imperador Alexandre. Das suas outras obras, as que chegaram até nós são as seguintes: Sobre o Hexameron, Sobre o que segue ao Hexameron, Contra Márcion, Sobre o Cantar, Sobre partes de Ezequiel, Sobre a Páscoa, Contra todas as heresias e muitíssimas outras que poderias encontrar conservadas em muitos lugares.

 

XXIII

[Do zelo de Orígenes e como foi julgado digno do presbiteriado eclesiástico]

  1. 1.            A partir de então Orígenes começou também seus Comentários às divinas Escrituras. Foi Ambrósio quem o instigou, e não somente com quanto ânimo e exortações podia pela palavra, mas também com abundantes subvenções para todo o necessário.
  2. 2.            Efetivamente, quando ditava tinha à mão mais de sete taquígrafos, que se revezavam a certos tempos fixos, um número não menor de copistas e tam­bém algumas jovens treinadas na caligrafia[426]. O necessário para todos eles era proporcionado por Ambrósio em grande abundância. Mais ainda, contribuiu com indizível zelo no estudo detalhado dos divinos oráculos e com isto impulsionava Orígenes a compor os Comentários.
  3. 3.            Enquanto isto ocorria assim, Ponciano sucedia a Urbano, que havia sido bis­po da igreja de Roma durante oito anos, e Zebeno a Fileto, na de Antioquia.
  4. 4.     Por este tempo, Orígenes, indo para a Grécia pela Palestina, devido a alguns assuntos eclesiásticos de urgente necessidade, recebe em Cesaréia dos bispos da região a ordenação do presbiterato. A agitação que sobre ele se levantou por este motivo e as decisões tomadas pelos prelados das igrejas sobre estas agitações, assim como também tudo o mais com que Orígenes em sua plena maturidade contribuiu no que toca à doutrina divina, como necessita de uma obra especial, nós o descrevemos em sua justa medida no livro segundo da Apologia que compusemos em sua defesa.

 

XXIV

[Que comentários Orígenes escreveu em Alexandria]

  1. 1.            A isto deveríamos acrescentar que no livro sexto de seus Comentários ao (Evangelho) de João, ele indica que compôs os cinco primeiros estando ainda em Alexandria. Mas do trabalho sobre este mesmo Evangelho inteiro somente nos chegaram vinte e dois tomos.
  2. 2.     No nono livro dos Comentários ao Gênesis (são doze no total) mostra que não somente redigiu em Alexandria os que precedem ao nono, mas também os Comentários aos primeiros vinte e cinco salmos e os Comentários às Lamentações, dos quais chegaram a nós cinco tomos, nos quais faz-se menção inclusive aos livros Sobre a ressurreição, que são dois.

3. E não somente estes, mas que também os livros Sobre os Princípios ele escreveu antes de sua emigração de Alexandria; e na mesma cidade, sob o reinado de Alexandre, compôs os livros intitulados Stromateis, em núme­ro de dez; assim o demonstram suas anotações autografas que encabeçam os tomos.

 

XXV

[Como Orígenes mencionou as escrituras canônicas]

  1. 1.     Ao explicar o salmo primeiro, faz uma exposição do catálogo das Sagradas Escrituras do Antigo Testamento, escrevendo textualmente como segue: "Não se pode ignorar que os livros testamentários, tal como os transmi­tiram os hebreus, são vinte e dois, tantos como o número de letras que há entre eles."
  2. 2.     Logo, depois de algumas frases, continua dizendo:

"Os vinte e dois livros, segundo os hebreus, são estes: o que entre nós se intitula Gênesis, e entre os hebreus Bresith, pelo começo do livro, que é: No princípio; Êxodo, Ouellesmoth, que significa: Estes são os nomes; Levítico, Ouikra: E chamou; Números, Ammesphekodeim; Deuteronômio, Elleaddebareim: Estas são as palavras; Jesus, filho de Navé, Josuebennoun; Juízes e Rute, para eles um só livro: Sophtein; I e II dos Reis, um só para eles: Samuel, O eleito de Deus; III e IV dos Reis, em um: Ouammelchdavid, que significa Reino de Davi; I e II dos Paralipômenos, em um: Dabreiamein, isto é: Palavras dos dias; 1 e II de Esdras em um: Ezra, ou seja, Ajudante; Livro dos Salmos, Spharthelleim; Provérbios de Salomão, Meloth; Eclesiastes, Koelth; Cantar dos Cantares (e não, como pensam alguns, Cantares dos cantares), Sirassireim; Isaías, Iessia; Jeremias, junto com as Lamentações e a Carta, em um: Ieremia; Daniel, Daniel; Ezequiel, Iezekiel; Jó, Iob; Ester, Esther. E além destes estão os dos Macabeus, que são intitulados Sarbethsabanaiel".

3.   Isto é, pois, o que expõe no tratado acima citado. E no livro primeiro dos Comentários ao Evangelho de Mateus, guardando o cânon eclesiás­tico, atesta que ele conhece somente quatro Evangelhos; escreve como segue:

4.   "Acerca dos quatro Evangelhos, que também são os únicos que não foram discutidos na Igreja de Deus que está sob o céu, por tradição aprendi que o primeiro a ser escrito foi o Evangelho de Mateus, que foi por algum tempo arrecadador e depois apóstolo de Jesus Cristo, que o compôs em língua hebraica e o publicou para os fiéis procedentes do judaísmo.

  1. 5.             O segundo foi o Evangelho de Marcos, que o fez como Pedro lhe indicou, o qual, em sua Carta católica, proclama-o até filho seu, com as seguintes palavras: Saúda-vos a igreja de Babilônia, co-eleita, e Marcos, meu filho[427].
  2. 6.             O terceiro é o Evangelho de Lucas, o que Paulo elogiou e que ele fez para os que vinham dos gentios. Além de todos estes há o Evangelho de João".
  3. 7.             E no quinto livro dos Comentários ao Evangelho de João, o mesmo autor diz acerca das Cartas dos apóstolos o seguinte:

"Mas aquele que tinha sido capacitado para converter-se em ministro do Novo Testamento, não da letra, mas do espírito[428], Paulo, que havia cumprido o Evangelho desde Jerusalém, dando a volta, até o Ilírico[429], não escreveu a todas as igrejas às quais tinha ensinado; e mais, mesmo às que escreveu mandou cartas de umas poucas linhas.

  1. 8.             E Pedro, sobre quem se edifica a Igreja de Cristo, contra a qual não preva­lecerão as portas do Hades[430], deixou só uma carta por todos reconhecida. Talvez também uma segunda, pois é posta em dúvida[431].
  2. 9.             Que haverá para dizer sobre João, o que se recostou sobre o peito de Jesus? Deixou um só Evangelho, ainda que confesse que poderia escrever tantos que nem o mundo poderia contê-los[432], e escreveu também o Apocalipse, depois de receber a ordem de calar e não escrever as vozes dos sete tronos[433].
  3. 10.      Deixou também uma Carta de muito poucas linhas, e talvez também uma segunda e uma terceira, pois nem todos dizem que estas são genuínas. Só que as duas não chegam a uma centena de linhas."

11.  Além disto, Orígenes explica acerca da Carta aos Hebreus, em suas Homílias sobre a mesma, o seguinte:

"Que o caráter da dicção da carta intitulada Aos Hebreus não tem aquela rudeza de linguagem do Apóstolo, que confessa ser rude na palavra[434], isto é, no estilo, mas que a carta é bem mais grega pela composição de sua dicção; todo aquele que souber discernir as diferenças de estilo poderá reconhecê-lo.

12. E ainda mais, que os pensamentos da carta são admiráveis e não inferiores aos das cartas que se admitem ser do Apóstolo, qualquer um que se aplique à leitura do Apóstolo dirá conosco que também isto é verdade."

13. Depois de outras coisas, acrescenta:

"De minha parte, se hei de dar minha opinião, eu diria que os pensamentos sim são do Apóstolo, mas o estilo e a composição são de alguém que evocava a memória dos ensinamentos do Apóstolo, como um aluno que anota por escrito as coisas que seu mestre disse. Por conseguinte, se alguma igreja tiver esta carta como sendo de Paulo, que também por isto seja estimada, pois não sem motivo os antigos varões a transmitiram como de Paulo.

14. Mas, quem escreveu a carta? Deus sabe a verdade; por outro lado, chegou a nós o relato de alguns que dizem que a carta foi escrita por Clemente, que foi bispo dos romanos; e o de outros, segundo os quais foi Lucas quem escreveu o Evangelho e os Atos. Mas que isto fique assim."

 

XXVI

[De como Heraclas recebeu em sucessão o episcopado de Alexandria][435]

1. Corria o décimo ano do mencionado reinado[436] quando Orígenes emigrou de Alexandria a Cesaréia, deixando a Heraclas a escola catequética dali. Mas pouco tempo depois morreu também Demétrio, o bispo da igreja de Alexandria, depois de manter-se no ministério pelo espaço de quarenta e três anos completos. Sucedeu-o Heraclas.

 

XXVII

[Como era considerado pelos bispos]

1. Por este tempo destacava-se Firmiliano, bispo de Cesaréia da Capadócia. Tão grande era seu interesse por Orígenes, que uma vez o chamou a sua própria região para proveito das igrejas, e outra vez ele foi à Judéia, à casa de Orígenes, e conviveu algum tempo com ele para seu melhoramento nas coisas divinas. E não só ele, mas também Alexandre, o bispo de Jerusalém, e Teoctisto, o de Cesaréia, estavam ligados a ele a todo tempo como ao único mestre e recomendaram-lhe que se ocupasse da interpretação da Sagrada Escritura e do resto do ensinamento eclesiástico.

 

XXVIII

[Da perseguição de Maximino]

1. Quando o imperador dos romanos Alexandre deu fim a seus treze anos de império, sucedeu-o Maximino César. Este, por ressentimento contra a família de Alexandre, que era composta de muitos fiéis, suscitou uma perseguição ordenando que somente fossem eliminados os chefes das igrejas, como culpados pelo ensino do Evangelho. Foi então que Orígenes compôs sua obra Sobre o martírio, que dedicou a Ambrósio e a Protocteto, presbítero este da comunidade de Cesaréia, porque na perseguição ambos tinham sido presas de dificuldades nada comuns. Nelas estes dois varões distinguiram-se por sua confissão, segundo é tradição, e Maximino não durou mais do que três anos. Orígenes explicou este tempo da perseguição no livro XXII de seus Comentários ao Evangelho de João e em diversas cartas.

 

XXIX

[De como Fabiano foi milagrosamente assinalado por Deus como bispo de Roma]

  1. 1.            Depois de Maximino, Gordiano recebeu em sucessão o principado dos romanos, e a Ponciano, que havia exercido o episcopado da igreja de Roma por seis anos, sucedeu Antero, que depois de servir no cargo durante um mês, teve como sucessor Fabiano.
  2. 2.            Conta-se que Fabiano, junto com outros, depois da morte de Antero, veio do campo e se estabeleceu em Roma, e que ali, por graça divina e celestial chegou ao cargo episcopal da maneira mais extraordinária.
  3. 3.     Efetivamente, estando todos os irmãos reunidos para eleger o que haveria de receber em sucessão o episcopado e sendo numerosíssimos os varões ilustres e célebres que estavam na mente de muitos, a ninguém ocorreu pensar em Fabiano, ali presente; ainda assim, prontamente, segundo contam, uma pomba vinda do alto pousou sobre sua cabeça, imitando manifestamente a descida do Espírito Santo em forma de pomba sobre o Salvador[437].
  4. 4.     Ante este fato, todo o povo, como que movido por um único espírito divino, pôs-se a gritar com todo entusiasmo e unanimemente que este era digno, e sem mais tardar tomaram-no e o colocaram sobre o trono do episcopado. Por este tempo também, morto Zebeno, bispo de Antioquia, sucedeu-o no cargo Babilas. E em Alexandria, assim como depois de Demétrio Heraclas havia recebido o ministério episcopal, a este sucedeu na escola de catequese Dionísio, outro discípulo de Orígenes.

 

XXX

[Quantos discípulos teve Orígenes]

1. Muitos eram os que acudiam a Orígenes, enquanto este se entregava em Cesaréia[438] a suas tarefas habituais, e não somente nativos, mas também inúmeros discípulos do estrangeiro que haviam deixado sua pátria. Destes os mais ilustres de que sabemos foram Teodoro - que é a mesma pessoa que o famoso bispo contemporâneo nosso Gregório - e seu irmão Atenodoro. Ainda que os dois estivessem como embebidos pelos estudos gregos e romanos[439], Orígenes foi-lhes inoculando o amor da filosofia e os impeliu a trocar pela ascese divina aquele seu primeiro ardor. Cinco anos inteiros conviveram com ele e tão grande foi seu melhoramento nas coisas divinas que, sendo ambos ainda jovens, foram considerados dignos do episcopado das igrejas do ponto.

 

XXXI

[De Africanus]

  1. 1.     Também neste tempo era conhecido Africanus, o autor dos escritos intitulados Kestoi. Dele conserva-se uma Carta escrita a Orígenes, na qual se mostra em dúvida sobre se a história de Susana no livro de Daniel é espúria e inventada. Orígenes deu-lhe uma resposta completíssima.
  2. 2.     Do mesmo Africanus chegaram a nós outros trabalhos, cinco livros de Cronografias executados com exatidão. Neles diz que pôs-se a caminho de Alexandria devido à grande fama de Heraclas, a quem, como já indicamos, depois de ter-se distinguido muitíssimo em filosofia e outras ciências dos gregos, havia sido confiado o episcopado daquela igreja.
  3. 3.     Conserva-se também uma segunda Carta do mesmo Africanus dirigida a Aristides, acerca da grande discordância das genealogias de Cristo em Mateus e Lucas. Nela estabelece clarissimamente a concordância de ambos evangelistas, partindo do relato que a ele chegou e que nós recolhemos e expusemos no livro primeiro da presente obra[440].

 

XXXII

[Que comentários escreveu Orígenes em Cesaréia da Palestina]

  1. 1.     Orígenes, por este tempo, compunha os Comentários a Isaías, como também, pelas mesmas datas, os Comentários a Ezequiel. Deles chegaram a nós trinta tomos do comentário à terceira parte de Isaías, até a visão dos quadrúpedes no deserto[441], e dos Comentários a Ezequiel, vinte e cinco tomos, que são os únicos que já foram feitos sobre o profeta inteiro[442].
  2. 2.     Estando por esta época em Atenas, dá o arremate aos Comentários a Ezequiel e começa os do Cantar dos Cantares, continuando-os ali mesmo até o livro quinto. Regressou logo a Cesaréia e os terminou; dez no total.

3. E para que fazer aqui um catálogo das obras deste homem, que necessitaria um estudo especial? Nós já o incluímos na relação da vida do santo mártir de nossos dias Panfilo; ao demonstrar nela como era grande o zelo de Panfilo pelas coisas divinas, citei as listas da biblioteca por ele reunida com base nas obras de Orígenes que chegaram até nós. Mas agora devemos seguir com o fio de nossa história.

 

XXXIII

[Sobre o descaminho de Berilo]

  1. 1.            Berilo, o bispo de Bostra, mencionado pouco acima, pervertia a regra eclesiástica e tratava de introduzir ensinamentos estranhos à fé, atrevendo-se a dizer que nosso Salvador e Senhor não preexistia com individualidade própria antes de residir entre os homens, e que tampouco possuía divindade própria, mas unicamente a do Pai, que habita nele.
  2. 2.            Ante isto, muitos bispos foram interrogar Berilo e dialogar com ele; Orígenes foi chamado e lá foi. Começou conversando com Berilo para saber o quê pensava, e quando também soube o que dizia, comprovou que não opinava corretamente e, persuadindo-o com a razão, colocou-o na verdade acerca da doutrina e o restabeleceu em sua primeira e sã opinião.
  3. 3.            E até hoje subsistem escritos de Berilo e do sínodo que houve por sua causa, escritos que contêm, junto com as perguntas que Orígenes lhe fez e os diá­logos havidos em sua própria comunidade, tudo de que se tratou naquela ocasião.
  4. 4.     Sobre Orígenes, por fim, os mais velhos de nossa geração transmitiram a memória de outros inumeráveis casos que haveremos de omitir, parece-me, por não caber à presente obra. Mas tudo o que era necessário conhe­cer do que a ele se refere pode-se consultar na Apologia que elaboramos em sua defesa o santo mártir de nosso tempo Panfilo e nós, obra que após penoso esforço realizamos juntos com grande diligencia, por causa dos insistentes.

 

XXXIV

[O ocorrido no tempo de Felipe]

1. Ao terminar Gordiano seu reinado de seis anos completos sobre os romanos, sucedeu-o no principado Felipe, junto com seu filho Felipe. Dele conta uma tradição que, como era cristão, quis tomar parte com a multidão nas orações que se faziam na Igreja no dia da última vigília da Páscoa, mas o que presidia naquela ocasião não permitiu que entrasse sem antes fazer a confissão e inscrever-se com os que se classificava como pecadores e ocupavam o lugar da penitência, porque se não fizesse isto nunca o receberia de outra maneira, por causa das muitas tarefas que tinha. E diz-se que ao menos obedeceu com bom ânimo e demonstrou com obras a sinceridade e piedade de sua disposição a respeito do temor a Deus.

 

XXXV

 (De como Dionísio sucedeu Heraclas no episcopado)

1. Era o terceiro ano deste[443], quando morreu Heraclas, depois de presidir durante uns dezesseis anos as igrejas de Alexandria, recebeu o episcopado Dionísio.

 

XXXVI

[Que outras obras escreveu Orígenes]

  1. 1.            Foi então, como também era natural, enquanto a fé se multiplicava e nossa doutrina se expressava com liberdade por todas as partes, quando Orígenes, segundo dizem, tendo passado dos sessenta anos e tendo já reunido uma grande experiência com sua longa preparação, permitiu aos taquígrafos transcrever as conferências tidas por ele em público, sendo que nunca antes tinha consentido que isto se fizesse.
  2. 2.            Também compôs neste tempo os oito livros contra a obra do epicúreo Celso[444]contra nós, intitulada Doutrina verdadeira, assim como os vinte e cinco tomos Sobre o Evangelho de Mateus e os tomos Sobre os doze profetas, dos quais encontramos apenas vinte e cinco[445].
  3. 3.            Conserva-se dele ainda uma carta ao próprio imperador Felipe e outra a sua mulher Severa, assim como muitas outras a diferentes pessoas. Delas temos recolhido em volumes próprios, para que não andem mais espalhadas, todas que pudemos reunir, conservadas aqui e acolá entre diferentes pessoas. Ultrapassam o número de cem.
  4. 4.            Escreveu também a Fabiano, o bispo de Roma, e a muitos outros chefes de igrejas, sobre sua própria ortodoxia. Tens provas disso no livro sexto da Apologia que escrevemos sobre este homem.

 

XXXVII

[Da discórdia dos árabes]

1. Pela mesma época de que falamos surgiram novamente na Arábia outros introdutores de uma doutrina alheia à verdade, os quais diziam que a alma humana, enquanto durar o tempo presente, morre no transe derradeiro juntamente com os corpos e com eles se corrompe, mas que um dia reviverá novamente com eles no momento da ressurreição. Pois bem, também então reuniu-se um concilio de bom tamanho e novamente chamou-se a Orígenes, que teve alguns discursos em público sobre o assunto debatido, e de tal for­ma se conduziu que aqueles que primeiro haviam sido enganados mudaram suas opiniões.

 

XXXVIII

[Da heresia dos helcesaítas]

1. Também então deu início a uma nova perversão a heresia chamada dos hel­cesaítas, que se extinguiu logo depois de nascida. E mencionada por Orígenes em uma homilia sobre o salmo 82, que pronunciou em público, e diz assim: "Veio recentemente um que se gloria de poder ser embaixador de uma doutrina atéia e ímpia por demais, chamada dos helcesaítas, que se levantou recentemente contra as igrejas. Quais são as maldades que profere esta doutrina, vou expô-las, para que não vos capture. Rechaça algumas coisas de toda a Escritura; utiliza no entanto passagens tomadas de todo o Antigo Testamento e dos Evangelhos; rechaça por inteiro o Apóstolo. Diz que renegar a fé é coisa indiferente, e que o homem atento, em caso de necessi­dade, renegará com a boca, ainda que não com o coração. E possuem um livro do qual dizem que caiu do céu e que quem o ouça e tenha fé receberá perdão de seus pecados, um perdão diferente do que Cristo Jesus deu."

 

XXXIX

[Dos tempos de Décio]

  1. 1.            Agora pois, a Felipe, que havia imperado por sete anos, sucede Décio, que por ódio a Felipe suscitou uma perseguição contra as igrejas. Nela Fabiano consumou seu martírio em Roma e Cornélio o sucedeu no episcopado.
  2. 2.            E na Palestina, Alexandre, bispo da igreja de Jerusalém, novamente com­parece por Cristo ante os tribunais do governador em Cesaréia, e depois de distinguir-se nesta segunda confissão de fé, experimenta o cárcere apesar de estar já coroado com os veneráveis cabelos brancos de sua esplêndida velhice.
  3. 3.            Morto na prisão, depois de dar brilhante e claríssimo testemunho ante os tribunais do governador, proclama-se Mazabanes seu sucessor no episcopado de Jerusalém.
  4. 4.            De modo semelhante a Alexandre morreu Babilas na prisão em Antioquia depois de sua confissão de fé, e Fábio pôs-se à frente daquela igreja.
  5. 5.     Quanto a Orígenes, quantas e quais coisas lhe aconteceram na perseguição e o fim que tiveram, sendo que assim o malvado demônio havia posto contra ele todo seu exército e lutava contra ele com todos seus meios, e todo seu poder, e se abatia sobre ele de modo distinto do que sobre os demais a quem fazia então a guerra; e logo quantos e quais sofrimentos teve que suportar aquele homem pela doutrina de Cristo: correntes e torturas, os suplícios físicos, os suplícios pelo ferro e os suplícios na escuridão do cárcere; e como tendo seus pés durante muitos dias estendidos no cepo até o quarto furo e depois de ser ameaçado com o fogo, suportou ainda com integridade muitos outros tormentos que seus inimigos lhe infligiam; e em que deu tudo isto, já que o juiz se esforçava com todas suas forças para que não se lhe tirassem a vida; e depois de tudo isto, que classe de sentenças deixou atrás de si, cheias também elas de proveito para os que necessitam recuperar-se: tudo isto está contido nas numerosas cartas deste homem, com tanta verdade quanto exatidão[446].

 

XL

[Do acontecido a Dionísio]

  1. 1.            O que se refere a Dionísio vou apresentar tomando-o de sua Carta contra Germano, onde, falando de si mesmo, conta o que segue: "Eu, de minha parte, também estou falando diante de Deus e ele sabe se estou mentindo. Não empreendi a fuga baseado em mim mesmo e sem ajuda de Deus,
  2. 2.            "mas antes, declarada a perseguição de Décio, na mesma hora Sabino[447]enviou um frumentário[448] em busca de mim. Eu permaneci quatro dias em minha casa esperando a chegada do frumentário, mas ele andou dando voltas esquadrinhando tudo, os caminhos, os rios, os campos, onde ele suspeitava que eu me ocultava ou andava; mas estava afetado de cegueira e não encon­trava a casa, pois não acreditava que eu, sendo perseguido, permanecesse em casa.
  3. 3.            E somente depois do quarto dia, porque Deus me ordenava trasladar-me e milagrosamente nos abria caminho, saímos juntos eu e meus filhos[449] e muitos irmãos. E que isto foi obra da providência de Deus é provado pelos aconteci­mentos exteriores em que por acaso fomos de proveito para alguns".
  4. 4.            Logo, depois de interpor alguma outra coisa, manifesta o que lhe aconteceu depois de sua fuga, acrescentando o que segue:

"Eu, de minha parte, até o pôr-do-sol, caí efetivamente nas mãos dos soldados, junto com meus acompanhantes, e fui conduzido a Taposiris, enquanto que Timóteo[450], pela providência de Deus, por acaso não se achava presente e não foi detido. Quando regressou mais tarde, encontrou a casa deserta e alguns servidores guardando-a, e quanto a nós, soube que nos tinham capturado."

5.   E depois de outras coisas diz:

"E qual foi a forma de sua admirável disposição providencial? Porque há que se dizer a verdade. Um camponês saiu ao encontro de Timóteo, que fugia perturbado, e perguntou-lhe a causa daquela precipitação.

  1. 6.            Este lhe disse a verdade, e aquele, quando o ouviu (ia a um banquete de bodas, pois têm o costume de passar toda a noite em semelhantes ocasiões), não fez mais que entrar e contá-lo aos que estavam à mesa. Todos eles, como a um sinal convencionado e por impulso unânime, puseram-se em pé e a toda pressa logo chegaram; caíram sobre nós com grande gritaria e, tendo fugido os soldados que nos guardavam, acercaram-se de nós como estávamos, largados sobre uns estrados sem cobertores.
  2. 7.            Eu então - sabe Deus que na hora os tomei por salteadores vindos para roubar e pilhar - permaneci no leito, desnudo como estava, com a simples camisa de linho, e as demais roupas que estavam junto de mim eu lhas oferecia. Mas eles nos ordenaram levantar-nos e sair a toda pressa.
  3. 8.     Então compreendi por que estavam ali e comecei a gritar pedindo-lhes e suplicando-lhes que fossem e nos deixassem e, se queriam fazer algo proveitoso, eu lhes rogava que se antecipassem aos que me conduziam e que eles mesmos me cortassem a cabeça. E enquanto eu dizia isto a gritos, como sabem meus companheiros e co-partícipes de toda esta peripécia, levantaram-nos à força. Eu então me joguei de costas ao chão, mas eles, agarrando-me pelas mãos e pelos pés tiraram-me arrastado.

9.   Seguiam-me as testemunhas de tudo isto: Caio, Fausto, Pedro, Paulo, os quais puxando-me às pressas, tiraram-me do povoado, e fazendo-me montar em pelo sobre um asno, levaram-me."

Isto conta Dionísio sobre si mesmo.

 

XLI

[Dos que sofreram martírio na mesma Alexandria]

  1. 1.            E ele mesmo, em sua carta a Fábio, bispo de Antioquia, narra como segue os combates dos que sofreram martírio em Alexandria sob Décio: "Entre nós a perseguição não começou pelo edito imperial, mas antecipou-se um ano inteiro. Tomando a dianteira nesta cidade o adivinho e autor de males, quem quer este fosse, agitou e excitou contra nós as turbas de pagãos reavivando seu zelo pela superstição do país.
  2. 2.            Excitados por ele e tomando toda liberdade para sua ímpia obra, começa­ram a pensar que somente era religião este ato de culto demoníaco: assas­sinar-nos.
  3. 3.            O primeiro a quem lançaram mão foi um velho chamado Metras; intimaram-no a dizer palavras ímpias, e como ele não obedecia, bateram-no por todo o corpo e espetaram seu rosto e seus olhos com varas pontiagudas; levaram-no ao arraial e ali o apedrejaram.
  4. 4.             Depois foi uma mulher crente, chamada Quinta; conduziram-na ao templo dos ídolos e queriam forçá-la a adorar, mas como ela se virou horrorizada, ataram-lhe os pés e a arrastaram por toda a cidade sobre o áspero calçamento, batendo contra as lajes enquanto a açoitavam, e voltando ao mesmo lugar, apedrejaram-na.
  5. 5.             Em seguida todos de uma vez lançaram-se contra as casas dos fiéis, e caindo sobre os que cada um conhecia, seus vizinhos, levavam-nos e se entregavam ao saque e à pilhagem. Separando para si os objetos mais valiosos e jogando os mais vulgares e feitos de madeira para queimá-los nas ruas, ofereciam o espetáculo de uma cidade tomada por inimigos.
  6. 6.             Quanto aos irmãos, deixavam-nos fazer, retiravam-se às escondidas e aceitavam com alegria o roubo de seus bens, assim como aqueles de quem Paulo deu testemunho[451]. E não sei de nenhum até agora que tenha renegado o Senhor, a não ser, talvez, um que caiu em suas mãos.
  7. 7.             Mas ainda há mais; prenderam também então a anciã Apolonia, virgem admirável. Ao golpeá-la nas faces fizeram saltar-lhe todos os dentes, e erguendo uma fogueira diante da cidade, ameaçaram queimá-la viva se não proferisse, junto com eles, os votos da impiedade. Ela então pediu um pequeno espaço e, uma vez solta, lançou-se de um forte salto ao fogo e ficou completamente queimada.
  8. 8.             Serapion foi preso em casa, e depois de maltratá-lo com duros tormentos e torcer-lhe todos os membros, lançaram-no de cabeça do andar superior. Nem por caminhos, nem por trilhas, nem pelas ruas podíamos transitar, nem de noite nem de dia, sem que a toda hora e em toda parte gritassem que quem não cantasse as palavras blasfemas devia ser arrastado e queimado.
    1. 9.            Este estado de coisa se manteve assim por muito tempo, mas depois que a revolta se apoderou dos miseráveis e a guerra civil[452] voltou contra eles mesmos a crueldade que antes empregavam contra nós, pudemos por fim respirar um pouco aproveitando sua falta de tempo para se irritarem contra nós. Mas em seguida anunciou-se a troca daquele reinado, tão favorável para nós, e espalhou-se um grande temor pelo que nos ameaçava.
    2. 10.     E assim é que ali estava o edito, quase idêntico ao previsto por nosso Senhor, o mais terrível ou pouco menos, tanto que, sendo possível, até os próprios eleitos tropeçariam[453].

11. Certo é que estavam todos aterrados, e muitos dos mais conspícuos, uns compareciam logo, mortos de medo; outros, com cargos públicos, viam-se levados por suas próprias funções, e outros eram arrastados pelos amigos. Chamados pelo nome, aproximavam-se dos impuros e profanos sacrifícios, pálidos e trêmulos, como se não fossem sacrificar, mas serem eles mesmos sacrifícios e vítimas para os ídolos, tanto que o numeroso público que os rodeava zombava deles, pois era evidente que para tudo eram uns covardes, para morrer e para sacrificar;

  1. 12.     Alguns outros, por outro lado, corriam mais resolutos aos altares e levavam sua audácia ao ponto de sustentar que jamais anteriormente tinham sido cristãos. A eles se refere a muito verdadeira pregação do Senhor: que dificil­mente se salvarão[454]. Dos restantes, uns seguiam a um ou outro dos grupos mencionados, e os outros fugiam.
  2. 13.     Quanto aos que foram presos, alguns, depois de terem chegado até as cor­rentes e ao cárcere - alguns inclusive estiveram encerrados vários dias -, logo renegaram, ainda antes de chegar ao tribunal, e outros, depois de se manterem firmes algum tempo nos tormentos, negaram-se a seguir adiante.
  3. 14.     Mas os sólidos e abençoados pilares do Senhor, fortalecidos por ele e com uma força e constância adequadas e dignas de sua fé robusta, converteram-se em testemunhos admiráveis de seu reino.
  4. 15.     O primeiro deles, Juliano, um homem sofrendo de gota, incapaz de ficar em pé ou de caminhar, que foi conduzido junto com outros dois que o levavam; um destes renegou em seguida, enquanto que o outro, chamado Cronion e apelidado Eunus, assim como o próprio ancião Juliano, confessaram o Senhor, e depois de serem levados sobre camelos por toda a cidade, que eram enorme, como sabeis, enquanto os açoitavam lá em cima, por último, com todo o povo acotovelando-se em torno, queimaram-nos com cal viva.
  5. 16.     E um soldado que os escoltava quando eram conduzidos ao suplício enfrentou-se com os que lançavam seus insultos, mas eles puseram-se a gritar, e o valentíssimo campeão de Deus, Besas, foi conduzido ao tribunal, de depois de sobressair no grande combate pela religião, foi decapitado.
    1. 17.     E outro ainda, de nacionalidade líbia, e verdadeiro Mácar por seu nome e por bênção divina[455], como o juiz insistisse em exortá-lo a renegar, não se deixou seduzir, e o queimaram vivo. E depois destes, Epímaco e Alexandre, que depois de ficarem presos longo tempo sofrendo incontáveis sofrimentos de ganchos e açoites, foram também metidos em cal viva.

18. E com estes, quatro mulheres. A Ammonaria, uma santa virgem, o juiz mandou torturá-la com toda sanha e força por ter feito constar de antemão que não diria uma só palavra que ele ordenasse, e como ela cumprisse a promessa, conduziram-na ao suplício. Quanto às outras, a venerável anciã Mercuria, e Dionisia, mãe de muitos filhos, aos quais, no entanto, não amou mais do que ao Senhor, sentindo-se o juiz envergonhado ante a ineficácia de suas torturas, e para não ser vencido por umas mulheres, fez com que morressem pela espada e não provassem mais tormentos; de fato Ammonaria os tinha suportado por todas elas, como um paladino seu.

  1. 19.     Foram entregues também os egípcios[456] Heron, Ater e Isidoro, e com eles um rapaz de uns quinze anos chamado Dióscoro. Primeiramente o juiz tentou seduzir o rapaz com palavras, pensando ser fácil de enganar, e forçá-lo com tormentos pensando ser fácil de ceder, mas Dióscoro nem se deixou persuadir nem cedeu.

20. Aos outros dilacerou ferozmente, e como seguissem firmes, também os entregou ao fogo. A Dióscoro, por outro lado, deixou seguir livre, admirado de como havia-se coberto de glória ante o público e que sábias respostas dera em seu próprio interrogatório, e disse que lhe dava aquela prorrogação para que se arrependesse. E agora, o divino Dióscoro está conosco, reservado para um combate mais longo e trabalhos mais duradouros.

21. E um tal Nemesion, também egípcio, foi injustamente acusado de viver com ladrões, e quando conseguiu desfazer tão absurda calúnia ante o Centu­rião, foi denunciado como cristão e veio acorrentado ante o governador. Este, muito injusto, maltratou-o com tormentos e açoites em quantidade dobrada da dos bandidos, e entre bandidos fez queimar o bem-aventurado, que assim via-se honrado com o exemplo de Cristo.

22. Todo um piquete de soldados: Ammon, Zenon, Ptolomeu e Ingenes, e com eles um ancião, Teófilo, achava-se de pé diante do tribunal. Estava-se julgan­do um homem por ser cristão, e quando ele ia se inclinando para a apostasia, aqueles, que estavam presentes, começaram a rilhar os dentes e faziam sinais com a cabeça, estendiam as mãos e gesticulavam com todo o corpo.

23. Todos se viraram para eles, e então, antes que os prendessem por outros motivos, eles mesmos se adiantaram correndo para o estrado dizendo que eram cristãos, com isto tanto o governador como seus assessores encheram-se de medo e parecia que, enquanto os réus se mostravam animadíssimos com o que iam padecer, os juízes se acovardavam. E assim aqueles soldados saíram em triunfo do tribunal transbordantes de alegria por seu testemunho: Deus os fazia triunfar gloriosamente.

 

XLII

( De outros mártires mencionados por Dionísio)

1. E muitos outros foram despedaçados pelos pagãos nas cidades e aldeias, desses recordarei somente um para fim de exemplo. Isquirion era intendente a soldo de um dos magistrados. Seu amo o mandou sacrificar, e como ele não obedecesse, começou a injuriá-lo, persistiu em sua negativa, e o amo o maltratava; como suportava tudo, este agarrou uma enorme estaca e, atravessando-lhe intestinos e entranhas, matou-o.

  1. 2.            E que dizer da multidão dos que andaram errantes por desertos e montes e morreram de fome, de sede, de frio e de enfermidades, ou presa de ladrões e de feras? De sua eleição e sua vitória são testemunhas os que dentre eles sobreviveram. Como prova de todos, citarei também um só caso.
  2. 3.            Queremon era já muito velho e era bispo da cidade chamada Nilópolis. Tendo fugido com sua mulher à montanha de Arábia, não regressou mais, e os irmãos, apesar de esquadrinhar bem por muitas partes, não puderam encontrá-los nem seus cadáveres.
  3. 4.            Muitos são os que nessa mesma montanha de Arábia foram reduzidos à escravidão pelos bárbaros sarracenos; deles, alguns foram resgatados com grande dificuldade e em troca de muito dinheiro; e outros não, até hoje. E se te expliquei isto, irmão, não é sem motivo, mas para que saibas quantas e que terríveis provas nos atingiram, e mais poderiam contar aqueles que mais experimentaram."
  4. 5.            E logo, depois de breves linhas, prossegue dizendo:

"Portanto, os mesmos divinos mártires entre nós, que agora são assessores de Cristo e partícipes de seu reino e de seu juízo, e que junto a ele ditam sentenças, receberam alguns irmãos caídos que se tinham feito culpados de ter sacrificado. Quando viram sua conversão e arrependimento e julgaram que podia ser aceitável para o que não quer em absoluto a morte do pecador, mas seu arrependimento[457], receberam-nos, congregaram com eles, reuniram-nos e lhes deram parte em suas orações e comidas.

6.   O que nos aconselhais, pois, vós sobre isto, irmãos? Que devemos fazer? Nos colocaremos ao lado da sua decisão e de seu sentimento e guardaremos seu juízo e sua graça, e seremos bons para aqueles com quem compadeceram, ou teremos por injusta sua decisão e nos imporemos como juízes de sua opinião, deplorando sua bondade e questionando a ordem estabelecida?"
Isto é o que Dionísio, de bom acordo, nos expõe ao remover o tema dos que haviam desfalecido na temporada de perseguição.

 

XLIII

[De Novato, sua conduta e sua heresia]

1. Foi precisamente então que Novato[458], presbítero da igreja de Roma, ensoberbecido contra estes, como se já não existisse para eles esperança de salvação nem mesmo cumprindo tudo que condissesse com uma conver­são sincera e com uma confissão pura, constituiu-se em fundador de uma heresia particular, a daqueles que, por orgulho de sua razão, declaravam a si mesmos puros.

  1. 2.             Por este motivo reuniu-se em Roma um numerosíssimo concilio, com sessenta bispos e um número ainda maior de presbíteros e diáconos, enquanto que nas demais províncias os pastores locais examinavam particularmen­te a fundo o que se haveria de fazer. Todos tomaram uma decisão[459]: que Novato, junto com os que se haviam levantado com ele, assim como os que haviam preferido aprovar o parecer antifraterno e sumamente desumano deste homem, seriam considerados como alheios à Igreja. Por outro lado, os irmãos caídos naquela calamidade deveriam ser curados e cuidados com os remédios da penitência.
  2. 3.             Chegou pois a nós uma carta do bispo de Roma Cornélio, escrita para a igreja de Antioquia, Fábio, que declara os fatos relativos ao concilio de Roma e às decisões dos da Itália, da África e das regiões daqueles lugares. Também nos chegaram outras, compostas em língua latina, de Cipriano e de seus colegas da África, através das quais manifestavam que também eles achavam que era necessário socorrer os que haviam caído na prova e que com boa razão era necessário declarar expulso da Igreja católica o fundador da heresia, assim como os que se haviam deixado extraviar por ele.
  3. 4.             Junto com essas cartas vinha outra de Cornélio sobre as decisões do concilio, e ainda outra sobre os atos de Novato. Nada nos impede de citar um parágrafo desta para quem leia este livro saiba sobre ele.
  4. 5.             Explicando a Fábio que tipo de homem era Novato, Cornélio escreve o seguinte:

"E para que saibas que estranho indivíduo vinha há muito tempo desejando o episcopado e que ocultava em si mesmo esta sua violenta paixão utilizando como cobertura de sua loucura o fato de ter consigo no início os confessores, quero explicar-me:

6.   Máximo, um dos nossos presbíteros, e Urbano, tinham ambos colhido por duas vezes a melhor das glórias por sua confissão; logo Sidonio e também Celerino, varão que, pela misericórdia de Deus, havia suportado com a maior integridade todos os tormentos e que, fortalecendo a fraqueza de sua carne com o vigor de sua fé, tinha vencido a viva força o adversário; estes homens
conheceram aquele, e depois que descobriram a malícia que havia nele, sua falsidade, seus perjúrios, seus enganos, sua insociabilidade e sua amizade lupina, retornaram à santa Igreja e revelaram todas suas maquinações e ações malvadas, que já possuía desde há muito tempo, mas que ocultava em si mesmo, achando-se presentes muitos bispos e grande número de presbíteros e laicos, e se lamentavam e se arrependiam de ter abandonado por breve tempo a Igreja, persuadidos por aquela besta pérfida e malvada."

7.   Logo diz, depois de curto espaço:

"E extraordinário, querido irmão, a mudança e transformação que em pouco tempo contemplamos nele! Porque sendo uma pessoa brilhantíssima e que fazia crer com tremendos juramentos que de modo algum desejava o episcopado, de repente aparece já como bispo, como que lançado ao meio por arte de encantamento.

  1. 8.             Efetivamente, este expositor de doutrinas, este campeão da ciência eclesiás­tica, quando se empenhou em tomar para si e arrebatar o episcopado, que não lhe fora dado do alto, escolheu dois partidários seus, desesperados da própria salvação, para enviá-los a certa parte da Itália, pequena e insigni­ficante, e ali enganar com elaborada argumentação a três bispos, homens rústicos e muito simples, afirmando energicamente e sustentando com força que era preciso que se apresentassem rapidamente em Roma, para que com sua mediação e com a ajuda de outros bispos, se pusesse fim a toda dissensão que havia surgido.
  2. 9.      Assim que chegaram - pessoas, como já dissemos, demasiado simples para as maquinações e falta de escrúpulos destes malvados -, foram encerrados por alguns homens semelhantes a ele e por ele transtornados. A hora décima, quando se encontravam ébrios e tomados pelo vinho, obrigou-os à força a que, mediante uma imposição de mãos simulada e vã, lhe conferissem o episcopado, o mesmo que agora reivindica com fraude e malícia, pois não lhe cabe.
    1. 10.     Não muito depois, um deles voltou à Igreja, lamentando-se e confessando seu pecado, e nós o admitimos à comunhão como laico, pois todo o povo ali presente intercedia por ele. Quanto aos outros bispos, ordenamos sucessores para eles e os enviamos aos lugares onde eles estavam.
    2. 11.     Assim pois, este vingador do Evangelho não sabia que deve haver um só bispo em uma igreja católica em que não ignora - e como poderia? - que há quarenta e seis presbíteros, sete diáconos, sete subdiáconos, quarenta e dois acólitos, cinqüenta e dois entre exorcistas, leitores e ostiários, assim como mais de mil e quinhentas viúvas e necessitados, todos os quais são alimen­tados pela graça e o amor do Senhor para com os homens.

12. Uma multidão tão grande e tão necessária na Igreja, e um número tão rico e em contínuo aumento pela providência divina, com um povo imenso e inumerável, não conseguiu afastá-lo de tamanho desespero e desmorona­mento e retorná-lo à Igreja."

13. E novamente, depois de algumas outras coisas, acrescenta:

"Pois bem, digamos na mesma carreira com que obras e com que gênero de vida atrevia-se a reivindicar o episcopado. Seria por acaso, ao menos porque desde o princípio vivia habitualmente na igreja? Ou porque por ela travou numerosos combates e, por causa da religião, viu-se envolto em muitos e grandes perigos?

  1. 14.     Nada disso houve. Ao menos para ele, o ponto de partida de sua crença foi Satanás, que tinha vindo a ele e nele havia morado bastante tempo. Os exorcistas o ajudaram quando caiu numa grande enfermidade, e como pensava que morreria logo, no próprio leito em que jazia recebeu o batismo por aspersão, se é que se pode dizer este o recebeu.
  2. 15.     Mas tendo escapado à enfermidade, não recebeu nenhuma das outras coisas que se deve receber depois, segundo a regra da Igreja, nem sequer o ser selado pelo bispo. E não tendo recebido isto, como poderia ter recebido o Espírito Santo?"
  3. 16.     E depois de breve espaço volta a dizer:

".. .ele, que por covardia e apego à vida, em tempos de perseguição negou que fosse presbítero. Efetivamente, os diáconos lhe pediam e exortavam a que saísse do casebre em que havia se encerrado e socorresse aos irmãos em tudo o que fosse lei e segundo a possibilidade de um presbítero para socorrer a uns irmãos em perigo e necessitados de socorro; mas ele estava tão longe de obedecer às exortações dos diáconos que partiu enfurecido e se afastou, porque dizia que já não queria ser presbítero por estar enamorado de outra filosofia".

17. Saltando algumas coisas, acrescenta ao dito o seguinte:

"...depois de abandonar, efetivamente, este ilustre personagem a Igreja de Deus, na qual havia obtido a fé e na qual havia sido considerado digno do presbiteriado, pela graça do bispo que lhe impôs sua mão para a ordem do presbiteriado, pois ainda que todo o clero tentasse impedi-lo, e inclu­sive muitos laicos, por não ser permitido a quem houvesse, como ele, rece­bido o batismo por aspersão no leito, por causa de uma enfermidade, ser incorporado ao clero, o dito bispo pediu que se lhe permitisse ordenar este somente".

18. Ainda acrescenta algo ao dito, o maior dos absurdos deste homem, nos seguintes termos:

"De fato, realizada a oferenda, ao distribuir a cada um sua parte e entregá-la, obriga as pobres pessoas a jurar, em vez de bendizer. Com ambas as mãos agarra as de quem vai receber (a comunhão) e não as solta até que tenha jurado proferindo estas palavras (porque usarei suas próprias palavras): 'Jura-me pelo sangue e o corpo de nosso Senhor Jesus Cristo não me abandonar jamais para voltar-te a Cornélio'.

  1. 19.     E o pobre desgraçado não toma (a comunhão) se antes, previamente, não faz imprecações contra si mesmo. E em vez de pronunciar 'Amém', ao tomar aquele pão, diz: 'Não voltarei a Cornélio'."

20. E depois de outras coisas volta a dizer:

"Mas deves saber que agora encontra-se desnudado e ficou isolado, pois cada dia o abandonam os irmãos e voltam à Igreja. E o próprio Moisés, o que recentemente deu entre nós um formoso e admirável testemunho, achando-se ainda no mundo, como visse a ousadia e a loucura daquele, excomungou-o junto com os cinco presbíteros que com ele haviam-se separado da Igreja."

21. E ao final da carta enumera os bispos presentes em Roma e que haviam condenado a insensatez de Novato, indicando ao mesmo tempo seus nomes e o da igreja que cada um governava;

22. e dos que não estavam em Roma, mas que por carta deram seu assentimento ao voto dos citados, menciona os nomes e o lugar de onde procedia cada um dos que escreviam. Isto é o que Cornélio informava por carta a Fábio, bispo de Antioquia.

 

XLIV

[Relato de Dionísio acerca de Serapion]

  1. 1.            E com este mesmo Fábio, que se inclinava um pouco ao cisma, também manteve correspondência epistolar Dionísio, o de Alexandria. Depois de explicar muitos e diferentes pontos, entre eles o da penitência, nas cartas que lhe dirigiu, ao referir detalhadamente os combates dos que então acaba­vam de padecer martírio em Antioquia, no curso do relato narra também um fato, muito admirável, que será necessário transmitir nesta obra e que diz assim:
  2. 2.            "Vou porém expor-te este único exemplo, ocorrido entre nós. Havia entre nós um tal Serapion, já ancião e crente. Durante muito tempo havia vivido de forma irrepreensível, mas logo, na prova, caiu. Ele pediu muitas vezes (o perdão), mas ninguém fez caso dele, porque inclusive havia sacrificado. Tendo adoecido, passou três dias seguidos sem poder falar e inconsciente.
  3. 3.            Quando ao quarto dia se recuperou um pouco, chamou seu neto e disse: 'Até quando, filho, reter-me-ão? Dá-te pressa, rogo-te, e soltai-me logo. Chama-me algum dos presbíteros'. E dito isto, ficou novamente sem voz.
  4. 4.     O rapaz correu à casa do presbítero, mas era de noite e este achava-se enfermo; não podia ir, mas como eu havia mandado que aos que iam partir desta vida, se pedissem perdão, e principalmente se antes já o tivessem suplicado, se lhos concedesse, para que partissem com boa esperança, deu ao rapaz uma porção da Eucaristia, e mandou que a colocasse em algum líquido e a fizesse cair em gotas na boca do ancião.
  5. 5.      O rapaz regressou com ela e, quando se aproximava, antes que entrasse, novamente Serapion voltou a si e disse: 'Já chegaste, filho? O presbítero não pôde vir, mas tu faze rápido o que te foi ordenado e deixa-me partir'. O rapaz pôs em um líquido (a porção da Eucaristia), e no momento em que a ver­tia na boca do ancião, este tomou um pouquinho e imediatamente entregou seu espírito.
  6. 6.      Agora bem, não está claro que foi preservado e se manteve até que fosse absolvido e, apagado seu pecado, pudesse ser reconhecido pelas muitas obras boas que havia feito? Isto diz Dionísio.

 

XLV

[Carta de Dionísio a Novato]

1. Mas vejamos como escreveu ele mesmo a Novato, que então andava perturbando a comunidade dos irmãos em Roma. Ocorre pois que este andava fazendo de alguns irmãos pretexto para sua apostasia e seu cisma, como se de fato eles o tivessem forçado a chegar a esta situação, veja de que modo lhe escreve:

"Dionísio a Novaciano, seu irmão, saúde: Se, como dizes, fostes levado contra a vontade, terás que prová-lo regressando voluntariamente, porque há que sofrer o que fosse para não partir em duas a Igreja de Deus. O testemunho dado para evitar o cisma não seria menos glorioso do que o que se dá por não adorar os ídolos; para mim inclusive seria maior, porque neste dá-se testemunho apenas pela própria alma, enquanto que no outro se dá por toda a Igreja. Mas ainda agora, se consegues persuadir ou forçar teus irmãos a retornar à concórdia, tua recuperação será maior do que tua queda. Esta não será posta em tua conta, enquanto que a outra te será louvada. E se não podes, porque não te obedecem, salva pelo menos tua própria alma. Rogo que tenhas saúde, e também a paz no Senhor."

 

XLVI

[Das outras cartas de Dionísio]

  1. 1.     Isto escreveu também a Novato. Mas, além disso[460], escreve aos do Egito uma carta Sobre a penitência, na qual expõe suas opiniões acerca dos caídos distinguindo graus de faltas.
  2. 2.     Também se conserva uma carta privada sua Sobre a penitência, dirigida a Cólon (este era bispo da igreja de Hermúpolis), e outra de repreensão dirigida a sua grei de Alexandria. Entre estas encontra-se também a que escreveu a Orígenes Sobre o martírio. Também aos irmãos de Laodicéia, aos quais presidia o bispo Telimidro, e aos da Armênia, cujo bispo era Meruzanes: escreve-lhes Sobre a penitência.
  3. 3.     E além de todos estes, escreve também a Cornélio, o de Roma, depois de receber sua carta contra Novato. Indica-lhe claramente que ele foi convidado por Heleno, bispo de Tarso de Cilicia, e pelos outros bispos que o acompanham: Firmiliano, o da Capadócia, e Teoctisto, o da Palestina, para assistir ao concilio de Antioquia, onde alguns tentavam consolidar o cisma de Novato.
  4. 4.     Além disto escreve que lhe fora anunciado que Fábio tinha morrido e que haviam estabelecido Demetriano como seu sucessor no episcopado de Antioquia. Escreve também sobre o bispo de Jerusalém, falando neste termos: "Porque Alexandre, aquele homem admirável, estando no cárcere, teve uma morte feliz."
  5. 5.     Em continuação a esta conserva-se também de Dionísio outra Carta diaconal por meio de Hipólito, dirigida aos de Roma, aos quais escreve ainda outra Sobre a paz, e igualmente Sobre a penitência, assim como também outra Aos confessores dali que ainda estavam comprometidos com a opinião de Novato. A estes mesmo, depois que voltaram à Igreja, escreveu outras duas cartas. Manteve igualmente correspondência epistolar com muitas outras pessoas e deixou à posteridade um rico proveito aos que ainda hoje se interessam por seus escritos.

 

 

 

 

 

 

 

 

Livro VII

 

[Prólogo]

Na elaboração do livro sétimo da História eclesiástica vai estar novamente conosco, com suas próprias palavras, o grande[461] bispo de Alexandria Dionísio, contando-nos sucessivamente, por meio das cartas que nos deixou, cada um dos fatos de seu tempo. Minha narração vai começar deste ponto.

 

I

[Da perversidade de Décio e de Galo]

1. Décio, que não reinou um par de anos completos, pois em seguida foi degolado junto com seus filhos, foi sucedido por Galo. Neste tempo morre Orígenes, já cumpridos sessenta e nove anos de sua vida. Dionísio, por sua parte, escrevendo a Hermamon, diz sobre Galo isto que segue: "Mas acontece que Galo nem reconheceu o mal de Décio nem teve a precaução de examinar o que o derrubou, mas veio a estatelar-se contra a mesma pedra que estava diante de seus olhos. Quando o império andava bem e os assuntos se resolviam a um pedido, expulsou os santos varões que perante Deus intercediam por sua paz e por sua saúde, e em conseqüência, junto com eles, perseguiu também as orações feitas em seu favor." Isto pois, sobre Galo.

 

II

[Os bispos de Roma nos tempos de Décio e de Galo]

1. Na cidade de Roma, depois que Cornélio exerceu o episcopado em torno de três anos, estabeleceu-se como seu sucessor a Lúcio, que no entanto viveu em seu ministério algo menos que oito meses, e ao morrer transmitiu seu cargo a Estevão. É a este que Dionísio escreve sua primeira carta Sobre o batismo, já que na época havia-se levantado um importante problema, a saber, se se deveria purificar de novo com o batismo aos que se convertiam de uma heresia qualquer. Havia prevalecido ao menos um costume antigo: usar com estas pessoas apenas a oração com imposição de mãos.

 

III

[De como Cipriano, com seus bispos, foi o primeiro a sustentar a opinião de que deveriam ser purificados pelo batismo os que se convertiam do erro herético]

1. Cipriano, pastor da igreja de Cartago e primeiro dos de então[462], cria que não se deveria admitir quem não tivesse primeiramente sido purificado do erro mediante o batismo. Mas Estevão, por outro lado, julgando que não se deveria juntar inovação nenhuma contrária à tradição que havia prevalecido desde o princípio, desagradou-se muito com ele.

 

IV

[Quantas cartas Dionísio compôs sobre este assunto]

1. Dionísio tratou longamente do assunto com ele por carta, e no final mostra-lhe que, uma vez acalmada a perseguição, todas as igrejas de todas as partes rechaçaram a inovação de Novato e recuperaram a paz umas com as outras. Escreve assim:

 

V

[Da paz depois da perseguição]

  1. 1.            "Mas saiba agora, irmão, que se uniram todas as igrejas que anteriormente se achavam separadas, as do Oriente e as de mais longe ainda, e que todos os que as presidem em todas as partes têm o mesmo sentimento, extrema­mente contentes com esta paz inesperada. Demetriano em Antioquia, Teoctisto em Cesaréia, Mazabanes em Elia, Marino em Tiro (com a morte de Alexandre)[463], Heliodoro em Laodicéia (falecido Telimidro), Heleno em Tarso e todas as igrejas da Cilicia, assim como Firmiliano e toda a Capadócia. Nomeei somente os bispos mais eminentes, para não alongar minha carta nem tornar pesado meu discurso.
  2. 2.            As duas Sírias inteiras e a Arábia - às quais em todos os momentos socorrestes e às quais agora tens escrito -, assim como Mesopotâmia, o Ponto e Bitínia, e para dizê-lo em uma palavra, todas, por toda parte, saltam de alegria e glorificam a Deus por esta concórdia e amor fraterno."
  3. 3.     Isto diz Dionísio. Quanto a Estevão, depois de ter cumprido seu ministério durante dois anos, sucede-o Sixto. Escrevendo a este sua segunda carta sobre o batismo, Dionísio expõe conjuntamente a opinião e a sentença de Estevão e dos demais bispos. Sobre Estevão diz o seguinte:
  4. 4.     "Havia ele pois escrito anteriormente sobre Heleno e também sobre Firmi­liano e todos da Cilicia, da Capadócia e, evidentemente, da Galácia e de todos os povos limítrofes, que daí em diante não estariam em comunhão com eles, por esta mesma razão, porque - dizia - rebatizam os hereges.
  5. 5.     E considera a magnitude do assunto, porque, em realidade, haviam-se tomado decisões sobre isto nos maiores concílios de bispos, segundo minhas infor­mações, de modo que aos que provinham das heresias se fazia passar novamente por um catecumenato e depois os lavavam e purificavam novamente da sujeira de seu antigo e impuro fermento[464]. E eu lhe escrevi perguntando-lhe sobre todos estes pontos."
  6. 6.     E depois de outras coisas, diz:

"E a nossos amados co-presbíteros Dionísio e Filemon, que primeiramente pensavam como Estevão e me escrevem sobre os mesmos assuntos, escrevi-lhes primeiro brevemente e agora com muito mais amplitude."

 

VI

[Da heresia de Sabelio]

1.   E isto é o que há sobre a questão mencionada.

Mas quando na mesma carta, falando também dos hereges sabelianos, assinala que em seu tempo prevaleciam, diz o seguinte: "Porque acerca da doutrina agora surgida em Ptolemaida de Pentápolis, doutrina ímpia e que contém muitas blasfêmias sobre o Deus-Todo-poderoso, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e também muita incredulidade no que se refere a seu Filho unigênito, o primogênito de toda a criação, o Verbo feito homem, assim como também falta de sensibilidade para o Espírito Santo, como chegassem de todas as partes manifestos e irmãos com a intenção de discuti-lo, escrevi algumas coisas conforme minhas possibilidades e com ajuda de Deus, explicando-as de uma maneira bastante didática, e delas te envio as cópias."

 

VII

[Do abominável erro dos hereges, da visão que Deus enviou a Dionísio e da regra eclesiástica que este havia recebido]

1.   E na terceira das cartas sobre o batismo - a que o próprio Dionísio escreve a Filemon, presbítero de Roma -, expõe-se o seguinte:

"Eu também li as obras e as tradições dos hereges, e por breve tempo man­chei minha alma com seus infames pensamentos, mas disso tirei uma van­tagem: poder refutá-los por mim mesmo e abominá-los com muito mais força.

  1. 2.           Em realidade, um irmão, um dos presbíteros, separava-me e me metia medo, porque me deixava envolver no pântano da maldade daqueles; e de fato eu estava manchando minha alma e ele, como comprovei, dizia a verdade.
  2. 3.     Uma visão enviada por Deus veio a dar-me forças e uma voz se dirigiu a mim e me ordenou dizendo expressamente: 'Leia tudo o que cair em tuas mãos, pois tu és bastante para emendar e provar cada coisa, e isto tens desde o princípio e foi causa de tua fé'. Eu aceitei a visão, que concordava bem com a sentença apostólica que diz aos mais robustos: Sede cambistas experimentados[465]."
  3. 4.             Logo, depois de dizer algumas coisas sobre todas as heresias, acrescenta: "Eu recebi esta regra e este modelo de nosso bem-aventurado papa[466] Heraclas. Efetivamente, aos que provinham das heresias, ainda que houvessem se separado da Igreja - e com maior razão aos que não haviam se separado, mas que, sendo membros da congregação somente em aparência, na reali­dade era-lhes atribuído estar relacionado com algum dos mestres hereges -, expulsava-os da Igreja e não os admitia, ainda que pedissem, até que hou­vessem exposto publicamente tudo o que houvessem escutado entre os adversários; então os admitia à assembléia, sem exigir para eles um novo batismo, uma vez que já haviam anteriormente recebido dele o santo banho."
  4. 5.             E novamente, depois de ter discutido longamente o problema, acrescenta o que segue:

"Aprendi também isto: que não somente os africanos introduziram agora este costume, mas que isto foi decidido muito antes, nos tempos dos bispos que nos precederam nas igrejas mais populosas e nos concílios dos irmãos, em Iconio, em Sinade e em muitas partes. Não me atrevo a subverter suas decisões e fazê-las entrar em luta e rivalidade, porque não mudarás de lugar, diz-se, os marcos de teu vizinho que teus pais puseram[467]."

6.   A quarta de suas cartas sobre o batismo ele escreveu a Dionísio em Roma, então honrado com o presbiterado, mas que não muito depois recebeu também o episcopado daquela igreja. Por esta carta pode-se reconhecer como este era um homem ilustrado e admirável, segundo atesta Dionísio de Alexandria, que depois de outras coisas escreve-lhe fazendo menção ao assunto de Novato nos seguintes termos:

 

VIII

[Da heterodoxia de Novato]

1. Porque a Novaciano odiamos com razão, pois cindiu a Igreja, arrastou alguns irmãos à impiedade e à blasfêmia, transmitiu também um ensinamento sacrílego sobre Deus[468], caluniou nosso bondoso Senhor Jesus Cristo acusando-o de ser impiedoso[469] e, por complemento a todo o dito, anulava o santo batismo, subvertia a fé e a confissão[470] que o precedem, e expulsava por completo o Espírito Santo dos mesmos, ainda que houvesse alguma esperança de que permanecesse ou inclusive de que voltasse a eles."

 

IX

[Do ímpio batismo dos hereges]

1.   Também sua quinta carta foi escrita ao bispo de Roma Sixto. Nela, depois de dizer muitas coisas contra os hereges, expõe nos seguintes termos algo ocorrido em seu tempo:

"Porque de fato, irmão, também eu necessito conselho e peço teu parecer para um assunto importante que me foi apresentado, e temo equivocar-me.

  1. 2.            Efetivamente, um dos irmãos admitidos à comunidade, fiel antigo, segundo críamos, formava parte da assembléia já muito antes de minha ordenação -e antes de instalar-se o bem-aventurado Heraclas -, achando-se junto aos recém-batizados, e tendo escutado as perguntas e as respostas, acercou-se de mim chorando e lamentando-se, caiu aos meus pés, e confessava e jurava que o batismo com que havia sido batizado entre os hereges não era este nem tinha absolutamente nada em comum com ele, já que aquele estava cheio de impiedade e blasfêmias.
  2. 3.            E dizia que agora tinha a alma inteiramente trespassada pela dor e que não se atrevia sequer a levantar os olhos para Deus, tendo começado naquelas palavras e práticas sacrílegas, e por isto pedia poder obter esta purificação, esta acolhida, esta graça puríssima.
  3. 4.     Isto precisamente é o que eu não ousei fazer, e lhe disse que bastava para isto a comunhão em que estava admitido há tão longo tempo. Eu efetivamente não poderia atrever-me a reconstruir desde o começo[471] a alguém que ouviu a Eucaristia, respondeu com os outros ao Amem, esteve de pé ante a mesa, estendeu suas mãos para receber o sagrado alimento, recebeu-o e durante bastante tempo participou no corpo e no sangue de nosso Senhor. E exortava-o a ter ânimo e a acercar-se e participar das coisas santas com fé segura e boa esperança.
  4. 5.            Mas ele não pára de chorar e treme ao acercar-se à mesa, e apenas depois de muitos pedidos consegue acompanhar-nos de pé nas orações[472]."

6.   Além das cartas citadas, conserva-se também dele outra sobre o batismo, que ele e a comunidade que governava dirigem a Sixto e à igreja de Roma. Nela expõe a doutrina acerca do problema comentado, por meio de uma longa demonstração. Também se conserva dele, depois destas, outra dirigida a Dionísio de Roma, a que trata de Luciano. Isto é o que há sobre eles.

 

X

[De Valeriano e sua perseguição]

  1. 1.            Galo e sua equipe, depois de terem detido o comando quase dois anos, foram derrotados, sucederam-lhes no governo Valeriano e seu filho Galieno.
  2. 2.     Outra vez pois, nos é dado conhecer o que conta Dionísio por sua carta dirigia a Hermamon, na qual leva sua narrativa da seguinte maneira:

"E também a João foi igualmente revelado; E foi-lhe dada, diz, uma boca que profere arrogâncias e blasfêmias, e lhe foram dados poder e quarenta e dois meses[473].

  1. 3.            Mas ambas as coisas[474] são de admirar em Valeriano, e sobretudo deve-se considerar como era no princípio, como era favorável e benevolente para com os homens de Deus, porque nenhum outro imperador, nem mesmo aqueles que se diz que foram abertamente cristãos, teve uma disposição tão favorável e acolhedora. No começo recebia-os com uma familiaridade e uma amizade manifestas, e toda sua casa estava cheia de homens piedosos e era uma igreja de Deus[475].
  2. 4.     Mas o mestre e chefe supremo dos magos do Egito conseguiu persuadi-lo a se desembaraçar deles, e lhe ordenava matar e perseguir os puros e santos varões, porque eram contrários e obstáculo de seus infames e abomináveis encantamentos (pois são, efetivamente, e eram capazes, com sua presença e com sua vista, e mesmo somente com sua respiração e o som de suas vozes, de destruir as armadilhas dos pestíferos demônios), e lhe sugeria realizar iniciações impuras, sortilégios abomináveis e ritos de maus auspícios, assim como degolar pobres crianças, imolar filhos de pais desafortunados, abrir entranhas de recém-nascidos e cortar e despedaçar as criaturas de Deus, como se por isso tudo pudessem ser felizes."

5.   E a isto acrescenta o seguinte:

"Em conseqüência, Macriano ofereceu-lhes[476] bons sacrifícios de ação de graças pelo império que esperava. Ele, que no princípio havia estado à frente das contas universais do imperador, não teve um só pensamento razoável nem universal, mas caiu sob a maldição do profeta que diz: Ai dos que profetizam segundo seu próprio coração e não vêem o universal![477].

6.   E não compreendeu a providência universal nem temeu o juízo do que está antes de tudo, através de tudo e sobretudo[478], pelo que converteu-se em inimigo da Igreja universal, tornou-se alheio e desterrou a si mesmo da misericórdia de Deus, e fugiu para muito longe de sua própria salvação, mostrando nisto a verdade de seu próprio nome[479]."

7.   E depois de outras coisas volta a dizer:

"Valeriano, de fato, induzido por tais excessos, viu-se objeto de insultos e ultrajes[480], segundo a sentença de Isaías: E estes escolheram para si os caminhos e as abominações que sua alma quis; pois eu não preferirei suas zombarias e hei de recompensar-lhes seus pecados[481].

  1. 8.            Ele[482], por sua vez, enlouquecia pelo império, apesar de não merecê-lo; e não podendo revestir com os ornamentos imperiais seu corpo aleijado, propôs seus dois filhos, que assim receberam os pecados paternos, pois foi bem clara neles a predição feita por Deus: Eu, que castigo os pecados dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam[483].
  2. 9.     Com efeito, ao lançar seus próprios malvados desejos, que se haviam frustrado, sobre as cabeças de seus filhos, também lhes transferiu sua própria maldade e seu ódio a Deus[484]."

E isto é o que Dionísio diz sobre Valeriano.

 

XI

[Do que ocorreu a Dionísio e aos do Egito na perseguição]

  1. 1.            Por outro lado, quanto à perseguição de seu tempo, que crescia terrivelmente, suas próprias palavras, dirigidas contra Germano, um bispo de seu tempo que tentava difamá-lo, declaram quanto ele e outros tiveram que suportar por causa de sua piedade para com o Deus do universo. Expõe-no da seguinte maneira:
  2. 2.            "Mesmo assim, realmente corro o perigo de cair em grande loucura e estu­pidez se me vejo obrigado a expor a admirável dispensação de Deus para conosco. Mas como é bom - diz - ocultar o segredo do rei, mas glorioso revelar as obras de Deus[485], revelarei a violência de Germano.
  3. 3.            Eu não vim só ante Emiliano[486], mas acompanhavam-me meu co-presbítero Máximo e os diáconos Fausto, Eusébio e Queremon; e conosco entrou um dos irmãos de Roma ali presentes.
  4. 4.      E Emiliano não me disse primeiro em bom tom: 'Não tenham reuniões', por­que isto seria supérfluo e sem importância para ele, que ia direto ao assunto. Porque para ele, a questão não era que não nos reuníssemos com outros, mas que nós mesmos não fôssemos cristãos, e por isso nos intimava a deixar de sê-lo, pensando que se eu mudasse de parecer os outros me seguiriam.
  5. 5.             Mas eu dei uma resposta que não se diferenciava muito nem se afastava do Há que se obedecer mais a Deus do que aos homens![487], e abertamente testemunhei que adoro ao Deus único e a nenhum outro, e que jamais mudaria de parecer nem deixaria de ser cristão. Então nos ordenou andar até uma aldeia próxima ao deserto, chamada Kefró[488].
  6. 6.             Mas escutai o que um e outro disseram, tal como foi registrado. 'Introduzidos Dionísio, Fausto, Máximo, Marcelo e Queremon, Emiliano, que exerce como governador, disse:'.. .e verbalmente conversei convosco sobre a humanidade que nossos senhores empregam para convosco.
  7. 7.             Efetivamente deram-vos o poder de salvar-vos, contanto que queirais voltar ao que é conforme a natureza, adorar os deuses salvadores de seu império e esquecer-vos do que vai contra a natureza. Que dizeis pois a isto? Pois eu espero que vós não sejais uns ingratos para com esta sua humanidade, posto que vos estão exortando ao melhor'.
  8. 8.             Dionísio respondeu: 'Não todos adoram a todos os deuses, mas cada um adora aos que crê que o são, e assim nós rendemos culto e adoramos ao Deus único e criador de todas as coisas, o que pôs também o império nas mãos dos augustos Valeriano e Galieno, amados de Deus, e a ele dirigimos continua­mente nossas súplicas pelo império, com o fim de que permaneça inabalável'.
    1. 9.             Emiliano, que exerce como governador, disse: 'Pois, quem vos impede de adorar também a este, se é que é Deus, com os deuses que o são por natureza? Porque vos é ordenado dar culto aos deuses, e deuses que todo o mundo conhece'. Dionísio respondeu: "Nós não adoramos a nenhum outro'.
    2. 10.  Emiliano, que exerce como governador, disse: 'Estou vendo que vós sois não somente ingratos, mas também insensíveis à mansidão de nossos augus­tos; pelo que não ireis permanecer na cidade, mas sereis deportados às regiões da Líbia, a um lugar chamado Kefró; é o local que escolhi, por man­dato de nossos augustos, e de nenhuma maneira vos será permitido, nem a vós nem a nenhum outro, fazer reuniões ou entrar nos chamados cemitérios.
    3. 11.  Agora bem, se acontecer que algum não se apresentar no lugar que lhe mandei[489] ou for encontrado em reunião com alguém, sobre si mesmo terá chamado o perigo, pois não lhe há de faltar a necessária vigilância. Retirai-vos pois para onde vos mandei'.

E, apesar de que me achava doente, obrigou-me a sair apressadamente, sem dar sequer o prazo de um dia. Que tempo tinha eu, pois, para convocar ou não convocar uma reunião?[490]"

12. Logo, depois de outras coisas, diz:

"Mas, com a ajuda de Deus, nem sequer da reunião visível nos abstivemos, mas, por uma parte punha grande empenho em reunir os da cidade como se eu estivesse com eles: Ausente com o corpo — diz — mas presente com o espírito[491]; e por outra parte, em Kefró veio a habitar conosco uma igreja numerosa, pois alguns irmãos nos seguiam da cidade e outros juntavam-se a nós desde o Egito.

  1. 13.     E ali mesmo Deus nos abriu uma porta para a palavra[492]. No início, é verdade, nos perseguiram e apedrejaram, mas logo alguns pagãos, muitos, deixaram os ídolos e se converteram a Deus. Nunca antes tinham recebido a palavra, e só então semeava-se entre eles pela primeira vez, graças a nós.
  2. 14.     É como se Deus nos tivesse conduzido até eles por esta causa, pois assim que cumprimos este ministério, novamente nos afastou.

De fato, Emiliano quis trasladar-nos a lugares aparentemente ainda mais ásperos e mais líbicos, e mandou que os de todas as partes confluíssem para Mareota, depois de designar para cada um uma aldeia da região. Mas a nós colocou mais no caminho, para prender-nos em primeiro lugar. Porque era evidente que ia dispondo e preparando de modo que, quando quisesse prender-nos todos, pudesse ter-nos bem à mão.

15. Eu, de minha parte, quando me ordenaram partir para Kefró, por mais que ignorasse em que direção se achava este lugar, pois quase não se tinha ouvido sequer o nome antes, ainda assim, parti até animado e tranqüilo. Mas quando anunciaram que deveria trasladar-me à região de Colutio, os que estavam presentes sabem como me afetou (pois aqui devo acusar-me a mim mesmo).

  1. 16.     Na mesma hora molestou-me e o tomei por grande mal, porque, ainda que esses lugares não fossem mais conhecidos ou familiares, ainda assim, afirmava-se que a região carecia de cristãos e de homens honrados, e que, em troca, achava-se exposta às moléstias dos viandantes e às incursões dos salteadores.

17. Consegui porém consolar-me ao recordarem-me os irmãos que estava mais perto da cidade e que, se em Kefró tinha numerosas relações com os irmãos vindos do Egito, ao ponto de poder ter assembléias mais amplas, ali, por outro lado, com a cidade mais perto, gozaríamos mais freqüentemente da visão dos que verdadeiramente eram muito amados e da maior intimidade e amizade, porque eles viriam e se hospedariam, e como nos bairros mais afastados, haveria reuniões parciais, e assim sucedeu."

  1. 18.     E depois de outras coisas ainda escreve o seguinte acerca do que lhe sucedeu: "Germano se gaba de muitas confissões[493]! Ao menos pode dizer que é muito o que houve contra ele, tanto quanto pode enumerar de nós: sen­tenças, confiscos, proscrições, despojo dos bens, destituição de dignidades, indiferença pela glória mundana, desprezo de elogios de governantes e senadores, inclusive dos contrários, e suportar ameaças, gritarias hostis, perigos, perseguições, vida errante, angústias e toda classe de tribulações, as mesmas que me sucederam sob Décio e Sabino e mesmo agora sob Emiliano.

19. Mas, de onde apareceu Germano? Que documento há sobre ele? Pois bem, estou cansado desta grande loucura em que vou caindo[494] por culpa de Germano; e pelo mesmo motivo desisto também de dar explicações deta­lhadas dos acontecimentos aos irmãos que já os conhecem."

20. E o mesmo Dionísio, na carta a Domécio e a Dídimo, volta a mencionar os eventos da perseguição nestes termos:

"Mas é supérfluo fazer-vos uma lista nominal dos nossos, que são muitos e não os conheceis; sabei contudo que homens e mulheres, jovens e velhos, donzelas e anciãos, soldados e civis, e todo sexo e toda idade, vencedores na luta, uns por açoites e fogo e outros pelo ferro, todos receberam suas coroas.

21. Para outros, porém, não correu ainda um tempo longo o bastante para parecer aceitável ao Senhor. Tampouco a mim até o presente, pelo que se vê, pelo que me reservou para o momento oportuno que bem conhece o mesmo que diz: Em tempo aceitável te ouvi e no dia da salvação te
socorri[495].

22. Como perguntais por nossa situação e quereis que vos informe de como vamos indo, seguramente já ouvistes como nos conduziam prisioneiros um Centurião e oficiais com os soldados e criados que iam com eles, a mim e a Caio, Fausto, Pedro e Paulo, e apresentando-se algumas pessoas de Mareota, nos arrebataram, apesar de nós mesmos, arrastando-nos à força ao nos
negarmos a segui-los[496].

  1. 23.  E agora eu, Caio e Pedro, os três somente, nos achamos encerrados num local deserto e árido da Líbia, órfãos dos demais irmãos, afastados três dias de caminhada de Paretonio.
  2. 24.  E pouco mais abaixo segue dizendo:

"Ainda assim, na cidade[497] acham-se escondidos e visitam em segredo os irmãos, de um lado os presbíteros Máximo, Dióscoro, Demétrio e Lúcio -já que os mais conhecidos no mundo, Faustino e Aquilas, andam errantes pelo Egito -, e de outro os diáconos que sobreviveram aos que morreram na ilha[498]: Fausto, Eusébio e Queremon. Eusébio é aquele a quem Deus forta­leceu e preparou desde o princípio para cumprir ardorosamente o serviço aos confessores encarcerados e levar a cabo, não sem perigo, o enterro dos corpos dos perfeitos e santos mártires.

  1. 25.  De fato, até o presente o governador não deixa de dar morte cruel, como disse antes, a alguns dos que são conduzidos a ele, de dilacerar outros em torturas e de consumir em cárceres e prisões o restante, ordenando que ninguém deles se aproxime, e perguntando se alguém aparece. E mesmo assim Deus não cessa de aliviar os oprimidos, graças ao ânimo e perseverança dos irmãos."
  2. 26.  Isto narra Dionísio. Mas há que se saber que Eusébio, a quem ele chamou diácono, pouco depois foi instituído bispo de Laodicéia da Síria. Quanto a Máximo, que então disse que era presbítero, sucedeu ao próprio Dionísio no ministério dos irmãos em Alexandria, enquanto que Fausto, que naque­le momento se distinguiu junto com ele por sua confissão, sobreviveu até a perseguição de nossos dias, e já muito ancião e pleno de dias, consu­mou seu martírio em nosso tempo[499], decapitado. Isto sucedeu a Dionísio naquele tempo.

 

 

XII

[Dos que morreram mártires em Cesaréia da Palestina]

1. Na mencionada perseguição de Valeriano, três foram os que sobressaíram em Cesaréia da Palestina por sua confissão de Cristo, e lançados como pasto às feras, adornaram-se com o divino martírio. Um deles chamava-se Prisco, o outro Malco e o terceiro Alexandre. Diz-se que estes viviam no campo e que primeiro acusaram a si mesmos de negligência e covardia por mostrarem-se indiferentes aos prêmios que a ocasião repartia aos que ardiam de celestial desejo e por não arrebatarem antecipadamente a coroa do martírio; e que depois de haverem assim deliberado, encaminharam-se a Cesaréia, apresentaram-se ao juiz e conseguiram para suas vidas o final que acabamos de dizer. Também contam que além destes, durante a mesma per­seguição e na mesma cidade, uma mulher sustentou o mesmo combate; mas uma tradição afirma que esta era da heresia de Márcion.

 

XIII

[Da paz em tempos de Galieno]

1. Mas não muito depois, enquanto Valeriano sofria sua escravidão entre os bárbaros, começou a reinar sozinho seu filho, e governou com a maior sensatez. Imediatamente pôs fim por meio de editos à perseguição contra nós, e ordenou por uma resolução[500] aos que presidiam a palavra que livre­mente exercessem suas funções costumeiras. A resolução rezava assim: "O imperador César Publio Licinio Galieno Pio Félix Augusto, a Dionísio, Pina, Demétrio e aos demais bispos: Ordenei que o benefício de meu dom se estenda por todo o mundo, com o fim de que se evacuem os lugares sagrados e por isso também possais desfrutar da regra contida em minha resolução, de maneira que ninguém possa molestar-vos. E aquilo que possais recuperar, na medida do possível, já faz tempo que o concedi. Para tanto, Aurélio Cirínio, que está à frente dos assuntos supremos, manterá cuidadosa­mente a regra dada por mim[501]."

Fique inserida aqui, para maior claridade, esta resolução, traduzida do latim. Conserva-se também, do mesmo imperador, outra disposição que dirigiu a outros bispos e na qual permite a recuperação dos lugares chamados cemitérios.

 

XIV

[Os bispos que floresceram naquele tempo]

1. Neste tempo Sixto seguia ainda regendo a igreja de Roma; Demetriano a de Antioquia, em sucessão a Fábio; e Firmiliano a de Cesaréia da Capadócia; além destes, regiam as igrejas do Ponto Gregório e seu irmão Atenodoro, discípulos de Orígenes. Quanto a Cesaréia da Palestina, tendo morrido Teoctisto, recebe o episcopado em sucessão Domno, mas tendo este sobrevivido pouco tempo, foi instituído sucessor Teotecno, nosso contempo­râneo, que também é da escola de Orígenes. Mas também em Jerusalém, morto Mazabanes, recebe em sucessão o trono Himeneo, o mesmo que brilhou muitos anos em nossa época.

 

XV

[De como em Cesaréia morreu mártir Marino]

  1. 1.            Por estes anos, apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz, em Cesaréia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um tal Marino, que pertencia aos altos cargos do exército e se distinguia por sua linhagem e suas riquezas. A causa foi a seguinte:
  2. 2.            Entre os romanos há uma insígnia de honra: a vide[502], e dizem que aqueles que a alcançam convertem-se em centuriões. Havendo uma vaga liberada, o escalão designava Marino para esta promoção. Já estava a ponto de receber a honra quando se apresentou outro ante o tribunal afirmando que, segundo as antigas leis, Marino não podia tomar parte nas dignidades romanas, já que era cristão e não sacrificava aos imperadores[503], e que o cargo corres­pondia a ele.
  3. 3.            Ante isto, o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e começou a perguntar a Marino o que pensava, mas quando viu que este insistia em confessar que era cristão, concedeu-lhe o prazo de três horas para que refletisse.
  4. 4.     Achando-se fora do tribunal, acercou-se dele Teotecno, bispo do lugar, e afastou-o para conversar, e tomando-o pela mão conduziu-o à igreja; uma vez dentro, colocou-o ante o próprio santuário e, levantando-lhe um pouco o manto, mostrou sua espada, que pendia, ao mesmo tempo que apresentava e contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos, mandando que entre as duas coisas escolhesse a que preferia. Mas ele, sem vacilar, estendeu a direita e tomou a divina Escritura. "Mantém-te pois - disse-lhe Teotecno -, mantém-te aferrado a Deus e oxalá alcances, fortalecido por Ele, o que escolheste. Vai em paz."

5.    Saiu imediatamente dali. Um pregoeiro lançava já seu grito chamando-o de novo ante o tribunal. De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado. Apresentou-se então ante o juiz, e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua fé, em seguida, tal como estava, foi conduzido ao suplício e foi executado.

 

XVI

[A história de Astirio]

1. Ali também[504] Astirio é lembrado por sua grande franqueza, agradável a Deus. Era membro do senado romano, favorito dos imperadores e conhecido de todos por sua nobre linhagem e por suas propriedades. Achava-se presente quando se executou o mártir, e apoiando o ombro, levantou o cadáver sobre sua esplêndida e rica vestimenta e levou-o para enterrá-lo com grande magnificência e dar-lhe digna sepultura. Os próximos e conhecidos deste homem que sobreviveram até nossos dias recordam outras inúmeras façanhas suas, inclusive a que segue, grandiosa.

 

XVII[505]

1. Em Cesaréia de Filipo, que os fenícios chamam Paneas, diz-se que, nas fontes que ali surgem, ao pé da montanha chamada Paneion, e das quais nasce o Jordão, em certo dia de festa uma vítima imolada é ali lançada, e esta, por obra do demônio, torna-se invisível de modo prodigioso. O fato é uma maravilha famosa para os que se acham presentes. Pois bem, uma vez Astirio assistia o evento, e contemplando a multidão afetada pelo fato, compadeceu-se de seu erro, e levantando os olhos ao céu suplicou por Cristo ao Deus que está sobre todas as coisas para que confundisse o demônio enganador do povo e que o fizesse deixar de enganar os homens. E conta-se que assim que orou deste modo, a vítima começou a nadar nas fontes e desta maneira cessou para eles o prodígio, e daí em diante não se deu nenhum milagre em torno daquele lugar.

 

XVIII

[Dos sinais da magnificência de nosso Salvador existentes em Paneas]

  1. 1.            Mas já que fizemos menção a esta cidade, creio que não é justo passar por alto um relato digno de memória inclusive para nossos descendentes. De fato, a hemorrágica, que pelos Evangelhos[506] sabemos que encontrou a cura de seu mal por obra de nosso Salvador, diz-se que era originária desta cidade e que nela se encontra sua casa, e que ainda subsistem monumentos admiráveis da boa obra nela realizada pelo Salvador:
  2. 2.            Efetivamente, sobre uma pedra alta, diante das portas de sua casa, alça-se uma estátua de mulher, em bronze, com um joelho dobrado e com as mãos estendidas para a frente como uma suplicante; e em frente a esta, outra do mesmo material, efígie de um homem em pé, belamente vestido com um manto e estendendo sua mão para a mulher; a seus pés, sobre a mesma pedra, brota uma estranha espécie de planta, que sobe até a orla do manto de bronze e que é um antídoto contra todo tipo de enfermidades.
  3. 3.            Dizem que esta estátua reproduzia a imagem de Jesus. Conservava-se até nossos dias, como comprovamos nós mesmos de passagem por aquela cidade.
  4. 4.     E não é estranho que tenham feito isto os pagãos de outro tempo que receberam algum benefício de nosso Salvador, quando perguntamos por que se conservam pintadas em quadros as imagens de seus apóstolos Paulo e Pedro, e inclusive do próprio Cristo, coisa natural, pois os antigos tinham por costume honrá-los deste modo, simplesmente, como salvadores, segundo o uso pagão vigente entre eles[507].

 

XIX

[Do trono de Tiago]

1. O trono de Tiago, primeiro que recebeu do Salvador e dos apóstolos o episcopado da igreja de Jerusalém e ao qual os livros divinos chamam in­clusive de irmão de Cristo[508], foi preservado até hoje. Os irmãos do lugar vêm rodeando-o de cuidados por sucessivas gerações e claramente mostram a todos que veneração têm os antigos e continuam tendo os de hoje para com os santos varões, por serem amados de Deus. Basta já disto.

 

XX

[Das "cartas festivas[509]" de Dionísio, nas quais fixa também um cânon sobre a Páscoa]

1. Quanto a Dionísio, além de suas cartas já mencionadas, compôs por aquele tempo outras que ainda se conservam: as festivas. Nelas tece palavras muito mais solenes acerca da festa da Páscoa. Uma é dirigida a Flávio, e outra a Domécio e Dídimo, na qual propõe inclusive um cânon de oito anos, alegando que não convém celebrar a festa da Páscoa senão depois do equinócio da primavera. Além destas cartas escreveu também outra a seus co-presbíteros de Alexandria, e ao mesmo tempo a outras pessoas em termos distintos; estas quando ainda durava a perseguição.

 

XXI

[Do que aconteceu em Alexandria]

1. Apenas havia-se restabelecido a paz, e já estava de volta a Alexandria; mas tendo eclodido outra sedição e uma guerra, de modo que não lhe era possível visitar a todos os irmãos da cidade, divididos como estavam em um e outro bando da sedição, uma vez mais, na festa da Páscoa[510], da própria Alexan­dria, como se estivesse do outro lado da fronteira, entrou em comunicação com eles por carta.

2.   E escrevendo também depois disto a Hieraco, um bispo do Egito, outra carta festiva, menciona a rebelião dos alexandrinos de seu tempo nestes termos:

"E quanto a mim, por que admirar-se de que me seja penoso comunicar-me inclusive por carta com os que moram longe, sendo que até conversar comigo mesmo e deliberar com minha própria alma torna-se impossível?

  1. 3.            O certo é que, na relação com minha própria entranha, isto é, com os irmãos que compartem meu teto e meus sentimentos, cidadãos também de minha própria igreja, necessito correspondência epistolar, e ainda esta não vejo como arranjar-me para transmiti-la, porque seria mais fácil atravessar, já não digo para lá da fronteira, mas até do Oriente para o Ocidente, do que chegar a Alexandria da própria Alexandria;
  2. 4.     pois mais vasta e mais impraticável do que aquele enorme e não trilhado deserto que Israel atravessou em duas gerações[511] é a avenida mais central da cidade. E daquele mar que, partido e separado por dois muros, aqueles acha­ram vadeável para seus cavalos, enquanto os egípcios eram afundados na mesma trilha, fazem imagem os portos agradáveis e sem ondas, pois muitas vezes, pelos assassinatos neles cometidos, parecem iguais a um mar Vermelho.
  3. 5.            E o rio que banha a cidade, algumas vezes foi visto mais ressecado do que o deserto sedento e mais árido que aquele no qual, ao atravessá-lo, Israel passou tanta sede que Moisés gritou suplicando e por obra do único que faz maravilhas brotou bebida para eles de uma rocha;
  4. 6.            e outras vezes, ao contrário, tanto transbordou que inundou toda a várzea, as e ruas e os campos, até ameaçar com a vinda das águas dos tempos de Noé. E sempre corre manchado com sangue, por homicídios e afogamentos, como nos tempos de Moisés, quando converteu-se em sangue para o faraó e empestava.
    1. 7.             E que outra água poderia purificar a água que tudo purifica? E como o vasto oceano, intransponível para o homem, poderia derramar-se e purificar este mar amargo? Ou como o grande rio que sai do Éden poderia lavar o sangue impuro, ainda que vazasse os quatro braços em que se divide para um só: o Giom?[512]
    2. 8.      E quando poderia tornar-se puro o ar infestado pelos miasmas procedentes de todas as partes? Porque tais hálitos emanam da terra, tais ventos do mar, tais eflúvios dos rios e tais exalações dos portos, que o rocio poderia ser o pus de cadáveres que apodrecem em todos os elementos indicados.
    3. 9.      E logo o povo se admira e está incerto de onde provém as contínuas pestes e as graves enfermidades, de onde as corrupções de toda espécie e a variada e reiterada mortandade dos homens, e por que a grande cidade não sustenta já em si mesma aquela tão grande multidão de homens que antes alimentava, começando pelas crianças de peito até os anciãos de extrema velhice, passando pelo grande número de 'velhos prematuros', como eram chamados. Ao contrário, os quarentões e mesmo os setentões eram tão numerosos então, que agora seu número não chega a completar-se ainda que estejam inscritos e assinalados para a ração pública de víveres desde os quatorze até os oitenta anos; e os que aparentam ser os mais jovens parecem contemporâneos dos mais velhos de então.
    4. 10.  E desta maneira, ainda que vendo constantemente diminuída e consumida a família humana sobre a terra, não tremem, apesar de aproximar-se cada vez mais sua completa destruição."

 

XXII

[Da doença que sobreveio em Alexandria]

  1. 1.            Depois disto, quando a peste interrompeu a guerra e a festa se aproximava, novamente entrou em comunicação por carta com os irmãos, indicando-lhes os padecimentos desta calamidade com estas palavras:
  2. 2.            "Certamente aos demais homens[513] não parecerá tempo de festas a presente ocasião. Para eles, nem este nem outro o é; não me refiro aos tempos de luto, mas nem sequer dos que se poderiam crer sumamente alegres. Atualmente, ao menos, é certo que tudo são lamentações, tudo prantos, e os gemidos ressoam em toda a cidade por causa da multidão dos mortos e dos que cada dia continuam morrendo;
  3. 3.            porque, como está escrito dos primogênitos do Egito, assim também agora levantou-se um grande clamor, pois não há casa onde não haja um morto[514]; e oxalá não fosse mais do que um, porque em verdade são muitas e terríveis as coisas que sucederam inclusive antes disto.
  4. 4.            Primeiramente nos expulsaram, e somos os únicos que, apesar de sermos perseguidos por todos e estarmos condenados a morrer, celebramos a festa, inclusive então, e cada lugar de tribulação de cada um se converterá em para­gem de assembléia festiva: campo, deserto, nave, albergue, cárcere. Mas a mais esplendorosa de todas as festas foi celebrada pelos mártires perfeitos, premiados com o festim do céu.
  5. 5.            E depois disto lançaram-se encima a guerra e a fome, que sofremos junto com os pagãos: suportamos todos os maus-tratos que nos deram, mas entra­mos à parte no que eles faziam e padeciam entre si, e mais uma vez gozamos da paz de Cristo, que só a nós foi dada.
  6. 6.            Tínhamos conseguido, tanto eles quanto nós, um brevíssimo intervalo quando irrompeu esta enfermidade, coisa mais temível para eles do que todo temor, e portanto mais cruel do que qualquer calamidade, e como escreve um par­ticular escritor seu, 'única coisa que sobrepujou toda previsão'[515]. Mas não é assim para nós, pois foi um exercício e uma prova em nada inferiores às demais. Efetivamente, em nada nos perdoou, ainda que tenha ceifado muitos entre os pagãos."
  7. 7.            E em continuação acrescenta o que segue:

"Em todo caso, a maioria de nossos irmãos, por excesso de seu amor e de seu afeto fraterno, esquecendo-se de si mesmos e unidos uns com os outros, visitavam os enfermos sem precaução, serviam-nos com abundância, cuida­vam-nos em Cristo e até morriam contentíssimos com eles, contagiados pelo mal dos outros, atraindo sobre si a enfermidade do próximo e assumindo voluntariamente suas dores. E muitos que curaram e fortaleceram outros, morreram, transferindo para si mesmos a morte daqueles e convertendo então em realidade o dito popular, que sempre parecia ser de mera cortesia: 'Despedindo-se deles humildes servidores'.

  1. 8.            Em todo caso, os melhores de nossos irmãos partiram da vida desde modo, presbíteros - alguns -, diáconos e laicos, todos muito louvados, já que este tipo de morte, pela grande piedade e fé robusta que envolve, em nada parece ser inferior mesmo ao martírio.
  2. 9.            E assim tomavam com as palmas das mãos e em seus seios os corpos dos santos, limpavam-lhes os olhos, fechavam suas bocas e, agarrando-se a eles e abraçando-os, depois de lavá-los e envolvê-los em sudários, levavam-nos sobre os ombros e os enterravam. Pouco depois eles mesmos recebiam os mesmos cuidados, pois sempre os que ficavam seguiam os passos dos que os precederam.
    1. 10.     Já entre os pagãos foi o contrário: até afastavam os que começavam a adoe­cer e repeliam até aos mais queridos, e lançavam os moribundos para as ruas e cadáveres insepultos ao lixo, tentando evitar o contágio e a compa­nhia da morte, tarefa nada fácil até para os que usavam mais engenho em esquivá-la."
    2. 11.     E depois desta carta, quando a cidade já estava em paz, enviou ainda uma carta festiva aos irmãos do Egito, e logo voltou a escrever outras. Conservam-se dele também uma Sobre o sábado e outra Sobre o exercício.
    3. 12.     Comunicando-se uma vez mais por carta com Hermamon e os irmãos do Egito, explica muitas coisas sobre a perversidade de Décio e de seus suces­sores, e menciona a paz dos tempos de Galieno.

 

XXIII

[Do império de Galieno]

  1. 1.     Mas nada é melhor do que ouvir como foram estes acontecimentos: "Assim pois aquele[516], traindo um de seus imperadores e atacando o outro, logo desapareceu com sua pilhagem, sem deixar traços, e todos proclamaram e reconheceram Galieno, que era ao mesmo tempo velho e novo imperador, pois era-o antes e veio depois deles[517].
  2. 2.     Efetivamente, conforme o dito do profeta Isaías: Vede que chega o do prin­cípio, e o que agora surgir será novo[518]. Porque assim como uma nuvem, deslizando sob os raios do sol, por um momento o cobre e sombreia e se mostra em lugar dele, mas logo, quando a nuvem passou ou se desfez, nova­mente surge e reaparece o sol, que antes já havia saído, assim Macriano pôs-se diante e aproximou-se em pessoa ao imponente poder imperial de Galieno, mas já não é[519], posto que não era, enquanto que este é o mesmo que era;
  3. 3.     e o poder imperial, como se tivesse deposto sua vetustez e estivesse nova­mente purificado de sua anterior maldade, floresce agora com maior vigor e é visto e ouvido muito mais longe e vai penetrando por todas as partes".
  4. 4.     Logo, continuando, assinala também o tempo em que escrevia isto com as palavras que seguem:

"Também me agrada examinar novamente os dias dos anos imperiais, porque estou vendo que os mais ímpios, apesar de seu renome, ao fim de pouco tempo caíram no anonimato, enquanto que ele[520], mais santo e amado de Deus, tendo passado já seu sétimo ano, cumpre agora o nono ano no qual celebraremos a festa[521]."

 

XXIV

[De Népos e seu cisma]

1. Além de tudo isto, escreveu também os dois livros Sobre as promessas, cujo tema era Népos, bispo dos do Egito, que ensinava que as promessas feitas aos santos nas divinas Escrituras devem ser interpretadas mais ao modo judeu, e supunha que haveria um milênio de delícias corpóreas sobre esta terra seca.

  1. 2.            Em todo caso, acreditando reforçar sua própria suposição com o Apocalipse de João, compôs sobre ele uma obra que intitulou Refutação dos alegoristas.
  2. 3.            Contra esta obra ergue-se Dionísio em seus livros Sobre as promessas. No primeiro expõe seu próprio pensamento sobre a doutrina, e no segundo discute acerca do Apocalipse de João. Nele faz menção a Népos no começo, e escreve o seguinte sobre ele:
  3. 4.     "Mas como quer que aleguem certo livro de Népos no qual se apóiam mais do que deveriam, como se demonstrasse irrefutavelmente que o reinado de Cristo será sobre a terra, em muitas outras coisas aprovo Népos e o amo: por sua fé, por sua laboriosidade, por seu estudo sério das Escrituras e por sua numerosa produção de hinos, com os quais muitos irmãos vêm se reconfortando até hoje, e meu respeito pelo homem é absoluto, ainda mais estando já morto. Porém, como a verdade me é mais querida e mais estimada do que todas as coisas, deve-se louvá-lo e estar de acordo com ele, sem reservas, se diz algo retamente, mas também, se em algo não parece correto o que escreveu, deve-se examiná-lo e corrigi-lo.
  4. 5.            Para com alguém que está presente e que se explica por palavra, poderia ser suficiente uma conversação oral, que a base de perguntas e respostas vai persuadindo e reduzindo os contendores; mas havendo no meio um escrito, e muito persuasivo segundo alguns, e contando de outra parte com alguns mestres que, em nada estimando a Lei e os Profetas, deixando de seguir os Evangelhos e desprezando as Cartas dos apóstolos, proclamam sem mais o ensinamento deste livro como um grande e oculto mistério, e não permitem a nossos irmãos mais simples ter pensamentos elevados e magníficos sobre a manifestação gloriosa e realmente divina de nosso Senhor, nem de nossa ressurreição dentre os mortos nem de nossa reunião e configuração com Ele, mas os persuadem a esperar coisas mínimas e mortais, como são as presentes, no reino de Deus, é necessário que também nós discutamos com nosso irmão Népos como se estivesse presente."

6.   Ao dito acrescenta, depois de outras coisas, o seguinte:

"Assim pois, achando-me em Arsinoé, onde, como sabes, há muito prevalece esta doutrina, até o ponto de que ocorreram cismas e apostasias de igrejas inteiras, convoquei os presbíteros e mestres dos irmãos das aldeias, e estando presentes também os irmãos que queriam, exortei-os a realizar em público o exame da doutrina.

  1. 7.             Ao me apresentarem este livro como arma e muro inatacável, estive com eles três dias em sessão contínua, da aurora ao anoitecer, tentando emendar o que estava escrito.
  2. 8.      Pude então admirar sobremaneira o equilíbrio, o amor à verdade, a facili­dade de compreensão e a inteligência dos irmãos quando, por ordem e com moderação, desenvolvíamos as perguntas, as objeções e os pontos de coincidência; por um lado, tínhamos nos recusado a nos aterrarmos obstinada e insistentemente às decisões tomadas uma só vez, ainda que isto não nos parecesse justo; e por outro, também não evitávamos as objeções, mas na medida do possível tentávamos abordar os temas propostos e dominá-los; e tampouco nos envergonhávamos de mudar de idéia e concordar se a razão o exigisse, antes, com a melhor consciência, sem disfarces e com o coração aberto a Deus, aceitávamos o que ficasse estabelecido pelas argumentações e pelos ensinamentos das Santas Escrituras.
  3. 9.      E por último, o líder e introdutor desta doutrina, o chamado Coracion, con­fessou e atestou para que todos os irmãos presentes ouvissem que não mais se entregaria a isto, nem discutiria sobre isto, nem o recordaria nem ensinaria, pois estava suficientemente convencido pelos argumentos opostos. E dos outros irmãos, uns se alegravam do colóquio, assim como da condescen­dência e disposição comum para com todos..."

 

XXV

[Sobre o Apocalipse de João]

1.   Logo continuando, pouco mais abaixo, diz o seguinte sobre o Apocalipse de João:

"Assim pois, alguns dos nossos antecessores rechaçaram como espúrio e desacreditaram por completo o livro, examinando capítulo por capítulo e declarando que era ininteligível e ilógico, e seu título enganoso.

  1. 2.            Dizem mesmo que não é de João e que tampouco é Apocalipse[522], estando como está bem velado com o grosso manto da ignorância, e que o autor deste escrito não só não foi nenhum dos apóstolos, mas que nem sequer nenhum santo ou membro da Igreja em absoluto, mas Cerinto[523], o mesmo que instituiu a heresia cerintiana e que quis dar credibilidade a sua própria invenção com um nome digno de fé.
  2. 3.     Na verdade, a doutrina que ele ensina é esta: o reino de Cristo será terreno; e como ele era um amante de seu corpo e inteiramente carnal, sonhava que consistiria no mesmo que ele desejava: fartura do ventre e do que está abaixo do ventre, ou seja: de comidas, de bebidas, de uniões carnais e de tudo aquilo com que lhe parecia que se procurariam estas coisas de uma forma mais bem sonante: festas, sacrifícios e imolação de vítimas.
  3. 4.     Eu, de minha parte, não poderia me atrever a rechaçar o livro, pois são mui­tos os irmãos que o tomam a sério, mas ainda admitindo que o pensamento que encerra excede minha própria inteligência, suponho que o sentido de cada passagem está em certo modo encoberto e é bastante admirável, porque, mesmo que não o compreenda, ainda assim suspeito ao menos que nas palavras se encerra alguma intenção mais profunda.
  4. 5.            Não meço isto nem o julgo com minha própria razão, mas, ainda outorgando a superioridade à fé, cheguei à conclusão de que isto está demasiado alto para ser concebido por mim. E eu não reprovo o que não compreendi, antes até o admiro mais, porque nem sequer o vi."
  5. 6.     Depois disto e depois de examinar todo o livro do Apocalipse e demonstrar que é impossível entendê-lo segundo seu sentido óbvio, continua dizendo: "Depois de concluir toda sua - por assim dizer - profecia, o profeta declara bem-aventurados os que a guardam e também, é verdade, a si mesmo: Bem-aventurado - diz, efetivamente - o que guarda as palavras da profecia deste livro, e eu, João, que estou vendo e escutando estas coisas[524].
  6. 7.     Portanto, não contradirei que ele se chamava João e que este livro é de João. Porque inclusive estou de acordo de que é obra de um homem santo e inspirado por Deus. Mas eu não poderia concordar facilmente em que este fosse o apóstolo, o filho de Zebedeu e irmão de Tiago, de quem é o Evangelho intitulado de João e a Carta católica.
  7. 8.            De fato, pelo caráter de um e de outro, pelo estilo e pela chamada disposi­ção geral do livro, conjeturo que não é o mesmo, já que o evangelista em nenhuma parte escreve seu nome nem prega a si mesmo: nem no Evangelho nem na Carta."
  8. 9.            Logo, um pouco mais abaixo, outra vez diz assim:

"Mas João de nenhuma maneira, nem em primeira nem em terceira pessoa. Porém, o que escreveu o Apocalipse, imediatamente se põe adiante, já no começo: Revelação de Jesus Cristo, que foi dada para mostrar prontamente a seus servos, e que foi revelada enviada por meio de seu anjo a seu servo João, o qual deu testemunho da palavra de Deus e de seu testemunho: tudo o que viu[525].

10. Logo escreve também uma carta: João às sete igrejas que estão na Ásia. Graça e paz a vós outros[526]. Mas o evangelista nem no cabeçalho de sua Carta católica escreveu seu nome, mas começou sem mais pelo próprio mistério da revelação divina: O que era desde o princípio, o que temos ouvido, que vimos com nossos próprios olhos[527]. Por motivo desta revela­ção, efetivamente, o Senhor chamou bem-aventurado a Pedro quando disse:

Bem-aventurado és, Simão, filho de Jonas, pois nem a carne nem o sangue to revelaram, mas meu Pai celestial[528].

11. Mas ocorre que nem na segunda nem na terceira Carta que se consideram de João, ainda que breves, aparece João por seu nome, mas de uma forma anônima achamos escrito: o presbítero[529]. Por outro lado, este outro não achou suficiente nomear-se uma vez só e seguir a explicação, mas repete novamente: Eu, João, vosso irmão e co-partícipe na tribulação, no reino e na paciência de Jesus, estive na ilha chamada Patmos por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus[530]. E ainda, mesmo perto do final, diz o seguinte: bem-aventurado o que guarda as palavras da profecia deste livro, e eu, João, o que está vendo e ouvindo estas coisas[531].

12. Portanto, que é João que escreve isto, temos que crê-lo pois ele o diz; mas não está claro quem seja este, pois não diz, como em muitas passagens do Evangelho, que ele é o discípulo amado pelo Senhor, o que se reclinou sobre seu peito, o irmão de Tiago, a testemunha ocular e ouvinte direto do Senhor.

13. Porque teria dito algo do que acabamos de indicar se quisesse dar-se a conhecer claramente. E mesmo assim, nada disto, antes se disse irmão e companheiro nosso, testemunha de Jesus e feliz por haver contemplado e ouvido as revelações.

14. Eu creio que houve muitos com o mesmo nome do apóstolo João, os quais, por amor a ele e por admirá-lo e escutá-lo e por querer ser amados como ele pelo Senhor, afeiçoaram-se a esse mesmo nome, da mesma forma que entre os filhos dos fiéis abundam os nomes de Paulo e Pedro.

15. Assim pois, nos Atos dos apóstolos há também outro João, de sobrenome Marcos,[532] a quem Barnabé e Paulo tomaram consigo e sobre o qual chega a dizer: E tinham também a João como servidor[533]. Pois bem, se foi este o autor, eu não diria, porque não está escrito que chegou com eles à Ásia, mas diz: Navegando desde Pafos, Paulo e seus companheiros chegaram a Perges da Panfília, enquanto que João se separou deles e voltou a Jerusalém[534].

16. Eu creio que foi outro dos que viveram na Ásia. Diz-se que em Éfeso havia dois sepulcros e que cada um dos dois era atribuído a João[535].

17. E pelos pensamentos, pelas palavras e por sua ordenação, compreende-se naturalmente que um é pessoa diferente do outro. Efetivamente o Evangelho e a Carta concordam entre si.

  1. 18.     E ambos começam igual. Aquele diz: No princípio era o Verbo[536]; e aquele diz: e o Verbo se fez carne e plantou sua tenda entre nós e contemplamos sua glória, glória como do unigênito do Pai[537]; e esta as mesmas palavras um pouco mudadas: o que temos ouvido, o que temos visto com nossos olhos, o que temos contemplado e nossas mãos apalparam acerca do Verbo da vida, e a vida se manifestou...[538].
  2. 19.     Porque isto é o que põe como prelúdio, apontando, segundo o que demons­trou em seguida, aos que andavam dizendo que o Senhor não tinha vindo na carne, pelo que teve também o cuidado de acrescentar: E o que vimos ates­tamos, e vos anunciamos a vida eterna, a que estava no Pai e manifestou-se-nos. O que temos visto e ouvido anunciamos também a vós outros[539].

20. Mantém-se fiel a si mesmo e não se aparta daquilo a que se propôs, mas tudo vai explicando com os mesmos princípios e as mesmas expressões, algumas das quais vamos recordar brevemente:

21. Quem se aplique a ler encontrará em um e na outra muitas vezes as expres­sões: 'a vida', 'a luz', 'afastamento das trevas'; e continuamente: 'a verdade', 'a graça', 'a alegria', 'a carne e o sangue do Senhor', 'o juízo', 'o perdão dos pecados', 'o amor de Deus para conosco, o mandamento de amarmos uns aos outros' e que 'há que se guardar todos os mandamentos'; a refutação do mundo, do diabo e do anticristo, a promessa do Espírito Santo, a adoção como filhos por parte de Deus, a fé, que nos é exigida absolutamente; o Pai e o Filho, por todas as partes. E em uma palavra: é evidente que quem se atém a todas suas características vê que tanto o Evangelho como a Carta apresentam uma mesma e única coloração.

22. Por outro lado, o Apocalipse é muito diferente e alheio a estes escritos. Não está ligado a nenhum deles nem lhes tem afinidade, e quase, por assim dizer, nem uma sílaba tem em comum com eles.

23. Porque assim é que nem a Carta (deixemos já o Evangelho) tem a menor menção ou o menor pensamento sobre o Apocalipse, nem o Apocalipse sobre a Carta, enquanto que Paulo deixa entrever em suas Cartas algo sobre suas revelações, ainda que não as tenha consignado por si mesmas[540].

24. Mas inclusive pelo estilo é possível ainda reconhecer a diferença do Evangelho e da Carta com respeito ao Apocalipse.

25. Aqueles, efetivamente, não somente estão escritos sem faltas contra a língua grega, mas inclusive com a máxima eloqüência por sua dicção, seus raciocínios e a construção de suas expressões. Pelo menos estão muito longe de que se encontre neles algum vocábulo bárbaro, um solecismo, ou de modo geral, um vulgarismo, pois seu autor, segundo parece, possuía os dois saberes, por haver o Senhor lhe outorgado ambos graciosamente: o do conhecimento e o da linguagem.

  1. 26.    Quanto ao outro, não lhe negarei que viu revelações e que recebeu conhe­cimento e profecia; não creio porém que seu estilo e sua língua sejam exatamente gregas, antes utiliza idiotismos bárbaros e em algumas partes inclusive comete solecismos. Não é preciso agora dar uma seleção,

27. já que tampouco disse isto por zombaria (que ninguém pense isso) mas unicamente para estabelecer a desigualdade destes escritos."

 

XXVI

[Das cartas de Dionísio]

  1. 1.            Além destas cartas, conservam-se também muitas outras de Dionísio, como a dirigida a Ammon, bispo da igreja de Bernice, contra Sabélio; a Telesforo, a Eufranor; novamente a Ammon e a Euporo, contra Sabélio. E sobre o mesmo tema compôs também outros quatro escritos que dirigiu a seu homônimo de Roma Dionísio.
  2. 2.            E entre nós, além destas, existem também muitas cartas suas e inclusive prolixos tratados em forma de cartas, como os dedicados a seu filho Timóteo Sobre a natureza, e o outro Sobre as tentações, que também dedicou a Eufranor.
  3. 3.            Além destas obras, escrevendo também a Basílides, bispo das igrejas de Pentápolis, ele mesmo diz que escreveu um Comentário do começo do Eclesiastes. E deixou-nos diversas cartas dirigidas ao mesmo.

Tudo isto escreveu Dionísio, mas, depois de historiar estas coisas, já é hora de que entreguemos ao conhecimento da posteridade também como era nossa geração[541].

 

XXVII

[Sobre Paulo de Samosata e a heresia que suscitou em Antioquia]

  1. 1.            A Sixto, que presidiu a igreja de Roma durante onze anos, sucedeu Dionísio, homônimo do de Alexandria[542]. E neste tempo, ao emigrar também Demetriano desta vida em Antioquia, recebeu o episcopado Paulo, o de Samosata.
  2. 2.     Como este, contrariamente ao ensinamento da Igreja, tinha acerca de Cristo pensamentos baixos e ao nível do chão, dizendo que por natureza foi um homem comum, Dionísio de Alexandria, convidado para assistir ao concilio, dando como desculpa sua velhice e debilidade corporal, adia sua presença pessoal, e por meio de uma carta expõe seu pensamento sobre o tema debatido. Os outros pastores das igrejas, por outro lado, cada qual de sua terra, iam se reunindo como contra uma peste do rebanho de Cristo, e todos se apressavam em direção a Antioquia.

 

XXVIII

[Os bispos ilustres que eram célebres naquele tempo]

  1. 1.            Entre eles, os que mais sobressaíram foram: Firmiliano, bispo de Cesaréia da Capadócia; os irmãos Gregório e Atenodoro, pastores das igrejas do Ponto; e depois deles, Heleno, da igreja de Tarso, e Nicomas, da de Iconio. Mas não somente eles, como também Himeneo, da igreja de Jerusalém; e Teotecno, da de Cesaréia, limítrofe desta; e além destes, Máximo, que dirigia também com muito brilho os irmãos de Bostra. E não seria muito difícil enumerar muitíssimos outros reunidos junto com os presbíteros e diáconos pelo mesmo motivo na citada cidade; mas de todos, pelo menos os mais destacados eram estes.
  2. 2.     Todos pois, reuniram-se para o mesmo, em diferentes e repetidas ocasiões[543]. E em cada reunião levantavam-se razoamentos e perguntas: os partidários do samosatense, tentando ocultar ainda e dissimular o que houvesse de heresia; os outros, de sua parte, pondo todo seu empenho em desnudar e trazer à vista a heresia e a blasfêmia daquele contra Cristo.
  3. 3.            Mas por este tempo morreu Dionísio, no décimo segundo ano do império de Galieno, depois de haver presidido o episcopado de Alexandria durante dezessete anos. Sucede-o Máximo.
  4. 4.     Tendo sido Galieno dono do poder durante quinze anos completos, foi instituído seu sucessor Cláudio. Este, quando terminou seu segundo ano, transmitiu o principado a Aureliano.

 

XXIX

[De como se rebateu Paulo e este foi excomungado]

1. Nos tempos deste, havendo-se reunido um último concilio[544] de numero­síssimos bispos, surpreendido in flagranti e já por todos condenado aberta­mente por heterodoxia, o líder da heresia de Antioquia foi excomungado da Igreja católica que está sob o céu.

2. Quem mais fez para acabar com sua dissimulação e deixá-lo convicto foi Malquion, homem muito eloqüente e diretor da classe de retórica nas escolas gregas de Antioquia; e não só isto, mas também considerado digno do presbiterado da comunidade local, pela excelentíssima legitimidade de sua fé em Cristo. Este havia empreendido contra ele, com taquígrafos que iam registrando, uma investigação - que sabemos que se conservou até nossos dias -, pelo que entre todos somente ele foi capaz de surpreender in flagranti aquele homem, apesar de sua dissimulação e engano.

 

XXX[545]

  1. 1.            Então os pastores ali reunidos com o mesmo fim escrevem de comum acordo uma só carta dirigida pessoalmente a Dionísio, bispo de Roma, e a Máximo, da de Alexandria, e a transmitem a todas as províncias, pondo a claro para todos seu próprio zelo e a perversa heterodoxia de Paulo, assim como os argumentos e perguntas que haviam brandido contra ele, e expondo ainda com detalhe toda a vida e conduta daquele homem. Talvez seja bom citar nesta obra, para fazer memória, as seguintes pala­vras suas:
  2. 2.            "A Dionísio, a Máximo, a todos nossos colegas no ministério por todo o mundo habitado: bispos, presbíteros e diáconos, e a toda a Igreja católica que está sob o céu, Heleno, Himeneo, Teófilo, Teotecno, Máximo, Proclo, Nicomas, Eliano, Paulo, Bolano, Protógenes, Hieraco, Eutiquio, Teodoro, Malquion, Lúcio e todos os demais que conosco habitam as cidades e povoações vizinhas, bispos, presbíteros, diáconos e as igrejas de Deus: aos amados irmãos, saúde no Senhor".
  3. 3.            Pouco depois disto, acrescenta o seguinte:

"Escrevíamos e ao mesmo tempo exortávamos a muitos, inclusive a bispos de longe, a vir e curar este mortífero ensinamento, assim como também aos benditos Dionísio o de Alexandria e Firmiliano de Capadócia. Destes, o primeiro escreveu uma carta a Antioquia, não considerando o autor do erro digno nem de uma saudação, pelo que não lhe escreveu pessoalmente, mas a toda a comunidade; desta carta anexamos uma cópia.

4.   Firmiliano, por outro lado, que inclusive veio duas vezes, condenou certa­mente as inovações daquele - como sabemos e atestamos os que estavam presentes e o sabem também muitos outros -, mas como Paulo prometera mudar, ele, crendo e esperando que o assunto se arranjaria oportunamente
sem desdouro para a doutrina, o foi deferindo, enganado pelo homem que negava a seu próprio Deus e Senhor e não observava a fé que anteriormente ele mesmo possuía.

  1. 5.             Mas agora Firmiliano estava já a ponto de chegar a Antioquia e havia chegado concretamente até Tarso, pois havia experimentado a maldade negadora de Deus daquele homem; mas no intervalo, estando nós outros reunidos chamando-o e esperando que chegasse, alcançou-o a morte."
  2. 6.             E depois de outras coisas, novamente descrevem a vida e a conduta de Paulo nos seguintes termos:

"Desde o ponto em que se afastou da regra e passou a ensinamentos falsos e bastardos, não se devem julgar as ações do que está fora[546];

  1. 7.             nem sequer pelo fato de que, sendo primeiramente pobre e mendigo e não havendo recebido de seus pais riqueza nenhuma nem havendo-a adquirido mediante um ofício ou qualquer ocupação, agora chegou a uma excessiva opulência proveniente de suas ilegalidades, de seus roubos sacrílegos e do que pede e suga dos irmãos, defraudando os que foram vítimas de injustiça e prometendo ajuda por um salário: em realidade, enganando também estes e tirando proveito sem razão da facilidade com que dão os que estão em apuros apenas para se libertarem do incômodo, já que ele considera a religião como fonte de lucros[547];
  2. 8.             tampouco porque tem pensamentos altivos e se orgulha de estar investido com dignidades mundanas, preferindo que o chamem ducenário do que bispo, avançando jactancioso pela praça e lendo e ditando cartas enquanto passeia em público, escoltado por guardas muito numerosos, uns precedendo-o e outros seguindo-o; o resultado é que a própria fé se vê desprezada e odiada por causa de sua ostentação e do orgulho de seu coração;
  3. 9.      e tampouco se devem julgar os jogos de prestidigitação que organizava nas reuniões eclesiásticas aspirando a glória, deslumbrando a imaginação e ferindo com estas coisas as almas dos mais simplórios. Fez preparar para si uma tribuna e um trono elevado - não como discípulo de Cristo -, e igual aos príncipes do mundo, tinha-e assim o chamava- seu secretum[548]; com a mão golpeava a coxa e com os pés batia na tribuna. E aos que não o aprovavam nem agitavam os lenços, como nos teatros, nem lançavam gritos nem se levantavam de um salto junto com seus sequazes, homens e mulheres que nesta desordem o ouviam, e, portanto, aos que o escutavam com gravidade e em boa ordem, como na casa de Deus, a estes desprezava e insultava. E aos intérpretes da doutrina que partiram desta vida ele insultava em público grosseiramente, enquanto que de si mesmo falava com grande ênfase, não como um bispo, mas como um sofista e um charlatão.

10.  Fez também que cessassem os salmos em honra de nosso Senhor Jesus Cristo, porque dizia que eram modernos e obra de homens bastante modernos; em troca, preparou umas mulheres para que em sua honra salmodiassem em meio a igreja no grande dia de Páscoa. É de estremecer-se ouvindo-as! E que coisas deixava que os bispos e presbíteros tratassem em suas homílias ao povo dos campos e cidades limítrofes, seus aduladores!

  1. 11.     Porque ele não quer confessar conosco que o Filho de Deus desceu do céu (isto para expor de antemão algo do que escreveremos, e que não o diremos como simples afirmação, mas que será demonstrado com muitas passagens dos documentos que vos enviamos, e sobretudo aquele em que se diz que Jesus Cristo é de baixo); mas aqueles, quando lhe cantam salmos e o louvam ante o povo, afirmam que seu ímpio mestre desceu como anjo do céu. E ele não só não impede isto, mas até, em sua soberba, acha-se presente quando o dizem.
  2. 12.     Quanto às mulheres subintroductas - como as chamam os antioquenhos -, as dele e as dos presbíteros e diáconos de seu séquito, aos quais ajuda a ocultar este e os demais pecados incuráveis, já de plena consciência e com provas convincentes para tê-los a sua mercê e para que, temendo por si mesmos, não se atrevam a acusá-lo das injustiças que comete por palavra e por obra - e mais, inclusive tornou-os ricos, pelo que o querem e admiram os que se perdem por tais coisas... -, por que haveríamos de escrever isto?
  3. 13.     Ainda assim, sabemos, queridos, que o bispo e o clero inteiro devem ser para a multidão um exemplo[549] de toda obra boa[550], e não ignoramos tam­pouco quantos caíram por ter introduzido para si mulheres, enquanto outros tornaram-se suspeitosos, tanto que, mesmo concedendo-lhe que nada fazia de indecoroso, não obstante era necessário ao menos precaver-se contra a suspeita que nasce de um tal assunto, para não escandalizar ninguém e evitar que outros o tentem.
    1. 14.   Porque, como poderia repreender e advertir outro para que não coabite mais sob o mesmo teto com uma mulher e se guarde de cair, como está escrito[551], um que já afastou uma de si, mas que tem consigo duas em plena juventude e de boa aparência, e que, se vai para outro lugar, para lá as leva consigo, e isto com desperdício de luxo?
    2. 15.   Por causa disto choram todos e se lamentam dentro de si mesmos, mas é tanto o temor à tirania e poder dele que ninguém se atreve a uma acusação.

16.Mas, como já dissemos, disto poderíamos corrigir um homem que tivesse ao menos um pensamento católico e se contasse entre nós, mas de um que traiu o mistério[552] e se pavoneia da abominável heresia de Artemas (por que, de fato, não seria necessário manifestar quem é seu pai?) cremos que não se pode pedir contas de tudo isto."

17. Logo, ao final da carta, acrescentam:

"Por conseguinte, ao seguir opondo-se a Deus e não ceder, vimo-nos forçados a excomungá-lo e a estabelecer em seu lugar para a Igreja católica - segundo providência de Deus, estamos convencidos - outro bispo, Domno, o filho do bem-aventurado Demetriano - este havia presidido antes daquele, de forma notável, esta mesma igreja -, varão adornado com todas as qualidades que convém a um bispo. E isto vos manifestamos para que lhe escrevais e recebais dele as cartas de comunhão. Quanto ao outro, que escreva a Artemas e que tenham comunhão com ele os que pensem como Artemas[553]."

  1. 18.     Assim pois, caído Paulo do episcopado e da ortodoxia de sua fé, sucedeu-o Domno, como foi dito, no ministério da igreja de Antioquia.

19. Mesmo assim, como Paulo não quisesse de modo algum sair do edifício da igreja, o imperador Aureliano, a quem se solicitou, decidiu muito oportuna­mente o que deveria ser feito, pois ordenou que se outorgasse a casa àqueles com quem estivessem em correspondência epistolar os bispos da doutrina da Itália e da cidade de Roma. Assim é que o homem antes mencionado, para extrema vergonha sua, foi expulso da igreja pelo poder mundano.

20. Assim era para conosco Aureliano, pelo menos por então. Mas, já avançado seu império, mudou de pensamento sobre nós e se deixava excitar por certos conselhos para que suscitasse uma perseguição contra nós. Eram muitos os rumores sobre este ponto em todos os ambientes.

21. Mas, quando estava a ponto de fazê-lo e, por assim dizer, já assinava os decretos contra nós, a justiça divina o alcançou, retendo-o no ato como que amarrando-lhe os braços[554]. Com isto permitiu a todos ver claramente que nunca os poderes desta vida teriam facilidade contra as igrejas de Cristo se a mão que nos protege, por juízo divino e celeste, para nossa instrução e conversão, não permitisse[555] que isto se levasse a cabo nos tempos que ela julga bons.

22.  Assim pois, a Aureliano, que exerceu o poder durante seis anos, sucede Probo, e a este, que o deteve mais ou menos os mesmos anos, Caro, junto com seus filhos Carino e Numeriano. E tendo estes por sua vez durado outros três anos incompletos, o poder absoluto passa a Diocleciano e aos que foram introduzidos depois dele por adoção, sob os quais levou-se a
cabo a perseguição de nosso tempo e nela a destruição das igrejas.

23. Agora bem, muito pouco tempo antes disto, Félix sucede no ministério ao bispo de Roma Dionísio, que nele havia passado nove anos.

 

XXXI

[Da heterodoxa perversão dos maniqueus, iniciada precisamente então]

  1. 1.            Neste tempo, também aquele louco, epônimo da endemoninhada here­sia, armava-se do extravio da razão; o demônio, sim, o próprio Satanás, adversário de Deus, empurrava aquele homem para ruína de muitos. Sen­do como era bárbaro em sua vida, por sua própria fala e seus costumes, e demoníaco e demente por natureza, empreendia façanhas em conso­nância com isto e tentava fazer o papel de Cristo, ora proclamando-se a si mesmo Paráclito[556] e Espírito Santo em pessoa[557], inflado por sua lou­cura, ora elegendo, como Cristo, doze discípulos co-partícipes de seu novo sistema.
  2. 2.            Em realidade, impingiu umas falsas e ímpias doutrinas a base de remendos recolhidos das inúmeras e ímpias heresias, já há muito extintas, e desde a Pérsia as foi transmitindo como veneno mortífero até nossa própria terra habitada, e desde então o ímpio nome dos maniqueus pulula até hoje entre muitos. Este foi, pois, o fundamento desta gnose de falso nome, que brotou nos tempos mencionados.

 

XXXII

[Dos varões eclesiásticos que se distinguiram em nosso tempo e quais deles viveram até o ataque às igrejas]

  1. 1.            Por este tempo, havendo Félix presidido a igreja de Roma durante cinco anos, sucede-o Eutiquiano. Este, que não sobreviveu dez meses inteiros, deixou o cargo a Caio, contemporâneo nosso, e havendo este exercido a presidência uns quinze anos, institui-se como sucessor Marcelino, a quem também arrebatará a perseguição.
  2. 2.            E por estas datas regia o episcopado de Antioquia, depois de Domno, Timeu, a quem sucedeu Cirilo, contemporâneo nosso. De seu tempo conhecemos Doroteu, varão douto e julgado digno do presbiterado de Antioquia. Este foi um amante das coisas divinas e exercitou-se na língua hebraica, tanto que até podia ler e compreender as próprias escrituras hebréias.
  3. 3.            Ele não era alheio aos estudos mais liberais, nem à instrução preliminar dos gregos, e além disto era eunuco por natureza, feito assim já desde seu próprio nascimento, de maneira que o imperador honrou-o com a administração da tinturaria de púrpura de Tiro.
  4. 4.             A este escutamos explicar as Escrituras com sapiência na igreja. E depois de Cirilo o episcopado da igreja de Antioquia foi recebido em sucessão por Tirano, em cujos dias o ataque às igrejas alcançou o cume.
  5. 5.      Já a igreja de Laodicéia, depois de Sócrates, foi governada por Eusébio, oriundo da cidade de Alexandria. A causa de sua emigração foi o assunto referente a Paulo. Por causa deste subiu à Síria, e os que nela se ocupavam das coisas de Deus impediram-no de voltar a sua casa. Para nossos contem­porâneos foi um exemplo amável de religião, como facilmente se descobre nas expressões de Dionísio anteriormente citadas.
  6. 6.      Foi instituído como seu sucessor Anatolio, um bom que, como se diz, sucede a outro bom. Também era alexandrino de origem, e por seus estudos, por sua educação grega e por sua filosofia alcançou os primeiros postos entre os mais ilustres de nossos contemporâneos, já que avançou até o cume da aritmética, da geometria, da astronomia e de toda especulação teórica, da dialética como da física, assim como da retórica. Por esta causa, como quer uma tradição, os cidadãos de Alexandria o consideraram digno de organizar ali a escola da sucessão de Aristóteles.
  7. 7.      Recordam-se, pois, dele, inúmeras outras façanhas de quando houve o sítio do Piruquío[558], já que todas as autoridades o consideravam digno de um privi­légio especial; mas eu só vou mencionar, como demonstração, o seguinte.
    1. 8.            Dizem que, faltando o trigo aos sitiados, a ponto de que a fome lhes era mais insuportável do que os inimigos de fora, o mencionado Anatolio, que se achava presente, tomou as seguintes disposições. Como a outra parte da cidade estava aliada ao exército romano e não se encontrava sitiada, Anatolio enviou uma mensagem a Eusébio, que se encontrava entre os não sitiados (de fato ainda estava ali, antes de sua emigração para a Síria) e cuja glória e famoso nome haviam chegado até o general em chefe dos romanos, e informou-o dos que pereciam de fome ao largo do assédio.
    2. 9.     Este, assim que o soube, pediu ao general romano, como um enorme favor, que garantisse a segurança aos desertores do campo inimigo. E quando conseguiu sua petição, fê-lo saber a Anatolio. Este, imediatamente depois de receber a promessa, reuniu o conselho dos alexandrinos. Começou pedin­do a todos que oferecessem sua destra aos romanos em sinal de amizade, mas assim que viu que sua promessa os enfurecia, disse: "Mesmo assim, creio que ao menos nisto não me sereis contrários, se vos aconselhar a pôr para fora das portas pelo menos as pessoas supérfluas e absolutamente inúteis, anciãs, crianças e anciãos, e que se vão para onde queiram. Por que vamos tê-los entre nós inutilmente se não for já para morrer? E para que estamos esgotando pela fome os enfermos e quebrantados de corpo, já que nos é necessário alimentar apenas aos homens e aos jovens, e reservar o trigo necessário para os que são capazes de guardar a cidade?"
    3. 10.     Com tais arrazoados conseguiu persuadir o conselho, e levantando-se o primeiro, votou um decreto: despedir da cidade todo aquele que não fosse apto para o serviço militar, homem ou mulher, já que não havia esperança de salvação para os que ficassem na cidade e nela passassem o tempo sem utilidade alguma, pois morreriam de fome.
    4. 11.     E deste modo, quando todos os demais do conselho emitiram o mesmo voto, faltou muito pouco para que salvassem a todos os sitiados. Preocupou-se de que primeiro fugissem os que procediam da igreja, e logo também os demais que estavam na cidade, de qualquer idade que fossem. E não somente dos que caíam dentro do decreto, mas também, com o pretexto destes, muitos outros que, secretamente disfarçados de mulher e por cuidado daquele, saíam à noite das portas e lançava-se ao exército romano. Ali Eusébio recebia a todos, e como um pai e médico, com todo tipo de providências e de cuidados, restaurava os maltratados pelo longo assédio.
    5. 12.     De tais pastores foi digna a igreja de Laodicéia, onde os dois se sucederam depois que emigraram para lá desde a cidade de Alexandria, com a ajuda da providência divina, ao terminar a mencionada guerra.
    6. 13.     Na verdade não são muitas as obras compostas por Anatólio, mas chegaram a nós as suficientes para poder perceber através delas sua eloqüência e sua grande erudição. Nelas apresenta sobretudo suas opiniões acerca da Páscoa, das quais quiçá seja necessário mencionar na presente obra o seguinte: Extrato dos Cânones de Anatólio sobre a Páscoa.
    7. 14.     "Toma pois no primeiro ano o novilúnio do primeiro mês, que é o começo do período de dezenove anos, o 26 de Famenoz segundo os egípcios, o 22 de Distro, segundo os meses dos macedônios e, como diriam os romanos, o undécimo antes das calendas de abril.
      1. 15.     O sol encontra-se no mencionado dia 26 de Famenoz, não apenas entrado no primeiro segmento, mas no quarto dia de sua passagem por ele. Costuma-se chamar este segmento o primeiro dodecatemórion, equinócio, começo dos meses, cabeça do ciclo e largada do curso dos planetas. O que o pre­cede é o último dos meses, o duodécimo seguinte, último dodecatemórion e final do curso dos planetas. Por isso dizemos que erram muito e gravemente os que situam nele o primeiro mês, e em conseqüência, tomam o décimo quarto dia como o dia da Páscoa.

16. Não é esta nossa doutrina; mas os judeus antigos já a conheciam, inclusive de antes de Cristo, e a guardavam com todo esmero. Pode-se saber pelo que disseram Fílon, Josefo e Museo, e não somente estes, mas também os que são mais antigos, os dois Agatóbulos, conhecidos como os mestres de Aristóbulo, o famoso, que foi dos Setenta que traduziram para Ptolomeu Filadelfo e para o pai deste as sagradas e divinas Escrituras[559] dos hebreus e dedicou aos próprios reis livros de exegese da lei de Moisés.

  1. 17.     Estes, ao resolverem os problemas do Êxodo, dizem que todos devem sacrificar a Páscoa por igual, depois do equinócio de primavera, em meados do primeiro mês, e isto se encontra quando o sol atravessa o primeiro segmento da elíptica solar ou - como alguns deles a nomeiam - do zodíaco. Por sua parte, Aristóbulo acrescenta que na festa da Páscoa não somente o sol, mas também a lua, deve forçosamente atravessar o segmento equinocial,

18. porque, sendo os dois segmentos equinociais - um da primavera e outro do outono -, diametralmente opostos entre si, e dado que o dia da festa pascal é o décimo quarto do mês, à tarde, a lua tomará a posição diametralmente oposta com respeito ao sol, como efetivamente se pode ver nos plenilúnios; e então o sol estará no segmento equinocial da primavera, e a lua, forçosa­mente, no segmento equinocial do outono.

19. Sei que estes homens disseram também muitas outras coisas, ora verossímeis, ora avançadas, conforme rigorosas demonstrações, por meio das quais tentavam estabelecer que a festa da Páscoa e dos ázimos deveria a todo custo ser celebrada depois do equinócio. Mas eu passo por alto pedir tais materiais de demonstração a aqueles para os quais o véu que cobria a lei de Moisés foi retirado e adiante já podem contemplar sempre com o rosto descoberto a Cristo e os ensinamentos e os sofrimentos de Cristo[560]. Agora bem, que entre os hebreus o primeiro mês cai em torno do equinócio, dão a entender até os ensinamentos do livro de Enoque."

20. E ele mesmo deixou também umas Introduções aritméticas em dez livros inteiros, e outras provas de seu estudo assíduo e grande experiência das coisas divinas.

21. O bispo de Cesaréia da Palestina, Teotecno, foi o primeiro que lhe impôs as mãos para o episcopado, buscando de antemão procurar para sua igreja um sucessor seu para depois da morte. E, efetivamente, por breve espaço de tem­po ambos presidiram a mesma igreja, mas tendo sido chamado a Antioquia pelo concilio reunido contra Paulo, ao passar pela cidade de Laodicéia, os irmãos dali retiveram-no em seu poder, por ter morrido Eusébio.

22. Mas tendo partido desta vida também Anatólio, nomeia-se Estevão, último bispo daquela igreja antes da perseguição. Admirado por muitos em razão de suas doutrinas filosóficas e de toda sua cultura grega, não tinha, porém, as mesmas disposições a respeito da fé divina, como demonstrou o transcurso da perseguição, que pôs a descoberto o homem solapado, covarde e pouco viril, mais que o verdadeiro filósofo.

23. Mas não por isso iria a igreja arruinar-se; antes o próprio Deus e salvador de todos a restabeleceu, fazendo que imediatamente se proclamasse bispo daquela igreja a Teodoto, um homem que com suas próprias obras tornava realidade o que seu nome e o de bispo significam[561]. Efetivamente, em primeiro lugar destacava-se na ciência que cura os corpos; mas na terapêutica
das almas não teve igual, por seu amor aos homens, sua nobreza, sua compaixão e seu zelo em ser útil aos que necessitavam dele. Também havia se exercitado muito no que tange aos ensinamentos divinos.

Assim era Teodoto.

24. Em Cesaréia da Palestina, Teotecno, que havia exercido com toda solici­tude seu episcopado, é sucedido por Agapio, de quem sabemos que lutou muito, despendendo a mais generosa providência na proteção do povo e cuidando de todos com mão abundante, especialmente dos pobres.

25. Em seu tempo conhecemos a Panfilo, homem muito distinto, verdadeiro filósofo por sua própria vida e considerado digno do presbiterado da comunidade local. Não seria um tema pequeno mostrar quem era e de onde procedia, mas cada aspecto de sua vida e da escola que ele constituiu, assim como seus combates em diferentes confissões quando da perseguição e a coroa do martírio que se cingiu ao fim de tudo, explicamos com pormenores em obra especial sobre ele[562].

26. Pois bem, este foi o mais admirável de todos os daqui. Mesmo assim, entre os mais próximos a nosso tempo sabemos de homens de mui rara qualidade: Pierio, um presbítero de Alexandria, e Melicio, bispo das igrejas do Ponto.

27. O primeiro se fez notar por uma vida inteiramente pobre e por seus conhecimentos filosóficos, tendo-se exercitado extraordinariamente em especulações e comentários acerca das coisas divinas e em homílias públicas na igreja. E Melicio (o mel de Ática chamavam-no as pessoas instruídas) era como alguém o descreveu: o mais perfeito por sua doutrina. É impossível admirar-se como merece o vigor de sua retórica, mas podia-se dizer que ele o tinha por natureza. E quanto à perícia no restante e à vasta erudição, quem poderia superar sua excelência?

  1. 28.     Antes que o provasses uma só vez, dirias que era o homem mais hábil e mais firme em todas as ciências da razão. Além disso, sua vida virtuosa estava também à altura. Nós o observamos durante sete anos completos quando, por ocasião da perseguição, andou fugitivo de uma lado para outro pelas regiões da Palestina.

29. Na igreja de Jerusalém, depois de Himeneo - o bispo mencionado pouco acima -, recebe o ministério Zabdas. Morto este não muito depois, recebe em sucessão o trono apostólico, ali conservado ainda até hoje, Hermon, último bispo até a perseguição de nossos tempos.

  1. 30.  E em Alexandria é Teonas que sucede a Máximo, que exerceu o episcopado depois da morte de Dionísio por dezoito anos. Em seu tempo era célebre em Alexandria Aquilas, considerado digno do presbiterado junto com Pierio. Estava encarregado da escola da fé sagrada[563] e deu provas de uma obra filosófica de mui rara qualidade, não inferior à de ninguém, e de uma conduta genuinamente evangélica.
  2. 31.  E depois de Teonas, que serviu durante dezenove anos, recebe em sucessão o episcopado dos alexandrinos Pedro, que também se distinguiu muito especialmente durante doze anos inteiros. Tendo empregado os três pri­meiros anos anteriores à perseguição, não completos, em governar a igreja, pelo resto de sua vida entregou-se a uma ascese muito mais vigorosa, e sem ocultar-se, velava pelo proveito comum das igrejas, e assim foi como no nono ano da perseguição foi decapitado e adornou-se com a coroa do martírio.
  3. 32.  Depois de haver descrito nestes livros o tema das sucessões, desde o nasci­mento de nosso Salvador até a destruição dos oratórios, o que abarca uns trezentos e cinco anos, em continuação vamos deixar por escrito, para que o saibam aqueles que vierem depois de nós, quantos e de que índole foram os combates dos que em nossos dias portaram-se virilmente na defesa da religião.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Livro VIII

 

[Prólogo]

Depois de haver escrito em sete livros inteiros a sucessão dos apóstolos, cremos que é um de nossos mais necessários deveres transmitir, neste oita­vo livro, para conhecimento também dos que virão depois de nós, os acon­tecimentos de nosso próprio tempo[564], pois merecem uma exposição escrita bem pensada. E nosso relato terá seu começo a partir deste ponto.

 

I

[Da situação anterior à perseguição de nossos dias]

  1. 1.     É uma tarefa gigantesca explicar como merecido quais e quão grandes foram, antes da perseguição de nosso tempo, a glória e a liberdade de que gozou entre todos os homens, gregos e bárbaros, a doutrina da piedade para com o Deus de todas as coisas, anunciada ao mundo por meio de Cristo.
  2. 2.     Ainda assim, prova disto poderia ser a acolhida dos soberanos para com os nossos[565], a quem inclusive entregavam o governo das províncias, dispensando-os da angústia de ter que sacrificar, pela muita amizade que reservavam a nossa doutrina.
  3. 3.     Que necessidade há de falar dos que estavam nos palácios imperiais e dos supremos magistrados? Estes consentiam que seus familiares - esposas, filhos e criados - agissem abertamente, com toda liberdade, com sua palavra e sua conduta, no referente à doutrina divina, quase permitindo-lhes inclu­sive gloriar-se da liberdade de sua fé. Consideravam-nos especialmente dignos de aceitação, mais ainda do que seus companheiros de serviço.
  4. 4.     Assim era o famoso Doroteo, o melhor disposto e mais fiel de todos para com eles e por isto o mais distinguido com honras, mais até do que os que ocupa­vam cargos e governos. E com ele o célebre Gorgonio e quantos foram con­siderados dignos da mesma honra que eles, por razão da palavra de Deus.
  5. 5.     Era visível também de que favor todos os procuradores e governadores jul­gavam dignos os dirigentes de cada igreja! E quem poderia descrever aquelas concentrações de milhares de homens e aquelas multidões das reuniões em cada cidade, igual às célebres concorrências aos oratórios? Por esta causa precisamente, já não contentes de modo algum com os antigos edifícios, levan­taram desde as fundações igrejas de grande amplidão por todas as cidades.

6.   Com o tempo isto avançava e cobrava cada dia maior vulto e grandeza, sem que inveja alguma o impedisse e sem que um mau demônio fosse capaz de fazê-lo malograr nem criar obstáculos com conjuros de homens, tanto a mão celestial de Deus protegia e custodiava seu próprio povo, porque em realidade o merecia.

  1. 7.             Mas desde que nossa conduta mudou, passando de uma maior liberdade ao orgulho e à negligência, e uns começaram a invejar e injuriar aos outros, faltando pouco para que fizéssemos a guerra mutuamente com as armas mesmo, e os chefes dilaceravam os chefes com as lanças das palavras, os povos se sublevavam contra os povos e uma hipocrisia e dissimulação sem nome alcançavam o mais alto grau de malícia, então o juízo de Deus, com parcimônia, como gosta de fazer, quando ainda se reuniam as assembléias, suave e moderadamente suscitava sua visita, começando a perseguição pelos irmãos que militavam no exército.
  2. 8.             E nós, como se estivéssemos insensíveis, não nos preocupamos sobre como tornar-nos benévola e propícia a divindade, mas como alguns ateus, que pensam que nossos assuntos escapam a todo cuidado e inspeção, íamos acumulando maldades sobre maldades, e os que pareciam ser nossos pasto­res rechaçavam a norma da religião, inflamando-se em mútuas rivalidades, e não faziam mais do que aumentar as rixas, as ameaças, a rivalidade e a inimizade e ódio recíprocos, reclamando encarniçadamente para si o objeto de sua ambição como se fosse o poder absoluto. Então sim, então foi quando, segundo diz Jeremias: obscureceu o Senhor em sua cólera a filha de Sion e precipitou do céu para baixo a glória de Israel, sem recordar-se do estrado de seus pés no dia de sua ira; antes, o Senhor submergiu nas profundezas todas as belezas de Israel e destruiu todas suas valas[566];

9.   E segundo o profetizado nos Salmos, destruiu o testamento de seu servo e com a ruína das igrejas profanou seu santuário, destruiu todas suas valas e plantou a covardia em suas fortalezas. E todos os caminhantes saqueavam ao passar as multidões do povo, e como se isto fosse pouco, converteu-se em ofensa para seus vizinhos. Porque exaltou a destra de seus inimigos e desviou o fio de sua espada e não o sustentou na guerra, mas até despojou-o de sua pureza, derrubou ao solo seu trono, encurtou os dias de seu tempo, e por último cobriu-o de ignomínia[567].

 

II

[Da destruição das igrejas]

1. Tudo isto se cumpriu, efetivamente, em nossos dias, quando com nossos próprios olhos vimos os oratórios inteiramente arrasados, desde o telhado até os fundamentos, e as divinas e sagradas Escrituras entregues ao fogo nas praças públicas, e os pastores das igrejas ocultando-se aqui e ali vergonho­samente, ou presos indecorosamente e escarnecidos pelos inimigos quando, segundo outro oráculo profético, lançou o desprezo sobre os príncipes e os faz andar errantes por onde não há caminho[568].

  1. 2.     Mas não é tarefa nossa descrever as tristes calamidades que estes por fim passaram, pois tampouco é nosso deixar memória de suas mútuas dissensões e de suas loucuras de antes da perseguição, pelo que decidimos também não contar sobre eles mais do que aquilo que nos permita justificar o juízo de Deus.
  2. 3.     Por conseguinte, não nos deixamos levar a fazer memória dos que foram ten­tados pela perseguição ou dos que naufragaram por completo no assunto de sua salvação e por sua própria vontade se precipitaram nos abismos das ondas, mas à história geral vamos acrescentar unicamente aquilo que possa ser de proveito primeiramente a nós mesmos e logo também a nossa posteridade. Vamos, pois; comecemos já desde este ponto a descrever em resumo os combates sagrados dos mártires da doutrina divina.
  3. 4.     Era este o ano dezenove do império de Diocleciano e o mês de Distro -entre os romanos se diria o de março[569] - quando, estando próxima a festa da Paixão do Salvador, por todas as partes estenderam-se editos imperiais mandando arrasar até o solo as igrejas e fazer desaparecer pelo fogo as Escrituras, e proclamando privados de honras[570] a aqueles que delas desfrutavam e de liberdade aos particulares se permanecessem fiéis em sua profissão de cristianismo[571].
  4. 5.     Assim foi o primeiro edito contra nós, mas não muito depois vieram-nos outros editos nos quais se ordenava: primeiro, lançar nas prisões todos os presidentes das igrejas em todo lugar, e depois, forçá-los por todos os meios a sacrificar.

III

( Do modo de conduzir-se dos que combateram na perseguição)

1. Então, pois, precisamente então[572], numerosos dirigentes das igrejas, lutando animosamente em meio a terríveis tormentos, ofereceram quadros de grandes combates, mas foram milhares os outros, os que de antemão embotaram suas almas com a covardia, e assim facilmente se debilitaram desde a pri­meira acometida. Dos restantes, cada um foi alternando diferentes espécies de tormentos: um tendo seu corpo lacerado por açoites; outro castigado com as torturas insuportáveis do potro e dos garfos, nas quais alguns já perderam suas vidas.

  1. 2.             E outros, por sua vez, passaram pelo combate de formas muito diversas. A um efetivamente, os demais empurravam pela força, e aproximando-se dos infames e impuros sacrifícios, deixavam-no ir como se tivesse sacrificado, ainda que não o tivesse feito. Outro, ainda que de modo algum tivesse se aproximado nem tivesse tocado nada maldito, como os demais diziam que havia tocado, retirava-se em silêncio carregado com a calúnia; outro levantavam meio morto e o lançavam como se já fosse um cadáver;
  2. 3.             e ainda houve quem, deitado ao solo, era arrastado longo trecho pelos pés e era contado entre os que haviam sacrificado. Um gritava, e a altas vozes atestava sua negativa em sacrificar, e outro vociferava que era cristão e se gloriava de confessar o nome salvador; outro sustentava firme que ele nem havia sacrificado nem sacrificaria jamais.
  3. 4.             Mesmo assim, também estes foram lançados fora à força sob repetidos golpes na boca por parte do nutrido grupo de soldados que para este fim estava ali formado, e com bofetadas no rosto e nas faces foram reduzidos ao silêncio. Tão grande era o afã que os inimigos da religião tinham de aparentar, por todos os meios, que haviam conseguido seu intento. Mas nem tais métodos serviam contra os santos mártires. Que discurso seria suficiente para uma descrição exata dos mesmos?

 

IV

[Dos mártires de Deus dignos de serem celebrados, como encheram cada lugar com sua memória depois de cingir-se variadas coroas em defesa da religião]

  1. 1.            Efetivamente, poder-se-ia relatar que foram inumeráveis os que mostraram um zelo admirável pela religião do Deus do universo, não somente desde o momento em que estourou a perseguição contra todos, mas muito antes, quanto ainda se mantinha a paz.
  2. 2.     Porque foi muito recentemente quando o que havia recebido o poder[573], como quem se levanta de um sono profundo, empreendeu-a contra as igrejas, ainda ocultamente e não às claras, no tempo que sucedeu a Décio e Valeriano. E não atacou de um golpe com uma guerra contra nós, mas ainda provou-a somente com os que estavam nas legiões, pois deste modo pensava que capturaria mais facilmente também os demais se primeiro saísse vitorioso na luta contra aqueles. Era de se ver então o grande núme­ro de soldados abraçando contentíssimos a vida civil e evitando assim converter-se em negadores de sua religião para com o Criador de todas as coisas.
  3. 3.             Efetivamente, assim que o general do exército - quem quer que então fosse - empreendeu a perseguição contra as tropas e se deu a classificar e depurar os funcionários militares, como lhes desse a escolha entre seguir gozando a graduação que lhes correspondia, se o obedeciam, ou ver-se, pelo con­trário, privados da mesma se se opunham às suas ordens, muitíssimos solda­dos do reino de Cristo, sem vacilar, preferiram a confissão de Cristo à glória aparente e ao bem-estar que possuíam.
  4. 4.      Nesse momento era raro que um ou dois destes recebessem não somente a perda da graduação, mas também a morte em troca de sua piedosa resistência, pois então o urdidor da conspiração ainda guardava certa moderação e ousava aventurar-se somente a um ou outro derramamento de sangue, já que ainda o assustava, segundo parece, a multidão dos fiéis e ainda vacilava em desatar uma guerra contra todos de uma só vez.
  5. 5.             Mas quando se lançou ao ataque mais abertamente, impossível expressar com palavras o número e a qualidade dos mártires de Deus que aqueles que habitavam as cidades e os campos podiam contemplar.

 

V

[Dos mártires de Nicomedia]

1. Assim pois, tão prontamente como se promulgou em Nicomedia o edito contra as igrejas, um que não era personagem obscuro[574], mas dos mais preclaros, segundo a estimativa das excelências de sua vida, empurrado pelo zelo de Deus, lançou-se com fé ardente, e depois de arrancar o edito que se achava em lugar visível e público, por considerá-lo ímpio e irreligioso, rasgou-o, apesar de haver na mesma cidade dois imperadores, o mais antigo de todos e o que depois dele ocupava o quarto posto no governo[575]. Mas este foi o primeiro dos que naquela ocasião se distinguiram desta maneira, e depois de sofrer em seguida o que era de supor por tal atrevimento, conservou a calma e a tranqüilidade até seu último suspiro.

 

VI

( Dos mártires das casas imperiais]

1. Acima de todos quantos foram celebrados alguma vez como admiráveis e famosos por sua valentia, assim entre os gregos como entre os bárbaros, esta ocasião fez destacar os divinos e excelentes mártires Doroteo e os servidores imperiais que o acompanhavam. Ainda que seus amos os tenham considerado dignos da mais alta honra e no trato não os deixavam atrás de seus próprios filhos, eles julgavam, com toda verdade, maior riqueza do que a glória e o prazer desta vida as injúrias, os trabalhos e os variados gêneros de morte inventados contra eles por causa de sua religião. Somente mencionaremos o fim que teve um deles e deixaremos a nossos leitores que por ele concluam o que sucedeu aos outros.

  1. 2.            Na mencionada cidade, um deles foi conduzido publicamente ante os imperadores já indicados; ordenaram-lhe, pois, que sacrificasse, e ao opor-se, mandaram pendurá-lo desnudo e lacerar todo seu corpo a força de açoites até que, rendido, fizesse o ordenado mesmo contra a vontade.
  2. 3.            Mas como ele se mantinha inflexível mesmo depois de padecer estes tormentos, e seus ossos já apareciam à vista, misturaram vinagre com sal e o derramaram nas partes mais laceradas de seu corpo. Mas também desdenhou estas dores, e então trouxeram ao meio umas brasas e fogo, e como se faz com a carne comestível, foram consumindo no fogo o resto de seu corpo, e não todo de uma vez, para que não morresse em seguida, mas pouco a pouco. Os que o haviam posto sobre a fogueira não podiam soltá-lo até que, ainda depois de tantos padecimentos, desse sinal de aceder ao mandado.
  3. 4.            Mas ele, solidamente aferrado a seu propósito, entregou vencedora sua alma em meio aos tormentos. Tal foi o martírio de um dos servidores imperiais, digno realmente do nome que levava: chamava-se Pedro.
  4. 5.            Ainda que não tenham sido menores os tormentos dos outros[576], em consi­deração às proporções do livro os omitiremos, e unicamente mencionaremos que Doroteo e Gorgonio, juntamente com muitos outros do serviço impe­rial, depois de passar por combates de todo gênero, morreram enforcados e alcançaram o prêmio da divina vitória.
  5. 6.            Neste tempo, Antimo, que então presidia a igreja de Nicomedia, foi decapi­tado por seu testemunho de Cristo. E a ele se juntou uma multidão compacta de mártires quando nesses mesmos dias, e sem saber-se como, deflagrou-se um incêndio no palácio imperial de Nicomedia. Ao suspeitar-se falsamente e correr o boato de que havia sido provocado pelos nossos, a uma ordem imperial, os cristãos daquele lugar, em tropel e amontoadamente, uns foram degolados a espada, e outros acabaram pelo fogo. Uma tradição diz que então homens e mulheres saltavam por si mesmos ao fogo com um fervor divino inefável. Os verdugos, por sua parte, amarravam outra multidão a umas barcas e a lançavam aos abismos do mar.
  6. 7.            Quanto aos servidores imperiais, depois de sua morte haviam sido confiados à terra com as honras correspondentes, mas os que se encaram como donos fizeram-nos exumar novamente, com a opinião de que estes também deveriam ser lançados ao mar, para que não acontecesse que jazendo em sepulcros fossem adorados e os considerassem - ao menos isto pensavam eles - como deuses. Tais foram os acontecimentos do começo da perseguição em Nicomedia.
  7. 8.            Mas não muito depois, havendo alguns tentado, na região chamada Melitene, e outros inclusive na Síria, atacar o império, saiu uma ordem imperial de que em todas as partes se encarcerasse e acorrentasse os dirigentes das igrejas.
  8. 9.            E o espetáculo a que isto deu lugar ultrapassa toda narração: em todas as partes se encerrava uma multidão inumerável, e em todo lugar os cárceres, anteriormente aparelhados, desde antigamente, para homicidas e violado­res de tumbas, transbordavam agora de bispos, presbíteros, diáconos, leitores e exorcistas, até que não sobrasse lugar ali para os condenados por suas maldades.
  9. 10.     Mais ainda, ao primeiro edito seguiu-se outro[577], em que se mandava deixar irem livres os encarcerados que tivessem sacrificado e passar pela tortura os que resistissem. Como, repito, neste caso alguém poderia enumerar a multidão de mártires de cada província, sobretudo da África, Mauritânia, Tebaida e Egito? Do Egito, alguns que inclusive haviam emigrado para outras cidades e províncias sobressaíram por seus martírios.

 

VII

[Dos mártires egípcios da Fenícia]

  1. 1.           Nós conhecemos dentre eles pelo menos os que brilharam na Palestina, e inclusive conhecemos os que se sobressaíram em Tiro da Cilicia. Vendo-os, quem não ficaria pasmo com os inumeráveis açoites e a resistência com que os suportaram estes atletas da religião verdadeiramente maravilhosos? E depois dos açoites, o combate com as feras devoradoras de homens, os ataques de leopardos, de ursos de diferentes espécies, de javalis e de touros feridos com ferro em brasa: como não pasmar-se da admirável paciência daquelas nobres pessoas frente a cada uma destas feras?
  2. 2.     Também nós nos achamos presentes a estes acontecimentos e observamos como o poder divino do próprio Jesus Cristo, nosso Salvador, de quem eles davam testemunho, se fazia presente e se mostrava claramente aos mártires: as feras devoradoras de homens tardaram muito tempo a atrever-se a tocar e até a aproximar-se dos corpos dos amigos de Deus, enquanto se lançavam contra os outros que as açulavam de fora, sem dúvida; os santos atletas foram os únicos a quem de modo algum tocaram, apesar de que se achavam de pé, desnudos, e lhes faziam gestos com as mãos, provocando-as contra si mesmos (pois assim lhes mandaram que fizessem). Inclusive quando se lançavam contra eles, novamente retrocediam, como rechaçadas por uma força mais divina.
  3. 3.             O fato de prolongar-se este espetáculo longo tempo causou grande assombro entre os espectadores, ao ponto de que, ante a inação da primeira fera, soltaram uma segunda e até uma terceira contra um só e mesmo mártir.
  4. 4.      Era para ficar atônito ante a intrépida constância daqueles santos em tais circunstâncias e ante a firme e inflexível resistência de seus corpos jovens. Ali pois, verias um jovem, da idade de vinte anos incompletos, de pé, sem correntes e com as mãos estendidas em forma de cruz, que com ânimo impassível e tranqüilo se entregava com a maior calma às orações de Deus, sem mover-se nem desviar-se o mínimo do lugar onde se achava, enquanto ursos e leopardos, respirando furor e morte, quase tocavam já sua carne; mas, não sei como, por uma força inefável e divina, a ponto já de fechar suas mandíbulas, novamente saíam correndo para trás. Assim era este homem.
  5. 5.             Também poderias ter visto outros (eram cinco no total) que foram lançados a um touro bravo. Aos de fora[578] que se aproximavam este os lançava ao ar com seus cornos e os despedaçava, deixando-os meio mortos para serem retirados; já quando se lançava furioso e ameaçador somente contra os santos mártires, nem podia aproximar-se deles; ainda que desse golpes aqui e acolá com suas patas e cornos, e respirasse furor e ameaça porque o açulavam com ferro em brasa viva, a providência sagrada o arrastava para trás. Assim, como este touro não lhes fizesse o mínimo dano, soltaram contra eles outras feras.
  6. 6.             Finalmente, depois de terríveis e variadas acometidas destas, todos eles foram degolados a espada e entregues às ondas do mar em vez de à terra e aos sepulcros.

 

 

 

 

VIII

[Dos mártires do Egito]

1. Assim foi também a luta dos egípcios que em Tiro empreenderam publica­mente seus combates pela religião.

Mas deles se poderia admirar ainda mais os que sofreram martírio em sua pátria, onde homens, mulheres e crianças, em número incontável, desprezando o viver passageiro, suportaram pelo ensinamento de nosso Salvador diferentes gêneros de mortes: uns, depois dos garfos, dos potros, dos açoites crudelíssimos e de infinitos e variados tormentos, que fazem estremecer só de ouvi-los, foram lançados ao fogo; outros foram tragados pelo mar; outros estendiam valentemente as próprias cabeças aos que as cortam; outros inclusive morriam em meio às torturas; a outros consumiu a fome, e outros por sua vez foram crucificados, uns como é costume fazer aos malfeitores, e a outros ainda pior, pregados ao contrário, a cabeça para baixo, e deixados com vida até que morressem de fome sobre o próprio patíbulo.

 

IX

(Dos mártires de Tebaida)

1.  Mas os ultrajes e dores que suportaram os mártires de Tebaida ultrapassam toda descrição. Laceravam-lhes todo seu corpo empregando conchas em vez de garfos, até que perdessem a vida; atavam as mulheres por um pé e as suspendiam no ar com umas máquinas, com a cabeça para baixo e o corpo inteiramente desnudo e a descoberto, oferecendo a todos os obser­vadores o espetáculo mais vergonhoso, o mais cruel e mais desumano de todos.

2. Outros, por sua vez, morriam amarrados a árvores e ramos: puxando com umas máquinas juntavam os ramos mais robustos e estendiam até cada um deles as pernas dos mártires, e deixavam que os ramos voltassem a sua posição natural. Assim haviam inventado o esquartejamento instantâneo daqueles contra quem empreendiam tais coisas.

3. E tudo isto se perpetrava já não por uns poucos dias ou por uma breve temporada, mas por um longo espaço de anos inteiros, morrendo às vezes mais de dez pessoas, às vezes mais de vinte; em outras ocasiões, não menos de trinta, e alguma vez até cerca de sessenta; e ainda houve uma vez que em um só dia deu-se morte a cem homens, certamente com seus filhinhos e suas mulheres, condenados a vários e sucessivos castigos.

4. E nós mesmos, achando-nos no lugar dos fatos, vimos muitos sofrerem em massa e num só dia, uns a decapitação, e outros o suplício do fogo, até o ferro perder o fio de tanto matar e partir-se em pedaços por puro desgaste, enquanto os próprios assassinos se revezavam entre si pelo cansaço.

5. Então podíamos contemplar o ímpeto admirável e a força e fervor realmente divinos dos que creram e seguem crendo no Cristo de Deus. Efetivamente, ainda se estava ditando sentença contra os primeiros e já de outras partes saltavam para o tribunal ante o juiz outros que se confessavam cristãos, sem preocupar-se em absoluto com os terríveis e multiformes gêneros de tortura, mas sim proclamando impassíveis, com toda liberdade, a religião do Deus do universo e recebendo a suprema sentença de morte com alegria, regozijo e bom humor, ao ponto de cantar salmos, hinos e ações de graças ao Deus do universo até exalar o último alento.

  1. 6.             Admiráveis foram também estes, em verdade, mas mais admiráveis foram especialmente aqueles que, brilhando por sua riqueza e seu nome, por sua glória, sua eloqüência e filosofia, mesmo assim, tudo isto preteriram à verdadeira religião e à fé em nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo.
  2. 7.      Assim era Filoromo, encarregado de certa magistratura importante da admi­nistração imperial de Alexandria, que por sua dignidade e cargo romanos, cada dia administrava justiça com escolta de soldados. E assim era Fileas, bispo da igreja de Tmuis, varão ilustre por seus cargos e funções públicas desempenhadas em sua pátria, não menos que por seus conhecimentos de filosofia.
  3. 8.             Estes homens, ainda que um grande número de parentes e de amigos, assim como outros magistrados ativos lhes suplicassem, e apesar de que o próprio juiz lhes exortasse a que tivessem compaixão de si mesmos e olhassem por seus filhos e mulheres, de modo algum se deixaram levar por tão fortes argumentos para escolher o amor à vida e desprezar as leis sobre a confissão e a negação de nosso Salvador, mas, resistindo a todas as ameaças e insolências do juiz com varonil e filosófica razão, mais ainda, com ânimo pleno de piedade e amor de Deus, foram ambos decapitados.

 

X

[Informes escritos do mártir Fileas acerca do ocorrido em Alexandria]

1.   Posto que já dissemos que Fileas foi digno de grande consideração por seus muitos conhecimentos profanos, venha ele mesmo ser testemunha de si mesmo e ao mesmo tempo nos declare quem era e nos conte com maior exatidão do que nós faríamos os martírios ocorridos em seu tempo em Alexandria. Estas são suas palavras:

 

Da carta de Fileas aos Tmuitas

2.   "Como nas divinas e sagradas Escrituras encontramos todos estes exemplos, modelos e bons indicadores, os bem-aventurados mártires que estavam conosco, sem vacilar o mínimo, fixando limpidamente os olhos de suas almas no Deus do universo e abraçando em suas mentes a morte pela religião, aferravam-se tenazmente a sua vocação por terem encontrado que nosso
Senhor Jesus Cristo se fez homem por nossa causa, para destruir pela raiz todo pecado e prover-nos de viático de entrada na vida eterna, pois não teve como usurpação o ser igual a Deus, mas que esvaziou-se a si mesmo tomando forma de servo, e reconhecido em sua figura como homem, humilhou-se a si mesmo até a morte, e morte de cruz[579].

  1. 3.             Pelo que, os mártires portadores de Cristo, procurando os dons maiores[580], suportaram todo trabalho e toda classe de invenções de tormentos, não uma só vez, mas alguns até duas vezes, e ainda que os guardas rivalizassem em ameaças contra eles, não só por palavra, mas também por obra, não abandonaram sua resolução, por aquele cujo amor perfeito lança fora todo o temor[581].
  2. 4.      E que discurso bastaria para enumerar sua força e seu valor em cada tormento? Porque, como todo aquele que o quisesse tinha permissão para ultrajá-los, uns os golpeavam com paus, outros com varas, outros com açoites, outros com correias e outros com cordas.
  3. 5.             O espetáculo das torturas variava e continha em si muita maldade, porque alguns eram pendurados do potro, com as duas mãos amarradas às costas, e por meio de certas máquinas distendiam-lhes todos os membros, e estando assim, os verdugos, a uma ordem, se enfureciam com seus corpos em sua totalidade, não somente nas costas, como se costumava com os assassinos, mas castigavam-nos com suas armas defensivas[582] inclusive no ventre, nas pernas e nas faces. Outros eram pendurados do pórtico atados por uma só mão; a tensão das articulações e dos membros era mais terrível que qualquer dor. Outros, por fim, eram atados às colunas cara a cara e sem pousar os pés no chão: com o peso do corpo, as ataduras se tensionavam e apertavam fortemente.
  4. 6.             E isto suportavam não somente enquanto o governador conversava com eles e deles se ocupava, mas quase durante o dia inteiro, pois enquanto passava aos outros, deixava que seus ministros vigiassem os primeiros para o caso de algum, vencido pelas torturas, parecer ceder, mas ordenando impiedosamente que apertassem ainda mais as ataduras[583]e que, descendo os que ao fim expirassem, os arrastassem pela terra.
    1. 7.            E não tinham por nós a mínima consideração, mas agiam como se não existíssemos, um segundo tormento que, além dos golpes, inventaram nossos adversários.
    2. 8.     Havia os que inclusive depois dos tormentos jaziam sobre o cepo com os pés distendidos até o quarto furo, de forma que até por força tinham que ficar de boca para cima sobre o cepo, impotentes, por terem recentes as feridas dos golpes por todo o corpo. Outros jaziam estirados no solo por efeito dos tormentos aplicados de uma vez, e ofereciam aos curiosos um espetáculo mais cruel do que ao serem atormentados, pois levavam em seus corpos as marcas das múltiplas e diversas torturas inventadas.
    3. 9.             Assim as coisas, uns morriam em meio aos tormentos, envergonhando com sua constância o adversário; outros, encerrados meio mortos no cárcere, faleciam ao cabo de poucos dias oprimidos pelas dores; e os demais, con­seguida a recuperação de suas forças a base de cuidados[584], com o tempo e a estadia no cárcere fizeram-se ainda mais animosos.
    4. 10.      Assim pois, quando lhes foi exigido escolher[585]: ou tocar o sacrifício abominável e não ser molestado, conseguindo deles a liberdade maldita, ou não sacrificar e receber condenação à morte, eles, sem vacilar o mínimo, marcharam alegremente para a morte, pois sabiam que as Sagradas Escrituras nos prescrevem: Quem oferecer, diz, sacrifícios a outros deuses será exterminado[586]; e não terás outros deuses além de mim[587]."
    5. 11.      Tais são as palavras que o mártir, como verdadeiro filósofo e amigo de Deus, estando ainda no cárcere antes de sua última sentença, escreveu aos irmãos de sua igreja, confiando-lhes a situação em que se encontrava e, ao mesmo tempo, exortando-os a manterem-se firmemente fiéis à religião de Cristo mesmo depois de sua iminente consumação.
    6. 12.      Mas que necessidade há de estender-se prolixamente e de juntar a combates recentes outros combates ainda mais recentes, sustentados pelos santos mártires em toda a terra, sobretudo aqueles que já não eram atacados em conformidade com uma lei comum, mas com todo o aparato de uma guerra?

 

XI

[Dos mártires da Frígia]

  1. 1.            Ocorreu pois, que já então, na Frígia, toda uma pequena cidade de cristãos foi cercada com todos seus homens por soldados que lhe atearam fogo e queimaram a todos, inclusive crianças e mulheres, que invocavam a gritos o Deus do universo. A razão foi que todos os habitantes da cidade em massa, inclusive o próprio inspetor imperial de contas, os duunviros e todos os magistrados com o povo inteiro, haviam-se confessado cristãos e não obedeciam nem o mínimo aos que lhes ordenavam adorar os ídolos.
  2. 2.     E houve outro, chamado Adaucto, possuidor de uma dignidade romana e procedente de uma linhagem ilustre da Itália, que havia avançado por todos os graus da honra ante os imperadores, ao ponto de haver passa­do irrepreensivelmente aos postos da administração geral, no que eles cha­mam de ofício de diretor superior e intendente geral. Havendo-se distinguido além de tudo isto por suas obras virtuosas na religião e por suas repetidas confissões do Cristo de Deus, suportou o combate pela religião no exercício de seu cargo de intendente geral e foi coroado com a diadema do martírio.

 

XII

[De muitíssimos outros, homens e mulheres, que combateram de diversas maneiras]

  1. 1.            Que necessidade tenho eu agora de recordar por seus nomes os demais, de contar a multidão dos homens ou de pintar os variados tormentos dos admiráveis mártires? Uns foram mortos com machados, como ocorreu aos da Arábia; a outros queimaram as pernas, como sucedeu aos da Capadócia; às vezes os penduravam do alto pelos pés, cabeça para baixo, e acendiam debaixo um fogo lento, cuja fumaça os asfixiava ao arder a lenha, como no caso dos da Mesopotâmia; e às vezes cortavam-lhes o nariz, as orelhas e as mãos e partiam em pedaços os restantes membros e partes de seus corpos, como aconteceu em Alexandria.
  2. 2.     Para que reavivar a recordação dos de Antioquia, dos que eram assados em braseiros, não para fazê-los morrer, mas para alongar seu tormento; e dos que preferiam meter sua mão direita no fogo a tocar o sacrifício maldito? Alguns deles, para fugir da prova, antes de serem presos e de cair nas mãos dos conspiradores, eles mesmos se lançavam do alto de suas casas, considerando o morrer como um subtrair-se à maldade dos ímpios.
  3. 3.            E certa pessoa, santa e admirável pela virtude de sua alma, ainda que mulher por seu corpo, e famosa ainda entre todas as de Antioquia, por sua riqueza, sua linhagem e seu bom nome, havia criado suas filhas nas leis da religião, um par de virgens notáveis pela beleza de seu corpo e em plena juventude. Moveu-se contra elas muita inveja que por todos os meios se esforçava em descobrir seu esconderijo. Ao inteirar-se de que se achavam em terra estrangeira, arranjou-se astutamente para chamá-las a Antioquia, e assim caíram nas redes dos soldados. Vendo-se a si mesma e as suas filhas em tal apuro, a mãe falou-lhes e lhes expôs os horrores que lhes viriam dos homens, inclusive o mais terrível e insuportável de todos, a ameaça de violação, exortando-se a si mesma e exortando as filhas a não tolerar nem sequer que chegassem a roçar-lhes os ouvidos. Dizia-lhes também que entregar suas almas à escravidão dos demônios era pior do que todas as mortes e que toda ruína, e lhes sugeria que a única solução de tudo isto era a fuga para o Senhor.
  4. 4.             Então, estando de acordo as três, arranjaram decentemente seus vestidos em torno de seus corpos e, chegadas ao meio do caminho, pediram aos guardas permissão para afastarem-se um momento, e se lançaram ao rio que corria ali ao lado.
  5. 5.             Estas pois, lançaram-se elas mesmas, mas na mesma Antioquia houve outro par de virgens, em tudo dignas de Deus e verdadeiramente irmãs, ilustres por sua linhagem, brilhantes por sua posição, jovens na idade, formosas de corpo, santas de alma, piedosas de caráter e admiráveis em seu zelo, às quais, como se a terra não fosse capaz de suportar tanta grandeza, os servos dos demônios mandaram lançar ao mar. Isto é o que ocorreu a estas.
  6. 6.             Outros, de sua parte, sofreram no Ponto tormentos que, só de ouvi-los fazem estremecer. A uns trespassaram os dedos com hastes pontiagudas, cravadas pela ponta das unhas; a outros, depois de fundir chumbo no fogo, fervendo e candente como estava, vertiam-no sobre as costas e lhes queimavam as partes mais necessárias do corpo;
  7. 7.      e outros sofreram em seus membros secretos e em suas entranhas tormentos vergonhosos, implacáveis e impossíveis de expressar com palavras, tormen­tos que aqueles nobres e legítimos juízes imaginavam com o maior zelo, mostrando sua crueldade como um alarde de sabedoria e tratando com esforço de superar-se uns aos outros na invenção de suplícios, sempre mais novos, como num concurso com prêmios.
  8. 8.             Mas o fim destas calamidades chegou quando, já sucumbindo à fadiga de tal excesso de males, cansados de matar e fartos e aborrecidos de tanto derramamento de sangue, voltaram-se ao que tinham por bom e humano, de modo que já parecia que nada terrível se empreenderia contra nós.
    1. 9.             Porque não convinha, diziam, manchar as cidades com sangue de sua própria gente, nem acusar de crueldade o poder supremo dos príncipes, benévolo e suave para com todos, antes, fazia-se necessário estender a todos o benefício da humana e imperial autoridade e não mais castigar com a pena de morte. Efetivamente, segundo eles, por causa da humanidade dos imperadores, este seu castigo ficava abolido contra nós.
    2. 10.  Então ordenou-se arrancar os olhos e inutilizar uma das pernas, pois para eles isto era humano e o castigo mais leve aplicado contra nós; em conseqüência, por causa desta humanidade dos ímpios, já não era possível descrever a multidão incalculável de mutilados: uns, aos quais pri­meiro foi arrancado o olho direito com a espada e logo cauterizado; outros, aos quais haviam inutilizado o pé esquerdo, também por meio de cautérios nas articulações, e os que haviam condenado às minas de cobre de cada província, não tanto por seu serviço quanto para maltratá-los e fazê-los sofrer. Além de todos estes, outros sucumbiram em diversos combates que nem sequer é possível catalogar, já que suas façanhas vencem toda palavra.
    3. 11.  Nestes combates, os magníficos mártires de Cristo brilharam por toda a terra habitada e, como era natural, por todas as partes enchiam de assombro as testemunhas oculares de seu valor, e em si mesmos ofereciam a prova manifesta do poder verdadeiramente divino e inefável de nosso Salvador. Mas seria longo, para não dizer impossível, fazer menção de cada um por seus nomes.

 

 

XIII

[Dos presidentes das igrejas, que por meio de seu sangue mostraram a verdade da religião de que eram embaixadores]

  1. 1.            Entre os dirigentes das igrejas que sofreram martírio nas cidades célebres, o primeiro que devemos proclamar como mártir nos monumentos erigidos aos santos do reino de Cristo é Antimo, bispo da cidade de Nicomedia, que foi decapitado.
  2. 2.     Dos mártires de Antioquia, Luciano, excelentíssimo presbítero daquela igreja por toda sua vida, o mesmo que, em Nicomedia, em presença do imperador, proclamou o reino celestial de Cristo, primeiro por palavra, com uma apo­logia, e logo também pelas obras.
  3. 3.     Dos mártires da Fenícia, os mais ilustres podem ser os pastores do rebanho espiritual de Cristo, amados de Deus em tudo, Tiranion, bispo da igreja de Tiro; Zenóbio, presbítero da de Sidon, e também Silvano, bispo das igrejas da comarca de Emesa.
  4. 4.     Este último, junto com outros, foi pasto das feras na mesma Emesa e recebido assim entres os coros dos mártires. Quanto aos outros dois, ambos glorificaram o Verbo de Deus em Antioquia com sua constância até a morte: o bispo, lançado aos abismos do mar; e Zenóbio, o melhor dos médicos, morrendo valorosamente em meio às torturas que lhe aplicaram aos costados.
  5. 5.            Entre os mártires da Palestina, Silvano, bispo das igrejas da comarca de Gaza, foi decapitado, junto com outros trinta e nove, nas minas de cobre de Feno; e ali mesmo terminaram sua vida pelo fogo, junto com outros, os bispos egípcios Peleo e Nilo.

6. E entre estes mencionaremos a grande glória da igreja de Cesaréia, o pres­bítero Pánfilo, o mais admirável de nossos tempos; já descreveremos no momento oportuno a excelência de suas façanhas.

7. Entre os gloriosamente consumados em Alexandria, em todo Egito e na Tebaida, citaremos em primeiro lugar Pedro, bispo da própria Alexandria, exemplar divino de mestres da religião de Cristo; e os presbíteros que com ele estavam, Fausto, Dío e Ammonio, mártires perfeitos de Cristo; assim como Fileas, Hesiquio, Paquimio e Teodoro, bispos das igrejas do Egito, e outros inúmeros além deles, todos ilustres, dos quais fazem memória as igrejas de cada região e de cada lugar. Colocar por escrito os combates dos que lutaram pela religião divina em toda a terra habitada e narrar com exatidão tudo o que lhes aconteceu não é tarefa nossa, mas poderiam torná-la própria os que captaram os fatos com seus próprios olhos. Quanto aos que eu mesmo presenciei, darei a conhecê-los à posteridade por meio de outro livro.

  1. 8.     Na presente obra, ao já dito acrescentarei a palinódia[588] cantada pelo que se pôs contra nós desde o começo da perseguição, que será do máximo proveito para os leitores.
  2. 9.     Agora bem, que palavras seriam bastantes para descrever a abundância de bens e a prosperidade de que foi digno o governo de Roma antes de sua guerra contra nós, durante o período em que os governantes eram amigáveis e pacíficos conosco? Era o tempo em que os que governavam o império universal cumpriam o décimo e o vigésimo aniversário de seu comando e passavam sua vida em completa e sólida paz entre festas, jogos públicos e esplêndidos banquetes e festins.

10. Mas quando sua autoridade, livre de obstáculos, crescia dia a dia e prosperava a grandes passos, de repente deram uma mudança em sua pacífica disposição para conosco e suscitaram uma guerra sem quartel. Mas não se haviam cumprido os dois anos de semelhante movimento quando por todo o Império se produziu algo imprevisto que transtornou todos os assuntos.

  1. 11.     Efetivamente, havendo-se abatido sobre o primeiro e principal dos que mencionamos[589] uma enfermidade que não augurava nada bom e que lhe transtornou a mente até aliená-lo, retirou-se à vida comum e privada junto com o que ocupava o segundo posto nas honras[590]. Mas ainda não se tinha isto realizado assim, e já o Império se partia em dois, todo ele, coisa que jamais no que se recorda ocorreu anteriormente[591].

12. Mas ao cabo de não muito longo intervalo, o imperador Constâncio, que em toda sua vida havia tratado a seus súditos com a maior suavidade e benevolência e à doutrina divina com a melhor amizade, terminou sua vida segundo a lei comum da natureza, deixando seu filho legítimo Constantino como imperador e augusto em seu lugar. Bondoso e suave mais que os outros imperadores, ele foi o primeiro[592] dentre eles ao qual proclamaram deus, por considerá-lo digno de toda a honra que se deve a um imperador depois de sua morte.

  1. 13.     Ele foi também o único dos nossos contemporâneos que durante todo o tempo de seu mandato portou-se de um modo digno do Império. No demais, mostrou-se para todos o mais favorável e benfeitor, e não participou o mínimo da guerra contra nós, antes até, preservou livres de dano e de constrangi­mentos os fiéis que eram seus súditos. Tampouco derrubou os edifícios das igrejas nem admitiu novidade alguma contra nós, e teve o final de sua vida triplamente abençoado, pois foi o único que morreu querido e glorioso em seus próprios domínios imperiais, junto a um sucessor, seu legítimo filho, prudentíssimo e muito piedoso em tudo.
  2. 14.     Seu filho Constantino, imediatamente proclamado desde o início imperador absoluto e augusto pelas legiões, e muito antes destas, pelo próprio Deus, imperador universal, mostrou-se cópia de seu pai na piedade para com nossa doutrina. Assim era este homem. Mas, além deles, proclamou-se a Licínio como imperador e augusto por voto comum dos imperadores.
  3. 15.     Isto irritou terrivelmente a Maximino, que até este momento ainda seguia com o único título de césar. Em conseqüência, como era um grande tirano, arrebatou para si fraudulentamente a dignidade de augusto e nisto converteu-se por si e ante si.

E neste tempo surpreendeu-se tramando um atentado contra a vida de Constantino a aquele que, como foi demonstrado, depois de sua abdicação voltou ao cargo e morreu com a mais vergonhosa morte. Foi o primeiro de quem destruíram as inscrições honoríficas, as estátuas e tudo o que se costu­mava oferecer, como de um homem por demais sacrílego e ímpio.

 

XIV

[Do caráter dos inimigos da religião]

  1. 1.            Seu filho Maxêncio[593], que em Roma havia-se constituído em tirano, começou fingindo ter nossa fé, por agradar e adular o povo romano, e por esta razão ordenou a seus súditos interromper a perseguição contra os cristãos, simulando piedade e pensando que assim pareceria acolhedor e muito mais brando que seus antecessores.
  2. 2.     Na verdade não resultou nas obras como se esperava que seria, mas que, chegando a todo tipo de sacrilégios, não descuidou de uma só obra de perversidade e desregramento, cometeu adultérios e todo tipo de corrupção. Por exemplo, separando de seus maridos as legítimas esposas, ultrajava-as da maneira mais desonrosa e em seguida mandava-as de volta aos maridos; e cuidava de não fazer isto com pessoas insignificantes e obscuras, mas antes, escolhia dentre os mais eminentes dos que haviam alcançado os primeiros postos do senado romano[594].
  3. 3.            Todos os que estavam a sua mercê, plebeus e magistrados, famosos e gente comum, todos estavam cansados de tão terrível tirania, e ainda que estivessem em calma e suportassem sua amarga escravidão, ainda assim, não mudava em nada a sanguinária crueldade do tirano. Efetivamente, às vezes com um pretexto fútil dava carta branca a seu corpo de guarda para executar uma matança contra o povo, e assim foram assassinadas multidões incontáveis do povo romano no meio da cidade, e não por obra das lanças e armas dos citas e bárbaros, mas dos próprios cidadãos.
  4. 4.     Assim, por exemplo, não é possível calcular o número de senadores assassi­nados com vistas a apoderar-se de suas fortunas, pois foram infinitos os eliminados em diferentes ocasiões e por diferentes causas, todas inventadas.
  5. 5.            Mas o cúmulo dos males levou o tirano à magia. Com vistas à magia fazia abrir o ventre de mulheres grávidas, escrutinar as entranhas de crianças recém-nascidas ou degolar leões, e criava algumas abomináveis invocações sobre demônios e um sacrifício conjurador da guerra, pois ele tinha posto toda sua esperança nestes meios para chegar à vitória.
  6. 6.            Em conseqüência, enquanto ele esteve como tirano em Roma, é impossí­vel dizer o que fez para escravizar seus súditos, tanto que os próprios víveres mais necessários chegaram a uma escassez e penúria tão extremas como nossos contemporâneos não lembram ter visto em Roma nem em nenhuma outra parte.
    1. 7.      Quanto ao tirano do Oriente, Maximino, tendo feito um pacto secreto de amizade com o de Roma, como com um irmão na maldade, esforçava-se em ocultá-lo o maior tempo possível, mas foi descoberto e pagou logo como lhe era merecido.
    2. 8.             Era de admirar como também ele havia conseguido afinidade e irmandade, e mais, o primeiro lugar em maldade e a palma em perversidade, com o tirano de Roma. Efetivamente, considerava os principais charlatães e magos dignos da mais alta honra, de tão medroso e extremamente supersticioso que era e pela importância que dava a errar em matéria de ídolos e demônios. Sem consultar adivinhos e oráculos era absolutamente incapaz de atrever-se a mover, por assim dizer, sequer uma unha.
    3. 9.             Esta foi a causa de que se entregasse com maior fúria e freqüência à perse­guição contra nós. Deu ordem de levantar templos em todas as cidades e renovar diligentemente os santuários destruídos pelo passar do tempo; estabeleceu em cada lugar e em cada cidade sacerdotes de ídolos, e sobre estes, como sumo sacerdote de cada província, com escolta e guarda militar, um dos magistrados que mais brilhantemente houvessem se distinguido em todos os cargos públicos, e por fim, presenteou o comando e as maiores honras, sem a menor reserva, a toda classe de feiticeiros, por crê-los gente piedosa e amiga dos deuses.
    4. 10.      Partindo destes princípios, vexava e oprimia já não uma cidade ou uma região, mas todas as províncias que estavam sob seu domínio, com cobranças de ouro, prata e riquezas sem conta, e com gravíssimas acusações falsas e outras diferentes penas, segundo a ocasião. Tomando dos ricos os bens acumulados por seus antepassados, distribuía a mãos cheias riquezas e montes de dinheiro aos aduladores que o rodeavam.
    5. 11.      Na verdade, entregava-se a tais excessos de bebida e de embriaguez que, bebendo, enlouquecia e perdia a razão, e dava tais ordens estando bêbado, que no dia seguinte, recobrados os sentidos, tinha que arrepender-se. Não se permitia ficar atrás de ninguém como crápula e desregrado, tornando-se mestre de maldade para os que o rodeavam, governantes e governados. Incitava o exército com todo tipo de prazeres e intemperanças a entregar-se à frouxidão, e provocava os governantes e comandantes militares a cair sobre os súditos com rapinas e mesquinhez, tendo-os quase como companheiros de tirania.
      1. 12.     Para que recordar as torpezas passionais daquele homem ou contar a multidão de mulheres que corrompeu? De fato, não passava por uma cidade sem cometer adultérios continuamente e raptar donzelas.
      2. 13.     Saía-se bem nessas façanhas com todos, exceto unicamente com os cris­tãos, que, desprezando a morte, desdenhavam tamanha tirania. Os homens, efetivamente, suportavam o fogo e o ferro, a crucificação, as feras e as pro­fundezas do mar, que lhes amputassem e queimassem os membros, que lhes furassem e arrancassem os olhos; a mutilação, enfim, de todo o corpo e, como se fosse pouco, a fome, as minas e as correntes, mostrando-se em tudo isto mais prontos a padecer pela religião do que a dar aos ídolos o culto devido a Deus.
      3. 14.     E quanto às mulheres, não menos fortalecidas que os homens pelo ensina­mento da doutrina divina, umas suportavam os mesmos combates que os homens e levaram os mesmos prêmios por sua virtude; outras, arrastadas para serem desonradas, preferiram entregar sua alma à morte antes que o corpo à desonra.

15. E certo que, de todas as que foram violadas pelo tirano, somente uma, cristã e das mais distintas e ilustres de Alexandria, conseguiu com sua firmeza mais que varonil vencer a alma apaixonada e dissoluta de Maximino. Mesmo sendo muito célebre por sua riqueza, sua linhagem e sua educação, tudo preteria a sua castidade. Maximino insistiu muito, mas não era capaz de matar a que já estava disposta a morrer, pois sua paixão era mais forte do que sua cólera. Condenou-a então ao desterro e confiscou toda sua propriedade.

16. E outras incomparáveis mulheres, não podendo nem escutar sequer ameaças de violação, suportaram por parte dos governadores de província todo tipo de tormentos, de torturas e de suplícios mortais.

Por isso também estas foram admiráveis. Mas a mais extraordinariamente admirável foi aquela mulher de Roma, a mais nobre em verdade e a mais casta de todas quantas o tirano dali, Maxêncio, tentara atropelar, imitando Maximino.

17. Efetivamente, assim que soube (também ela era cristã) que estavam em sua casa os que serviam ao tirano em tais empreitadas, e que seu marido, ainda que prefeito dos romanos, por medo havia permitido que a levassem com eles, pediu permissão por um momento com o pretexto de arrumar-se, e entrando em seu quarto, sozinha, ela mesma cravou-se uma espada e morreu
instantaneamente. Aos que a levariam deixou seu cadáver, mas a todos os homens presentes e futuros mostrou com suas ótimas obras, mais sonoras que qualquer voz, que a única coisa invencível e indestrutível é a virtude dos cristãos.

18. Tal abundância de maldade acumulou-se, de fato, num mesmo tempo por obra dos dois tiranos que haviam recebido separadamente Oriente e Ocidente. E quem, procurando a causa de tantos males, poderia duvidar que foram produzidos pela perseguição a nós? Pelo menos este estado de confusão não cessou de modo algum até que os cristãos obtivessem a liberdade.

 

XV

[Do acontecido aos de fora]

  1. 1.            O fato é que, durante todo o decênio que durou a perseguição, não deixaram de conspirar e fazer-se a guerra mutuamente. Os mares eram inavegáveis, e todos que desembarcavam de onde quer que fosse, não escapavam de ser submetidos a toda classe de maus-tratos: retorciam-nos sobre o potro e laceravam-lhes as costas, enquanto os interrogavam entre torturas de toda espécie se não procediam do lado inimigo; e por último submetiam-nos ao suplício da cruz ou do fogo.
  2. 2.     Além disso, por toda parte fabricavam-se e se preparavam escudos e couraças, dardos, lanças e demais instrumentos de guerra, assim como trirremes e armas navais. Ninguém podia esperar cada dia outra coisa senão um ataque dos inimigos. E como se fosse pouco, também a fome e a peste subseqüentes se abateram sobre eles; mas disto contaremos o necessário a seu tempo.

 

XVI

[Da mudança e melhora da situação]

  1. 1.            Esta era a situação ao longo da perseguição, que com a ajuda da graça de Deus, no décimo ano já estava terminada, ainda que de fato tenha começado a ceder depois do oitavo[595]. Efetivamente, assim que a graça divina e celes­tial começou a mostrar uma preocupação benévola e propícia para conosco, também nossos governantes, aqueles mesmos que nos haviam feito a guerra, mudaram milagrosamente de pensamento e cantaram a palinódia[596], extinguindo mediante editos favoráveis e ordens cheias de suavidade a fogueira da perseguição, que havia alcançado tal amplidão.
  2. 2.            Mas a causa desta mudança não foi algo próprio dos homens, nem como alguém poderia dizer, compaixão ou humanidade dos governantes, nem muito menos, já que eles mesmos eram os que cada dia, desde o começo até esse momento, imaginavam mais e piores suplícios contra nós, renovando constantemente, umas vezes de um modo e outras de outro, com diversas invenções, os maus-tratos que nos infligiam. Foi mais evidentemente uma visita da própria providência divina, que reconciliou o povo consigo, atacou o perpetrador de nossos males[597] e descarregou sua ira sobre o líder da maldade e de toda a perseguição,
  3. 3.     já que, ainda que isto houvesse de ocorrer por juízo de Deus, não obstante, a Escritura diz: Ai daquele por quem venha o escândalo! Alcançou-os, pois, um castigo divino que, começando por sua própria carne, avançou até sua alma.
  4. 4.            Efetivamente, de repente saiu-lhe um abcesso em meio às partes secretas de seu corpo, e logo uma chaga fistulosa em profundidade. Sem possibilidade de cura, foram-lhe corroendo até o mais fundo das entranhas. Dali brotava um ninho de vermes e exalava um fedor mortal, já que a massa de suas carnes, produzida pela abundância de alimento e transformada já antes da enfermidade em uma quantidade excessiva de gordura, ao apodrecer então, oferecia o aspecto mais insuportável e espantoso aos que se aproximavam.

5.   Dos médicos, uns, absolutamente incapazes de suportar a exagerada enormidade do fedor, eram degolados; outros, sem poder ajudá-lo em nada por estar inchada toda a massa e já não haver esperança de salvação, eram assassinados sem piedade.

 

XVII

[Da palinódia dos soberanos]

  1. 1.            Lutando contra males tão grandes, deu-se conta das atrocidades que havia ousado cometer contra os adoradores de Deus e, em conseqüência, reco­lhendo em si seu pensamento, primeiramente confessou o Deus do universo e depois, chamando os de seu séquito, deu ordens para que, sem tardar um momento, fizessem cessar a perseguição contra os cristãos e que, mediante uma lei e um decreto imperiais, se dessem pressa em reconstruir suas igrejas e praticassem o culto de costume, oferecendo orações pelo imperador.
  2. 2.            Imediatamente pois, as obras seguiram as palavras, e por todas as cidades se divulgou um edito que continha a palinódia do que foi feito conosco, nos seguintes termos:
  3. 3.            "O Imperador César Galério Valério Maximiano, Augusto Invicto, Pontífice Máximo, Germânico Máximo, Egípcio Máximo, Tebeu Máximo, Sármata Máximo cinco vezes, Persa Máximo duas vezes, Carpo Máximo seis vezes, Armênio Máximo, Medo Máximo, Adiabeno Máximo, Tribuno da Plebe vinte vezes, Imperator dezenove vezes, Cônsul oito vezes, Pai da Pátria, Procônsul;
  4. 4.     e o Imperador César Flávio Valério Constantino Augusto Pio Félix Invicto, Pontífice Máximo, Tribuno da Plebe, Imperator cinco vezes, Cônsul, Pai da Pátria, Procônsul;
  5. 5.            e o Imperador César Valério Liciniano Licínio Augusto Pio Félix, Invicto, Pontífice Máximo, Tribuno da Plebe quatro vezes, Imperator três vezes, Cônsul, Pai da Pátria, Procônsul, aos habitantes de suas próprias províncias, saúde.
  6. 6.            Entre as outras medidas que tomamos para utilidade e proveito do Estado, já anteriormente foi vontade nossa endereçar todas as coisas conforme as antigas leis e ordem pública dos romanos e prover para que também os cristãos, que tinham abandonado a seita de seus antepassados[598], voltassem ao bom propósito.
    1. 7.             Porque, devido a alguma razão especial, é tão grande a ambição que os retém e a loucura que os domina, que não seguem o que ensinaram os antigos, o mesmo que talvez seus próprios progenitores estabeleceram anteriormente, mas, segundo o próprio desígnio e a real vontade de cada um, fizeram leis para si mesmos, e guardam estas, tendo conseguido reunir multidões diversas em diversos lugares.
    2. 8.             Por esta causa, quando a isto seguiu uma ordem nossa de que mudassem para o estabelecido pelos antigos, um grande número esteve sujeito a perigo, e outro grande número viu-se perturbado e sofreu toda classe de mortes.
    3. 9.            Mas como a maioria persistisse na mesma loucura e víssemos que nem rendiam aos deuses celestes o culto devido nem atendiam ao dos cristãos, firmes em nossa benignidade e em nosso constante costume de outorgar perdão a todos os homens, críamos que era necessário estender também de boa vontade ao presente caso nossa indulgência, para que novamente haja cristãos e reparem os edifícios em que se reuniam, de tal maneira que não pratiquem nada contrário à ordem pública. Por meio de outra carta mostrarei aos juízes o que deverão observar.
    4. 10.     Em conseqüência, em troca desta nossa indulgência, deverão rogar a seu Deus por nossa salvação, pela do Estado e por sua própria, com o fim de que, por todos os meios, o Estado se mantenha são e possam eles viver tranqüilos em seus próprios lares."
    5. 11.     Este era o teor do edito escrito em língua latina e tradução dentro do possível para o grego. O que ocorreu depois disto, já é tempo de examiná-lo.

 

[Apêndice ao livro VIII]

  1. 1.            Agora bem, o autor deste edito, depois de semelhante confissão, ficou ime­diatamente livre das dores, ainda que não por muito tempo, e morreu. Uma tradição diz que este foi o primeiro causador da calamidade da perseguição. Já de antigamente, antes que os demais imperadores se movessem, ele havia forçado a mudar de parecer os cristãos que estavam no exército e, é claro, começando pelos que estavam em sua casa. A uns tirou a dignidade militar, a outros vexou da maneira mais indigna e a outros inclusive ameaçou com a morte. Por último, induziu seus sócios imperiais à perseguição contra todos. Não ficaria bem que silenciássemos sobre o final que estes tiveram.
  2. 2.            Foram, pois, quatro os que haviam repartido o governo supremo[599]. Os que pelo tempo e pelas honras tinham a precedência, quando ainda não haviam se cumprido dois anos do início da perseguição, retiraram-se do comando, como já explicamos acima. E depois de passar o resto de suas vidas como simples pessoas privadas, tivera o seguinte fim:
  3. 3.            O que pelas honras e pela idade ocupava o primeiro lugar, acabou minado por uma longa e penosa enfermidade física; e o que depois dele ocupava o segundo posto, truncou sua vida enforcando-se; e isto sofreu, segundo divina profecia, por causa dos numerosíssimos crimes que havia cometido.
  4. 4.     E dos que seguiam a estes, o último, de quem já dissemos que foi efetiva­mente o causador da perseguição, padeceu males tão grandes como os já mencionados anteriormente. Por outro lado, o que precedia a este, a saber, o mui benigno e suavíssimo imperador Constâncio, que passou todo o tempo de seu governo de uma maneira digna do principado e que, em tudo o mais, mostrou-se o mais favorável e o mais benfeitor para com todos, depois de manter-se à margem da guerra contra nós, recebeu em troca um final de vida realmente feliz e triplamente abençoado, pois foi o único a morrer feliz e gloriosamente no exercício de seu cargo imperial e deixando como sucessor nele seu filho legítimo, em tudo prudentíssimo e muito religioso.
  5. 5.            Este foi imediatamente proclamado pelas legiões imperador perfeitíssimo e augusto, e constituiu-se em imitador da piedade paterna para com nossa doutrina. Assim foi a morte dos quatro supracitados ocorrida em tempos diferentes.
  6. 6.            Destes, o único que ainda vivia, o mencionado um pouco mais acima, junto com os que depois disto foram introduzidos no governo, fez pública ante todos a confissão acima mencionada, mediante o edito que já expusemos antes.

 

 

 

 

 

 

 

 

Livro IX

 

I

[Da fingida distensão]

  1. 1.            A palinódia da ordem imperial antes citada foi exposta por todas as partes e em todo lugar da Ásia, assim como nas províncias circundantes. Cumprido isto desta maneira, Maximino, o tirano do Oriente, ímpio como nenhum outro e convertido no maior inimigo da religião do Deus do universo, ficou muito desgostoso do conteúdo do escrito[600], e em vez do edito, ordenou verbalmente aos governantes a ele sujeitos que afrouxassem na guerra contra nós. Efetivamente, como não lhe era permitido contradizer de outra forma o juízo dos mais poderosos, guardando bem a mencionada lei e procurando cuidadosamente que nas regiões sujeitas a ele se fizesse pública, por meio de uma ordem oral manda os governantes a ele sujeitos afrouxarem a perseguição contra nós[601]. Mas os termos da ordem vão sendo comunicados por escrito.
  2. 2.     Assim pois, Sabino, honrado entre eles com a dignidade dos magistra­dos mais elevados, dá a conhecer a decisão do imperador aos governa­dores de cada província mediante uma carta em latim. Sua tradução é a seguinte:
  3. 3.     "Com o mais nobre e mais santo zelo, já faz tempo que a divindade de nossos senhores, santíssimos imperadores[602], determinou orientar as mentes de todos os homens ao santo e reto caminho de viver, para que, inclusive os que pareciam seguir um costume alheio ao dos romanos, rendessem o culto devido aos deuses imortais.
  4. 4.     Mas a obstinação e a rude vontade de alguns chegou a tal ponto que nem com a justa razão da ordem podia-se afastá-los de sua própria determinação, nem o castigo prometido os afastava.
  5. 5.     Como aconteceu, pois, que por causa desta atitude muitos se pusessem em perigo, a divindade de nossos senhores, os poderosíssimos imperadores, julgando segundo a grande nobreza de sua piedade, que era alheio a seu próprio e diviníssimo propósito estar lançando os homens a um perigo tão grande por uma tal causa, ordenou escrever a tua inteligência por meio de minha devoção, que, se algum cristão for encontrado tomando parte na religião de sua própria nação, o afastes do mal e do perigo que o ameaça e não julgues que alguém deva ser castigado por este motivo, já que com o correr de tão longo tempo foi comprovado que de nenhuma maneira é possível persuadi-los a se afastarem de semelhante obstinação.
  6. 6.             Por conseguinte, tua solicitude deve escrever aos curadores, aos magis­trados municipais e aos prepostos de distrito rural de cada cidade para que saibam que, de agora em diante, não lhes convém preocupar-se com este edito[603]."
  7. 7.             Depois disto, os de cada província, pensando que a intenção do que se lhes escrevia era a verdade, dão a conhecer por meio de cartas o pensamento imperial aos curadores, aos magistrados municipais e aos prepostos de dis­trito rural. Mas não fizeram avançar o assunto somente por meio de cartas, mas também, e muito principalmente, por meio das obras. Com o fim de levar a cabo a decisão imperial, tiravam à luz do dia e davam liberdade a todos que tinham encerrados nos cárceres por terem confessado a divindade, e deixavam ir também os que dentre eles estavam condenados às minas. Ainda que se equivocassem, eles criam que isto era o que verdadeiramente pensava o imperador.
  8. 8.             E ao ocorrerem deste modo as coisas, de repente, como uma luz que brilha saindo da noite escura, em cada cidade podia-se ver igrejas congregadas, reuniões concorridíssimas e, além disso, as cerimônias executadas do modo costumeiro. E todo pagão infiel era presa de grande espanto ante isto e se maravilhava de mudança tão prodigiosa, e a gritos proclamava grande e único verdadeiro o Deus dos cristãos.
  9. 9.             Dos nossos, os que haviam sustentado valente e fielmente o combate das per­seguições recobraram novamente sua liberdade franca para com todos; em troca, os que, enfermos na fé, haviam naufragado em suas almas apressavam-se alegremente em busca de remédio, implorando e pedindo aos fortes sua mão direita salvadora e suplicando a Deus que lhes fosse propício.
    1. 10.     E logo, os nobres atletas da religião, liberados do sofrimento das minas, regressava a suas casas caminhando majestosos e radiantes através das cidades e transbordando uma indizível alegria e uma liberdade franca que não é possível traduzir com palavras.
    2. 11.     Assim pois, ao longo dos caminhos e das praças, multidões em tropel rea­lizavam sua viagem louvando a Deus com cantos e salmos, e os que antes estavam presos com duríssimos castigos e desterrados de suas pátrias, deverias vê-los agora recobrando seus lares com rosto transbordante de alegria e satisfação, tanto que inclusive os que antes gritavam contra nós, ao ver agora um prodígio tão contrário ao que se poderia esperar, uniam-se também a nosso regozijo pelo ocorrido.

 

II

[Da posterior piora]

1. Mas o tirano[604] que, como dissemos, governava a parte do Oriente, inimigo que era do bem e conspirador contra todos os bons, incapaz de suportar isto, nem seis meses completos agüentou que se fizesse desta maneira. Por conseguinte, pôs-se a maquinar meios para destruir a paz. Primeiramente tentou com um pretexto impedir-nos a reunião nos cemitérios[605]; depois, valendo-se de alguns homens malvados, enviou a si mesmo embaixadas contra nós, pois exortou aos cidadãos de Antioquia a que pedissem para obter dele como um dos maiores benefícios que de modo algum se permitisse que um cristão habitasse em sua pátria, e que sugerissem a outros esta mesma manobra. Na própria Antioquia o autor de tudo isto foi Teotecno, homem temível, charlatão, malvado e que não fazia honra a seu nome[606]. Era, segundo parece, curador da cidade.

 

III

[Da estátua recém-erigida em Antioquia]

1. Este homem[607] pois, que nos fez a guerra o quanto pôde e por todos os meios se esforçou para que os nossos fossem caçados em seus esconderijos como ladrões sacrílegos, e que tudo isto maquinou baseado na calúnia e acusações contra nós e foi o causador da morte de inúmeras pessoas, termi­nou por erigir uma estátua de Zeus Filios[608] com práticas de magia e bruxa­rias. Inventou para ele cerimônias impuras, iniciações de mau agouro e purificações abomináveis, e até diante do imperador fez pompa de sua prodigiosa categoria mediante o que ele tinha por oráculos. Este, para adular seu dono e senhor no que lhe agradava, excitou o demônio contra os cristãos e disse que o deus ordenava expulsar os cristãos para fora dos limites da cidade e da região circundante, por serem, afirmava, seus inimigos.

 

IV

[Das decisões votadas contra nós]

1. Este foi o primeiro que se saiu bem em seu propósito. Todas as demais autoridades que habitavam as cidades sujeitas ao mesmo comando apressa­vam-se a tomar resoluções semelhantes, enquanto os governadores de província, ao perceberem que isto agradava o imperador[609], sugeriam a seus súditos que fizessem o mesmo.

  1. 2.             O tirano, satisfeitíssimo, dava seu assentimento a estas decisões mediante um decreto, e novamente reavivou-se a perseguição contra nós. O próprio Maximino estabeleceu para cada cidade como sacerdotes dos ídolos, e acima destes sumos sacerdotes, a todos os que mais se distinguiam nas funções públicas e que tinham adquirido fama em todas. Também eles foram muito solícitos em tudo o que tangia ao culto dos deuses que tinham a seu cuidado.
  2. 3.      Em resumo, a absurda superstição do dono e senhor induzia todos os súditos, governantes e governados, a fazer tudo contra nós para obter as suas graças. Em troca dos benefícios que acreditavam que obteriam dele, faziam-lhe este favor, o maior: desejar nosso extermínio e continuar fazendo exibição das mais novas maldades contra nós.

 

V

[Das "Memórias" fingidas]

  1. 1.            Depois de se inventar - como parece - umas Memórias de Pilatos[610] e de Nosso Salvador, abarrotadas de todo gênero de blasfêmia contra Cristo, com a anuência do soberano são distribuídas por todo o país sujeito a seu comando, com instruções escritas para que em todo lugar, assim no campo como nas cidades, fossem expostas publicamente a todos, e que os professores nas escolas cuidassem de ensiná-las às crianças em vez das ciências, e fazer com que as decorassem.
  2. 2.            Enquanto isto se cumpria desta maneira, outro, um comandante militar, que os romanos chamam dux, ordenou que tirassem à força da praça pública de Damasco da Fenícia umas mulheres desprezíveis e as ameaçava com a aplicação de torturas, forçando-as a declarar por escrito que durante algum tempo haviam sido cristãs e que entre os cristãos tinham visto ações criminosas, e que estes cometiam ações licenciosas nas próprias casas do Senhor, e tudo quanto queriam que elas dissessem para calúnia de nossa doutrina. Em seguida inseriu estas declarações em umas memórias[611] e as comunicou ao imperador, que ordenou que também este documento fosse tornado público em todo lugar e em cada cidade.

 

VI

[Dos que neste tempo sofreram martírio]

1. Não tardou muito, porém, para que este comandante militar pagasse a pena de sua maldade suicidando-se. Quanto a nós, novamente recomeçaram os desterros e as terríveis perseguições, e mais uma vez levantaram-se contra nós os governadores de todas as províncias, até o ponto de que alguns dos mais eminentes na doutrina divina foram presos e receberam sentença inapelável de morte. Deles, três em Emesa, cidade da Fenícia, que se confessaram cristãos e foram entregues como pasto às feras. Entre eles estava o bispo Silvano, de avançada idade, que havia exercido seu ministério durante quarenta anos completos.

  1. 2.            Também por este mesmo tempo, Pedro, que presidia brilhantemente as igrejas de Alexandria - um modelo divino de bispo por sua vida virtuosa e por seu estudo assíduo das Sagradas Escrituras -, foi preso sem nenhum motivo e sem que se esperasse tal coisa, de repente e sem razão, como por ordem de Maximino, e foi decapitado. E junto com ele sofreram a mesma pena muitos outros bispos do Egito.
  2. 3.     E Luciano, homem excelentíssimo em tudo, merecedor de aplauso por sua vida, sua continência e seus conhecimentos sagrados, presbítero da igreja de Antioquia, foi conduzido à cidade de Nicomedia, onde casualmente se encontrava o imperador. Tendo exposto publicamente em presença do soberano a defesa da doutrina pela qual o faziam comparecer, foi encarcerado e executado.
  3. 4.     Na verdade, foi tanto o que aquele inimigo do bem, Maximino, organizou contra nós em breve espaço de tempo, que nos pareceu que tinha levantado uma perseguição muito mais cruel do que a primeira.

 

 

 

 

 

 

VII

[Do edito contra nós afixado nas colunas]

  1. 1.            Pelo menos - coisa que nunca havia ocorrido - gravavam-se em esteias de bronze e se expunham ao público no meio das cidades as decisões que as cidades votavam contra nós e os decretos com as ordens imperiais corres­pondentes, e as crianças nas escolas cada dia tinham em seus lábios a Jesus, Pilatos e as Memórias inventadas para insultar.
  2. 2.     Aqui me parece que é necessário inserir o próprio edito de Maximino, o que foi exposto nas esteias, para que ao mesmo tempo se evidencie, por um lado, a arrogância jactanciosa e insolente do ódio daquele homem contra Deus, e por outro, o desagrado do mal por parte da justiça divina, sempre alerta contra os ímpios, que o perseguia de perto, pois não muito depois, impelido por ela, começou a dizer sobre nós todo o contrário e o decretou em leis escritas.

 

Cópia da tradução do decreto de Maximino correspondente às decisões votadas contra nós, tomadas da estela de tiro.

3.   "Por fim, a débil audácia da mente humana fortificou-se ao ter sacudido e dissipado toda obscuridade e trevas do erro - o mesmo que antes assediava com a sombra funesta da ignorância - dos sentidos de uns homens não tão ímpios quanto desgraçados, e reconhece que é regida e consolidada pela providência benevolente dos deuses imortais.

  1. 4.            É realmente incrível dizer quão grato e quão prazeroso e gratificante foi para nós que nos tenhais dado a maior demonstração de vossos sentimentos de amor aos deuses quanto, mesmo antes de agora, ninguém ignorava o quanto éreis observantes e piedosos para com os deuses imortais, pois vossa fé não se dava a conhecer como fé de novas e ocas palavras, mas como fé sólida e extraordinária em excelentes obras.
  2. 5.     Pelo que vossa cidade poderia chamar-se justamente templo e habitáculo dos deuses imortais, já que está bem claro por muitos exemplos que deve seu atual florescimento ao fato de nela habitarem os deuses do céu.
  3. 6.     Vede pois que vossa cidade, descuidando de todos seus interesses particulares e passando por alto as anteriores solicitudes sobre assuntos que lhe diziam respeito, quando novamente percebeu que estavam começando a infiltrar-se os sequazes desta maldita impostura e que era como uma fogueira descui­dada e adormecida, cujas brasas ao reavivarem-se produzem os maiores incêndios, imediatamente e sem demora alguma recorreu a nossa piedade, como à metrópole de todas as religiões, pedindo algum remédio e ajuda.
  4. 7.     É evidente que este saudável pensamento vos foi sugerido pelos deuses por causa da fé de vossa religião. Foi ele efetivamente, ele, Zeus, o maior e o mais elevado, que preside vossa ilustríssima cidade e livra da ruína funesta vossos deuses pátrios, vossas mulheres, vossos filhos e vossos lares, quem insuflou em vossas almas esta vontade salvadora, mostrando e tornando manifesto quão excelente, esplêndido e saudável é aproximar-se com a devida veneração ao culto e às cerimônias sagradas dos deuses imortais.
    1. 8.             Porque, quem poderia ser tão insensato e alheio a todo entendimento que não compreenda que devemos à solicitude benevolente dos deuses que a terra não negue as sementes a ela confiadas, nem arruine com a espera vã a espe­rança dos camponeses; que não se firme inevitavelmente sobre a terra o espec­tro de uma guerra ímpia nem a morte arraste consigo os corpos esquálidos ao corromper-se o bom temperamento do céu; que o mar embravecido pelo sopro dos ventos desmedidos não se levante, os furacões, soprando inespe­radamente, não levantem tempestades mortíferas; mais ainda, que a terra, mãe e nutriz de todos os seres, não se afunde com tremor espantoso desde seus abismos mais profundos nem as montanhas que há em cima caiam nas fendas abertas? Ninguém ignora que precisamente todas estas calamida­des, e outras ainda muito piores, ocorreram com freqüência antes de agora.
    2. 9.      E todas elas ocorreram por causa do erro funesto da vã impostura desses homens iníquos, quando prevalecia em suas almas e quase, por assim dizer, oprimia com suas desonras a todas as regiões do mundo habitado."

10. A isto, depois de outras coisas, acrescenta:

"Que contemplem como florescem nas amplas planícies as messes ondulantes de espigas, como reluzem os prados com suas plantas e flores, graças à chuva benfazeja, e como o céu se transformou em suavíssima tempérie.

  1. 11.     Alegrem-se todos de agora em diante porque, graças a nossa piedade, a nossos sacrifícios rituais e nossa veneração, aplacou-se o poderosíssimo e firme ar, e que por isto mesmo se comprazam em desfrutar da mais tranqüila paz, seguros e em sossego. E em conseqüência, que todos quantos, com absoluto proveito, retornaram daquele cego erro e extravio para um reto e ótimo pensar, alegrem-se ainda mais, como se se vissem livres de um furacão imprevisto ou de uma terrível enfermidade e colheram para o futuro o gozo prazenteiro da vida.
  2. 12.     Mas se permanecerem em sua maldita impostura, que sejam separados e lançados bem longe de vossa cidade e suas cercanias, como pedistes, para que desta maneira vossa cidade, separada de toda mancha e de toda impiedade, seguindo vossa louvável diligência neste assunto e vosso propósito natural, possa com a devida reverência dedicar-se aos sacrifícios rituais dos deuses imortais.
  3. 13.     E para que saibais quão agradável nos foi vossa petição sobre este assunto e quão predisposta ao amor do bem está nossa alma, por vontade própria, mesmo sem decreto e sem petição, permitimos a vossa devoção que peçais o maior dom que queirais em troca deste vosso religioso propósito.
  4. 14.     E agora não vacileis em fazê-lo e em receber o prêmio, pois o alcançareis sem a menor demora. Este prêmio outorgado a vossa cidade proporcionará por todos os séculos um testemunho de vossa religiosa piedade para com os deuses imortais e demonstrará a vossos filhos e descendentes como haveis alcançado de nossa benevolência dignos prêmios por este vosso plano de vida."

15. Estas medidas contra nós tornaram-se públicas em cada província, impe­dindo a nossos interesses qualquer boa esperança, ao menos quanto ao que depende dos homens, tanto que, segundo aquele divino oráculo, sen­do possível, até os próprios eleitos poderiam tropeçar sob tais circuns­tâncias[612].

16. Mesmo assim, quando a esperança já estava quase morrendo na maioria, de repente, estando ainda a caminho por algumas regiões os servidores deste edito[613] contrário a nós, Deus, campeão de sua própria Igreja, fazendo travar o freio, por assim dizer, ao orgulho do tirano contrário a nós, demonstrou que o céu era um aliado posto ao nosso lado.

 

VIII

[Dos acontecimentos que seguiram entre fome, peste e guerras]

  1. 1.            Por conseguinte, os aguaceiros costumeiros e as chuvas contínuas retiveram seu habitual tributo à terra, mesmo sendo a estação invernal, e uma fome inesperada fez sua aparição, ao que se juntou a peste e o ataque de alguma outra enfermidade: uma úlcera que, por causa de sua inflamação, chamava-se significativamente carbúnculo[614], ocorrendo por todo o corpo, causava sérios perigos aos pacientes, e não só isso, mas atacando na maior parte dos casos particularmente os olhos, deixava cegos inúmeros homens, mulheres e crianças.
  2. 2.            Por cima disto tudo sobreveio ao tirano a guerra contra os armênios, amigos antigos e aliados dos romanos. Como também eles eram cristãos e cultivavam com diligência a piedade para com a divindade, o inimigo de Deus tratou de obrigá-los a sacrificar aos ídolos e demônios, e de amigos tornou-os inimigos, e de aliados, adversários.
  3. 3.     O fato de que tudo isto afluísse de um golpe e a um mesmo tempo serviu para refutar a jactância do ousado tirano contra Deus, já que, efetivamente, vinha se vangloriando de que, por causa de seu zelo pelos ídolos e de sua obsessão contra nós, nem a fome, nem a peste, nem sequer a guerra tinham lugar em seus dias. Estas calamidades pois, sobrevindo juntas e ao mesmo tempo, constituíram também o prelúdio de sua queda.
  4. 4.     Assim, ele mesmo se ocupava junto com suas tropas na guerra contra os armênios, enquanto a fome e a peste juntas deixavam terrivelmente exaustos os demais habitantes das cidades sujeitas a ele, tanto que por uma medida de trigo dava-se em troca dois mil e quinhentos dracmas áticos.
  5. 5.            Em conseqüência eram milhares os que morriam nas cidades, ainda que mais numerosos do que estes fossem os que morriam nos campos e nas aldeias, até o ponto de que os antigos censos, abundantes em camponeses, por pouco não foram completamente apagados quando morreram quase todos de uma vez por falta de alimento e pela pestilenta enfermidade.
    1. 6.             Assim pois, alguns julgaram bom vender seus mais apreciados bens aos mais ricos por umas migalhas de alimento; outros, vendendo pouco a pouco suas posses, haviam chegado à mais extrema penúria, e houve ainda alguns que, tendo mastigado fiapos de ervas ou comido por descuido certas plantas mortíferas, arruinaram o estado físico de seu corpo e pereceram.
    2. 7.             E algumas mulheres nobres das cidades, empurradas pela indigência ao mais vergonhoso mister, saíam pelas praças públicas a mendigar, e somente no rubor de seu rosto e na decência de sua vestimenta deixavam entrever a prova de sua antiga criação nobre.
    3. 8.             E outros, já secos, como fantasmas cadavéricos, lutando com a morte e resvalando aqui e acolá, terminavam caindo, impotentes para manter-se em pé. Estendidos de boca para baixo no meio das praças, imploravam que se lhes estendesse um pedacinho de pão, e com a alma já nos últimos sopros, gritavam que estavam famintos, sem ter mais forças do que para este único e doloroso grito.
    4. 9.             Outros, por outro lado, os que pareciam ser dos mais acomodados, estupe­fatos ante a multidão de pedintes, depois de terem repartido inumeráveis esmolas, passaram a se encerrar numa atitude dura e insensível, esperando ainda não padecer também eles o mesmo que os pedintes. De fato, em meio às praças e às vielas ofereciam já à vista o mais lamentável espetáculo os cadáveres desnudos que jaziam insepultos desde muitos dias.
    5. 10.  Alguns até já eram repasto para os cães, e por esta causa, sobretudo, os vivos começaram a matar cães, temerosos de que tivessem raiva e se dedi­cassem a devorar homens.
    6. 11.      Mas a própria peste causava maiores estragos em todas as casas, sobretudo naquelas em que a fome não era capaz de exterminá-los porque abundavam em provisões. Assim, os opulentos: magistrados, governadores e muitíssimos funcionários, deixados pela fome como de propósito para a peste, padeceram uma morte cruel e rapidíssima. Tudo, em conseqüência, estava cheio de gemidos e por todas as vielas, praças e avenidas não se podia contemplar outra coisa que as lamentações com seu costumeiro acompanhamento de flautas e ruído de golpes[615].
    7. 12.  Desta maneira, lutando ao mesmo tempo com as armas acima, a peste e a fome, a morte devorou em pouco tempo famílias inteiras, ao ponto de ser possível ver num só enterro levarem-se os corpos de dois ou três mortos.
    8. 13.  Tais calamidades eram o pagamento pela grande jactância de Maximino e pelas petições das cidades contra nós, sendo assim que a todos os pagãos se manifestava a prova do zelo e da piedade dos cristãos em tudo.

14.  Eles eram, efetivamente, os únicos que nesta circunstância calamitosa demonstravam com suas próprias obras a compaixão e o amor aos homens. Uns perseveravam todo o dia no cuidado e no enterro dos mortos (pois eram milhares os que não tinham quem se ocupasse deles), e outros, reunindo num mesmo lugar a multidão dos que em toda a cidade estavam esgotados
pela fome, repartiam pão para todos, de forma que o fato correu de boca em boca e todos os homens glorificavam o Deus dos cristãos, e convencidos pelas próprias obras, confessavam que estes eram os únicos verdadeiramente piedosos e temerosos a Deus.

15. Depois de cumprido isto como foi dito, Deus, o maior e celestial defensor dos cristãos, depois de ter mostrado pelos meios mencionados sua ira e seu desagrado contra todos os homens, novamente nos devolveu, em resposta aos excessos que eles haviam mostrado contra nós, o raio propício e esplendoroso de sua providência para conosco. Como numa escuridão profunda, fez com que do modo mais maravilhoso nos iluminasse a luz da paz, que dele procede, e a todos deixou manifesto que Deus mesmo foi e segue sendo o supervisor de nossos interesses, o que açoita seu povo e que, valendo-se das circunstâncias segundo a ocasião, converte-o novamente, e por fim, o que depois de uma boa lição se mostra propício e piedoso para os que n'Ele esperam.

 

IX

[Da morte catastrófica dos tiranos e palavras que pronunciaram antes de

morrer]

  1. 1.            Assim pois, Constantino, que, como já dissemos anteriormente, é imperador filho de imperador e varão piedoso, filho de um pai piedoso e prudentíssimo em tudo, foi levantado contra os ímpios tiranos[616] pelo Imperador supremo, o Deus do universo e Salvador. E quando determinou-se a lutar segundo a lei da guerra, combatendo como aliado dele, Deus da maneira mais extra­ordinária, Maxêncio caiu em Roma ao impacto de Constantino, enquanto o outro, sobrevivendo muito pouco tempo no Oriente, sucumbiu nas mãos de Licínio, que então ainda não estava transtornado.
  2. 2.     Constantino foi o primeiro dos dois - primeiro também em honra e digni­dade imperiais - que mostrou moderação com os oprimidos pelos tiranos em Roma. Depois de invocar como aliado em suas orações ao Deus do céu e a seu Verbo, e ainda ao próprio Salvador de todos, Jesus Cristo, avançou com todo seu exército, tentando alcançar para os romanos sua liberdade ancestral.
  3. 3.            Maxêncio, sabemos, confiava mais nos artifícios da magia do que na bene­volência dos súditos, e na verdade não se atrevia a dar um passo fora das portas da cidade, apesar de que, com a multidão de hoplitas[617] e com as inumeráveis companhias de legionários, cobria todo lugar, toda região e toda cidade, todas as que tinha escravizadas, em torno de Roma e em toda a Itália. O imperador, aferrado à aliança de Deus, ataca o primeiro, o segundo e o terceiro exército do tirano, e depois de vencê-los a todos com facilidade, avança o mais que pode pela Itália até muito perto de Roma.
  4. 4.     Logo, para que não se visse forçado a lutar contra os romanos por causa do tirano, Deus mesmo arrastou o tirano, como em cadeias, o mais longe das portas[618]. E o que já antigamente estava escrito nos sagrados livros contra os ímpios, incrível para a maioria como se se tratasse de contos de fábula, mas bem digno de fé por sua própria evidência, ao menos para os fiéis, para dizer pouco, fez-se crível para todos quantos, fiéis e infiéis, viram o prodígio com seus próprios olhos.
  5. 5.      Da mesma forma que, nos tempos de Moisés e da antiga piedosa nação dos hebreus, precipitou no mar os carros do faraó e seu exército, a flor de seus cavaleiros e capitães; o mar Vermelho os tragou, o mar os cobriu[619], assim também Maxêncio e os hoplitas e lanceiros de sua escolta afundaram na profundeza como uma pedra quando, dando as costas ao exército que vinha da parte de Deus com Constantino, atravessava o rio que lhe cortava o caminho e que ele mesmo havia unido e bem pontoneado com barcas, construindo assim uma máquina de destruição contra si mesmo[620].
  6. 6.             Dele se poderia dizer: cavou um fosso e tirou-lhe a terra; e cairá na vala que fez. Seu trabalho se voltará contra sua cabeça, e sua injustiça recairá sobre sua moleira[621].
  7. 7.      Assim pois, desfeita a ponte estendida sobre o rio, a passagem afunda e as barcas se precipitam de um golpe no abismo com todos seus homens; e ele mesmo em primeiro, o homem mais ímpio, e logo os escudeiros que o rodeavam afundaram como chumbo nas águas impetuosas[622], como já predisse o oráculo divino;
  8. 8.             de forma que, se não com palavras, como é natural, mas pelo menos com as obras, os que com a graça de Deus haviam se alçado à vitória, poderiam junto com os seguidores do grande servo Moisés[623] entoar o mesmo hino que contra o ímpio tirano de então e dizer: Cantemos ao Senhor, porque gloriosamente cobriu-se de glória. Cavalo e cavaleiro lançou ao mar. Minha ajuda e minha proteção, o Senhor; se fez meu salvador[624]; e Quem como tu entre os deuses, Senhor? Quem como tu, glorificado nos santos, admirável na glória, operador de maravilhas![625]

9.   Estas e muitas outras coisas parecidas com estas cantou Constantino com suas obras ao Deus supremo, causa de sua vitória, e entrou em triunfo em Roma, enquanto todos em massa, com suas crianças e suas mulheres, os senadores e altos dignitários, e todo o povo romano, recebiam-no com os olhos brilhantes, de todo coração, como a um libertador, salvador e benfeitor, em meio a vivas e a uma alegria insaciável.

  1. 10.     Mas ele, que possuía a piedade para com Deus como algo inato, sem per­turbar-se o mínimo com as aclamações nem envaidecer-se com os louvores, muito consciente de que a ajuda provinha de Deus, ordena imediatamente que na mão de sua própria estátua se coloque o troféu da paixão salvadora, e ao ver que lha erigiam no lugar mais público de Roma sustentando em sua mão direita o signo salvador, ordena-lhes que gravem esta inscrição em língua latina com suas próprias palavras:
  2. 11.     "Com este símbolo salvador, que é a verdadeira prova do valor, salvei e livrei vossa cidade do jugo do tirano; mais ainda, livrei-a e a restituí ao senado e ao povo romanos em seu antigo renome e esplendor."
  3. 12.     E depois disto, o próprio Constantino, e com ele Licínio - que então ainda não havia voltado seu pensamento para a loucura em que viria a dar mais tarde -, depois de aplacar a Deus, causa para eles de todos os bens, ambos juntos, por acordo e decisão comum, redigem uma lei perfeitíssima no mais pleno sentido em favor dos cristãos, e enviam uma relação dos portentos que Deus lhes havia feito - a vitória contra o tirano - e a própria lei a Maximino, que ainda imperava sobre os povos do Oriente e lhes fingia amizade.
  4. 13.     Mas ele, tirano como era, afligiu-se muito ao saber destas coisas, e logo, não querendo aparentar que cedia ante os outros nem tampouco que suprimia o ordenado, por temor aos que o haviam ordenado, vê-se na necessidade de escrever em favor dos cristãos aos governadores seus súditos, como se o fizesse por seu próprio e absoluto poder, esta primeira carta em que falsamente finge sobre si coisas que jamais havia realizado.

 

IX-a

[Cópia da tradução da carta do tirano]

  1. 1.            "Jovio Maximino Augusto, a Sabino: Estou persuadido de que, tanto para tua firmeza quanto para todos os homens, é evidente que nossos senhores e pais, Diocleciano e Maximiano, quando se deram conta de que quase todos os homens, abandonando o culto dos deuses, haviam se misturado com a raça dos cristãos, agiram corretamente ao ordenar que todos os que haviam deserdado do culto de seus próprios deuses imortais fossem novamente chamados ao culto dos deuses mediante correção e castigo exemplar.
  2. 2.            Mas quando eu cheguei pela primeira vez ao Oriente sob bons auspícios e me inteirei de que em alguns lugares os juízes haviam desterrado pela causa acima assinalada numerosíssimas pessoas que podiam ser úteis ao Estado, dei ordens a cada um dos juízes para que daí em diante nenhum deles se comportasse duramente com os habitantes das províncias, mas que, com carinho e exortações, tentassem chamá-los novamente ao culto dos deuses.
  3. 3.             Em conseqüência, por então, enquanto os juízes, conforme minhas ordens, guardavam o que estava ordenado, nas partes do Oriente ninguém era dester­rado nem ultrajado; ao contrário, ocorria mais que, por nada de grave se fazer contra eles, retornavam ao culto dos deuses.
  4. 4.      E logo, quando no ano passado entrei felizmente em Nicomedia e lá residi, apresentaram-se a mim cidadãos da mesma cidade com as estátuas de seus deuses pedindo-me encarecidamente que de nenhuma maneira permitisse que semelhante raça habitasse em sua pátria.
  5. 5.             Mesmo assim, quando fui informado de que numerosíssimos homens da mesma religião habitavam aquelas regiões, dei-lhes como resposta que lhes agradecia prazerosamente sua petição, mas que advertia que este pedido não provinha de todos. Por conseguinte, se havia alguns que perseveravam na mesma superstição, que cada um decidisse segundo sua preferência pes­soal, e se quisessem, que reconhecessem o culto dos deuses.
  6. 6.             Mas, aos habitantes da própria Nicomedia e às demais cidades que tão solicitamente me tinham feito também idêntica petição, ou seja, que nenhum cristão habitasse em suas cidades, tive que responder-lhes forçosamente em termos amistosos, já que assim fizeram mesmo os antigos imperadores, e devido aos próprios deuses - pelos quais se mantém todos os homens e a própria administração do Estado - que eu confirmava essa importante petição que apresentavam em favor do culto de sua divindade.
  7. 7.             Por conseguinte, ainda que anteriormente tenhamos escrito a tua devoção e que te haja sido igualmente ordenado em instruções não comportar-te dura­mente com os provincianos que se empenhavam em guardar semelhante costume, mas tratá-los com paciência e moderação, mas, para que não tenham que agüentar insultos nem violências pelas mãos dos beneficiários[626] ou de quaisquer outros, julguei oportuno sugerir a tua gravidade com esta carta que, valendo-te de agrados e exortações, faças com que nossas províncias reconheçam o culto aos deuses.
    1. 8.             Daí que, se alguém por sua vontade admitir que se deve reconhecer o culto dos deuses, a estes convém receber. Mas se alguns desejam seguir seu próprio culto, poderias ir deixando-os em sua liberdade.
    2. 9.      Por esta razão, tua devoção deve guardar escrupulosamente o que te foi confia­do, e que a ninguém se dê a possibilidade de excitar nossos provincianos com injúrias e violências, pois, como acima está escrito, mais convém atrair nova­mente nossos provincianos ao culto dos deuses com exortações e agrados. E para que este nosso mandato chegue ao conhecimento de todos nossos provin­cianos, deverás tornar público o mandato mediante uma ordem que tu proporás."
    3. 10.     Como ele havia tomado estas disposições forçado pela necessidade e não por sua própria convicção, ninguém o tomou por verdadeiro e digno de fé, devido a seu pensar inconstante e mentiroso, já anteriormente manifestado numa concessão semelhante.
    4. 11.     Em conseqüência, nenhum dos nossos se atrevia a convocar uma reunião nem a apresentar-se em público, já que o edito não o autorizava; somente ordenava não nos insultar, mas não animava a que se fizessem reuniões, que se construíssem igrejas e que se praticasse qualquer ato dos costumeiros entre nós.
    5. 12.     E mesmo assim os defensores da paz e da piedade lhe haviam escrito que o permitisse, e eles o haviam concedido por meio de editos e leis a todos seus súditos. Na verdade aquele monstro de impiedade preferia não ceder neste terreno, até que, por fim, acossado pela justiça divina, muito a contragosto, viu-se forçado a fazê-lo.

 

X

[Da vitória dos imperadores amigos de Deus]

  1. 1.            Esta foi a causa que o obrigou. Maximino era incapaz de levar o peso do governo supremo que lhe haviam confiado sem merecê-lo; devido a sua falta de reflexão sensata e própria de um imperador, manejava os assuntos públicos com total imperícia e, sobretudo, erguia-se irrefletidamente em sua alma com orgulhosa jactância inclusive contra seus próprios colegas imperiais, que em tudo o superavam, tanto em linhagem quanto em educação, instrução, dignidade, inteligência e - o que é mais importante - em sábia prudência e em piedade para com o verdadeiro Deus. Começou com a ousadia de atrever-se e de proclamar-se a si mesmo publicamente o primeiro nas honras[627].
  2. 2.     Levando à loucura seu insano orgulho, quebrou todos os pactos que havia feito com Licínio e empreendeu uma guerra sem quartel. Logo, em pouco tempo, alvoroçando tudo e perturbando profundamente cada cidade, reuniu toda a força armada, uma multidão de incontáveis miríades, e partiu para a luta em ordem de batalha contra ele e com a alma exaltada pelas esperanças postas nos demônios, que ele acreditava serem deuses, e nas miríades de soldados armados.
  3. 3.            Mas, ao chegar às mãos, encontrou-se desprovido da proteção de Deus, por outorgar-se ao que então mandava[628] a vitória que procede do mesmo e único Deus de todas as coisas.

4.   Em primeiro lugar perde o corpo de hoplitas em que depositava sua con­fiança, enquanto os lanceiros de sua escolta pessoal o abandonam indefeso e privado de tudo, e passam para o vencedor. O desgraçado, despindo-se a toda pressa do ornato imperial, que de modo algum lhe cabia, desliza entre a multidão covardemente, como um canalha e sem ânimo viril. Depois foge, e escondendo-se com dificuldade das mãos de seus inimigos pelos campos e aldeias, vai vagando de uma parte a outra buscando sua salvação e mos­trando bem às claras, com os próprios fatos, a fidelidade e verdade dos divinos oráculos onde se diz:

  1. 5.             Não se salva o rei por seu numeroso exército nem o gigante será salvo pela abundância de sua força. Inútil é o cavalo para salvar-se, e ninguém se salvará por sua grande potência. Vede os olhos do Senhor postos sobre os que o temem, os que esperam em sua misericórdia, para arrancar suas almas da morte[629].
  2. 6.             Foi assim que o tirano chegou coberto de vergonha a seu próprio território, e ali, enfurecido, começou por fazer executar muitos sacerdotes e profetas dos deuses que ele antes admirava e cujos oráculos o haviam incitado a empreender a guerra, acusando-os de impostores, de charlatães, e sobretudo de haverem-se convertido em traidores de sua salvação. Logo[630] deu glória ao Deus dos cristãos, e depois de haver disposto uma lei perfeitíssima e completíssima em favor da liberdade dos mesmos, acabou imediatamente sua vida com uma morte penosa e sem que lhe fosse dado um prazo de tempo. A lei que ele havia enviado era do seguinte teor:

 

Cópia da tradução da ordem do tirano em favor dos cristãos, traduzida da língua latina à grega.

7.   "O imperador César Caio Valério Maximino Germânico Sarmático Augusto Pio Félix Invicto: Que nós velamos continuamente e de todas as maneiras pelo proveito de nossos provincianos e que nossa vontade é proporcionar-lhes o que mais faça prosperar as vantagens de todos e o que seja de proveito e utilidade comuns, assim como o que se presta à utilidade pública e resulta
agradável ao parecer de cada um, cremos que ninguém o ignora, antes, cre­mos que cada um se atém aos próprios fatos e é consciente de sua evidência.

8.   Assim pois, quando antes ficou patente a nosso conhecimento que, sob o pretexto de que os divinos Diocleciano e Maximiano, nossos pais, tinham mandado abolir as assembléias dos cristãos, os officiales[631] haviam causado muitos prejuízos e espoliações, e que em seguida isto havia se estendido como dano a nossos provincianos (por cujo cuidado nos estamos debatendo),
ficando destruídas as propriedades de particulares, no ano passado dirigimos cartas aos governadores de cada província e legislamos o seguinte: que se alguém quiser seguir semelhante costume ou a própria observância da religião, que não tivesse impedimento a seu propósito e que ninguém lhe pusesse estorvos nem o proibisse, e que todos tivessem facilidade para fazer sem temor nem suspeita o que a cada um agradasse.

  1. 9.      Somente que agora não se pôde mais ocultar-nos que alguns juízes vinham descuidando de nossos comandos, expunham nossos homens à dúvida sobre as ordens e faziam com que se aproximassem com maior vacilação às pró­prias práticas religiosas que eram de seu agrado.
  2. 10.      Por conseguinte, para eliminar logo toda suspeita e ambigüidade causadoras de temor, determinamos que se promulgue esta ordem, com o fim de que a todos seja manifesto que, por este nosso presente, àqueles que quiserem tomar parte em semelhante seita ou religião é lícito aproximar-se, da maneira que cada um queira, ou como mais goste, a aquela religião que tenha escolhido praticar habitualmente. E também fica-lhes permitido construir suas próprias igrejas.
  3. 11.      Mas, para que seja maior o nosso presente, julgamos digno legislar também o seguinte: que se algumas casas e campos, anteriormente propriedade por direito dos cristãos, tiverem vindo a cair em posse legal do fisco por ordem dos nossos, ou se alguma cidade deles tiver se apropriado, seja por leilão ou porque foi obsequiado a alguém, tudo isto ordenamos que seja restituído ao antigo direito de propriedade dos cristãos, com o fim de que, inclusive nisto, todos percebam nossa piedade e nossa providência."
  4. 12.      Estas são as palavras do tirano, que chegaram com quase um ano de atraso sobre os editos que ele mesmo havia feito afixar em esteias contra os cristãos. E aos que até pouco antes sucumbiam ante seus próprios olhos a ferro e fogo e como pasto das feras e aves de rapina, e sofriam todo tipo de castigo, de suplício e de morte do modo mais miserável, como se se tratasse de ateus e ímpios, a estes o mesmo declarava agora observantes da religião e lhes permitia construir igrejas. E até o tirano em pessoa confessa que têm parte em certos direitos!
    1. 13.     E quando havia realizado tais confissões, padecendo sem dúvida menos do que merecia padecer, como se por causa delas tivesse alcançado certo favor, ferido repentinamente pelo flagelo de Deus[632], sucumbe na segunda refrega da guerra.

14. Mas não teve a morte que acontece aos generais supremos da guerra que, batendo-se varonilmente repetidas vezes pela virtude e por seus amigos, sofreram com valentia um fim glorioso na batalha; este, bem ao contrário, como ímpio e hostil a Deus, recebeu o castigo merecido quando se achava em casa e andava se ocultando enquanto seu exército seguia ainda na planície combatendo por ele. Ferido repentinamente em todo seu corpo pelo flagelo de Deus, caiu de bruços como empurrado por atrozes sofrimentos e vivíssimas dores. Devorado pela fome e com suas carnes consumidas por um fogo invisível e de origem divina, toda a aparência de sua antiga forma desapareceu como que aniquilada e ficou unicamente nos puros ossos, como um espectro há muito tempo reduzido a esqueleto; assim que os que o rodeavam não podiam senão pensar que o corpo se lhe havia convertido em sepulcro da alma, enterrada já num cadáver em completa decomposição. 15. Mas ao abrasar-lhe muito mais terrivelmente o fogo desde o fundo da medula, os olhos lhe saltaram, e caindo de suas órbitas deixaram-no cego. Ele, ainda respirando, apesar disto, confessava o Senhor e chamava a morte. E depois de confessar que padecia isto com toda justiça por causa de seu excesso demencial contra Cristo, entregou sua alma.

 

XI

[Da destruição final dos inimigos da religião]

  1. 1.            Morto desta maneira Maximino, único sobrevivente dos inimigos da religião e que manifestou ser o pior de todos, as igrejas surgiam, pela graça de Deus Todo-poderoso, reconstruídas desde os fundamentos, e a doutrina de Cristo, rutilante para a glória do Deus do universo, alcançava uma liberdade confiante, maior do que a de antes, enquanto os ímpios inimigos da religião se cumulavam de vergonha e desonra extremas.
  2. 2.            Efetivamente, o próprio Maximino foi o primeiro a quem os imperadores proclamaram inimigo comum de todos, e por meio de editos públicos, para conhecimento geral, foi denunciado como tirano ímpio, abominável e inimi­go de Deus. Das pinturas que em cada cidade foram dedicadas a sua honra e de seus filhos, umas foram lançadas do alto contra o solo e desfizeram-se em pedaços; outras tiveram seus rostos enegrecidos com cores sombrias e ficaram inservíveis. Assim também as estátuas, todas as que foram erigidas em sua honra: também foram derrubadas e feitas em pedaços, ficando expos­tas aos riso e à burla dos que queriam insultá-las e enfurecer-se com elas.
  3. 3.            E logo também os restantes inimigos da religião foram sendo despojados de todas as honras, e inclusive matavam-se todos os partidários de Maximino, especialmente os que, tendo sido honrados por ele com as honras do governo, para adulá-lo haviam-se atirado com violência contra nossa doutrina.
  4. 4.     Assim era Peucetio, para todos o mais honrado por ele, o mais respeitado e de maior confiança entre seus companheiros, a quem ele havia nomeado cônsul duas e três vezes, e prefeito de todas as contas. Assim também Culciano, que havia ascendido por todos os graus do governo e que também se gloriava de inúmeras matanças de cristãos no Egito[633]. E além destes havia muitos outros, por meio dos quais se havia firmado e aumentado a tirania de Maximino.
  5. 5.             Deve-se saber que também Teotecno era procurado pela justiça, que não esquecia o que ele havia levado a cabo contra os cristãos. Efetivamente, porque havia erigido um ídolo em Antioquia pensava que seus dias seriam felizes, e realmente até Maximino o havia considerado digno de um cargo de governo.
  6. 6.             Mas quando Licínio entrou na cidade de Antioquia e empreendeu a busca dos charlatães, fez atormentar profetas e sacerdotes do recém-erigido ídolo, tratando de averiguar por que razão haviam fingido a fraude. Como apertados pelos tormentos não lhes era possível seguir ocultando-o, declararam que todo o mistério era uma fraude urdida pelo engenho de Teotecno. Então impôs a todos o castigo que haviam merecido e entregou à morte primeiro o próprio Teotecno, e logo também seus cúmplices no engodo, depois de numerosos suplícios.
  7. 7.      A todos estes vieram juntar-se inclusive os filhos de Maximino, aos quais já tinha feito sócios da dignidade imperial e da dedicatória em retratos e em pinturas. E os que anteriormente se jactavam de parentesco com o tirano e estavam prestes a subjugar todos os homens, sofreram as mesmas penas que os supracitados, junto com a desonra extrema, já que não haviam aceitado a lição nem conheciam nem compreendiam a exortação que nas Sagradas Escrituras vai repetindo:
  8. 8.             Não confieis em príncipes nem nos filhos dos homens, em que não há salvação. Sai-lhes o espírito, e eles tornam ao pó. Nesse mesmo dia perecem todos os seus desígnios.

(Em todas as coisas se dêem graças a Deus Todo-poderoso e rei do universo e também mui numerosas ao Salvador e Redentor de nossas almas, Jesus Cristo, por meio do qual estamos continuamente suplicando que nos con­serve segura e firme a paz, ao abrigo tanto das perturbações de fora como das da mente.)

[Assim varridos os ímpios, Constantino e Licínio guardaram para si sós a parte correspondente do Império, segura e indiscutível. Estes, depois de eliminar do mundo antes de mais nada a inimizade contra Deus, conscientes dos bens que Deus lhes havia outorgado, demonstraram seu amor à virtude, seu amor a Deus, sua piedade e gratidão para com a divindade por meio de sua legislação em favor dos cristãos.]

 

 

 

 

 

 

 

 

LlVRO X

 

I

[Da paz que Deus nos outorgou]

  1. 1.            Em todas as coisas se dêem graças a Deus Todo-poderoso e rei do universo e também mui numerosas ao Salvador e Redentor de nossas almas, Jesus Cristo, por meio do qual estamos continuamente suplicando que nos con­serve segura e firme a paz, ao abrigo tanto das perturbações de fora como das da mente.
  2. 2.            E ao acrescentar aqui este livro décimo da História Eclesiástica aos que já seguiram adiante, junto com as súplicas, vamos dedicá-lo a ti, Paulino, alta­mente sacro para mim, invocando-te como selo que sanciona a obra toda.
  3. 3.            É natural que, sendo um número perfeito, insiramos aqui o discurso perfeito e panegírico da restauração das igrejas, obedecendo ao Espírito divino, que exorta da seguinte maneira: Cantai ao Senhor um cântico novo, porque fez maravilhas. Salvou-o sua destra e seu santo braço. O Senhor deu a conhecer sua salvação; diante das nações revelou sua justiça[634].
  4. 4.            E, em verdade, respondendo ao oráculo que o ordenou, cantemos agora o cântico novo por meio deste livro, porque, efetivamente, depois daqueles espetáculos e relatos sombrios e espantosos, fomos agora considerados dignos de contemplar tais maravilhas e de celebrar grandes solenidades, como muitos de nossos antepassados, realmente justos e mártires de Deus, desejaram ver sobre a terra, e não viram; ouvir, e não ouviram[635].
  5. 5.            Mas eles, apressando-se com toda rapidez, alcançaram bens muito melhores, arrebatados até os próprios céus e ao paraíso das divinas delícias. Nós, por outro lado, ainda que confessando que os bens presentes são maiores do que merecemos, estamos demasiado estupefatos pela graça e magnificência de seu autor, e o admiramos com toda a força da alma, como é justo, venerando e atestando a verdade das predições da Escritura, na qual é dito:
    1. 6.             Vinde e vede as obras do Senhor, os prodígios que fez sobre a terra eliminando guerras até os confins da terra. Quebrará o arco e romperá a arma, e queimará o escudo no fogo[636]. Regozijando-nos nestas maravilhas, claramente realizadas para nosso bem, continuemos nosso relato.
    2. 7.             Havia desaparecido, da maneira que dissemos, toda a raça dos odiadores de Deus e repentinamente havia-se apagado da vista dos homens, tanto que uma vez mais tinha cumprimento a palavra divina que diz: Vi um ímpio prepotente a expandir-se como o cedro do Líbano. Passei, e eis que desaparecera; procurei-o, e já não foi encontrado[637].

8. Mas daí em diante, um dia esplendoroso e radiante, sem que nuvem alguma lhe fizesse sombra, ia iluminando com seus raios de luz celestial as igrejas de Cristo por todo o universo, e nem sequer aos de fora de nossa confraria nenhuma inveja impedia de participar, se não dos mesmos bens, pelo menos da irradiação e comunicação dos que nos foram outorgados por parte de Deus.

 

II

[Da restauração das igrejas]

  1. 1.             Assim pois, todos os homens viram-se livres da opressão dos tiranos, e uma vez afastados dos primeiros males, uns de uma maneira e outros de outra, iam confessando como único Deus verdadeiro ao que havia combatido em defesa dos homens piedosos. Mas sobretudo nós, os que havíamos posto nossas esperanças no Cristo de Deus, transbordávamos de um prazer indizível, e para todos florescia uma alegria divina em todos os lugares que pouco antes se achavam em ruínas pela impiedade dos tiranos, como se os víssemos reviver depois de uma longa e mortífera devastação. E os templos surgiam novamente desde os fundamentos até uma altura imprevista, e recebiam uma beleza muito superior à dos que antes tinham sido destruídos.
  2. 2.      Mas há ainda mais: os supremos imperadores, com suas contínuas legislações em favor dos cristãos, vinham a confirmar, ampliando-as e aumentando-as, as mercês da munificência de Deus. Também aos bispos repetiam-se cartas pessoais do imperador, honras e doações em dinheiro. Não será fora de lugar inserir a seu devido tempo no presente livro, como numa esteia sagrada, seus textos traduzidos do latim para o grego, com o fim de que se conservem na memória de toda nossa posteridade.

 

III

[Das dedicações em todo lugar]

  1. 1.            Além disto, oferecia-se o espetáculo tão desejado e esperado por todos nós: festas de dedicação em cada cidade, consagrações dos oratórios recém-construídos, concentrações de bispos para o mesmo, afluência de gente de terras longínquas. Disposições amistosas dos povos entre si e reunião dos membros do Corpo de Cristo[638] em convergência para uma única harmonia.
  2. 2.            Quer dizer, conforme a predição profética que misteriosamente indicava de antemão o porvir, juntava-se osso com osso, ligamento com ligamento, e ocorria assim, sem engano, tudo o que a palavra oracular anunciava mediante enigmas[639].
  3. 3.            Através de todos os membros corria um único poder do Espírito divino, e uma só era a alma de todos[640], e uma mesma a paixão pela fé. E um era o hino de proclamação de Deus que brotava de todos. Sim, também havia cerimônias perfeitas dos dirigentes, funções litúrgicas dos sacerdotes e ritos da Igreja dignos de Deus: aqui com salmodias e demais recitações dos textos que nos foram transmitidos da parte de Deus, e ali realizando serviços divinos e místicos. E também havia os símbolos inefáveis da paixão salvadora.
  4. 4.     De uma vez, gente de todas as idades, rapazes e moças[641], com toda a força de seu pensamento e com a mente e a alma em gozo, honravam a Deus, autor de todos os bens, com orações e ação de graças.

E todos os dirigentes presentes pronunciavam discursos panegíricos, cada um segundo suas faculdades, entusiasmando a assembléia.

 

IV

[Panegírico ante o esplendor de nossos assuntos]

1.   E saiu ao meio um homem, um dos moderadamente dotados, que tinha composto um discurso[642]. Numa igreja abarrotada, e estando presentes muitos pastores que escutavam em silêncio e ordem, pronunciou o seguinte discurso, dirigindo-se pessoalmente a um só bispo[643], amigo de Deus e o melhor de todos, por cuja solicitude e zelo havia-se erigido em Tiro o mais notável
templo da Fenícia e arredores.

 

Panegírico sobre a edificação das igrejas, dirigido a Paulino, bispo de Tiro.

  1. 2.     "Amigos de Deus e sacerdotes revestidos com a santa túnica talar, com a celestial coroa da glória, com o crisma divino e com a vestimenta sacerdotal do Espírito Santo. E tu, jovem orgulho do santo templo de Deus, que, ainda que honrado por Deus com uma sabedoria de ancião, tens demonstrado, mesmo assim, magníficas obras e ações próprias de uma virtude jovem e em pleno vigor; tu, a quem o próprio Deus, que abarca todo o mundo, outor­gou como privilégio especial edificar sua casa sobre a terra e restaurá-la para Cristo, seu Verbo unigênito e primogênito, e para sua santa e divina esposa.
  2. 3.     Um queria chamar-te o novo Beseleel[644], arquiteto de um tabernáculo divino[645]; ou então Salomão, rei de uma Jerusalém nova e muito melhor, ou então, até mesmo novo Zorobabel que circunda o templo de Deus com uma glória muito melhor do que a primeira.
  3. 4.            Mas também vós, rebentos do sagrado rebanho de Cristo, lugar de boas doutrinas, escola de temperança e auditório de piedade, venerável e amado de Deus.
  4. 5.            Antes, quando conhecíamos os extraordinários milagres e os admiráveis benefícios do Senhor em favor dos homens apenas de ouvir, escutando as leituras sagradas, assim educados, era-nos possível dirigir hinos e cânticos ao Senhor e dizer: Oh Deus, com nossos ouvidos ouvimos! Nossos pais nos anunciaram a obra que tu realizaste em seus dias, nos dias antigos[646].
  5. 6.            Mas agora que já não conhecemos de ouvido nem por rumor de palavras o longo braço[647] e a destra celestial de nosso Deus, todo bondade e universal, mas, por assim dizer, nas obras e com nossos próprios olhos comprovamos que são fiéis e verdadeiras as maravilhas antigamente confiadas à memória, podemos entoar um segundo hino de vitória e alçar claramente nossas vozes dizendo: Como tínhamos ouvido dizer, assim o vimos na cidade do Senhor dos exércitos, na cidade de nosso Deus[648].
  6. 7.     Mas, em que cidade senão nesta, recém-fundada e edificada por Deus? Esta, que é Igreja do Deus vivo, coluna e sólido baluarte da verdade[649], acerca da qual outro oráculo divino já anunciava esta boa nova: Gloriosas coisas se têm dito de ti, cidade de Deus[650]. Posto que é nela onde o Deus santíssimo nos congregou pela graça de seu Unigênito, cada um dos convidados entoe hinos, e ainda a gritos diga: Alegrei-me quando me disseram: vamos à casa do Senhor[651]. E também: Senhor, eu amo a habitação de tua casa e o lugar em que tua glória acampa[652].

8.   E não somente um a um, mas também todos de uma só vez: com um só espírito e uma só alma, honremo-lo bendizendo-o assim, Grande é o Senhor e digníssimo de louvor na cidade de nosso Deus, em seu santo monte![653]Porque grande é, na verdade, grande é sua casa, alta e espaçosa, e fresca e formosa mais do que os filhos dos homens[654]. Grande é o Senhor, o único
que faz maravilhas[655]; grande o que faz grandes obras e insondáveis, gloriosas, descomunais, inumeráveis[656]; grande o que muda as estações e os tempos, o que depõe os reis e os estabelece[657], Ele que levanta da terra o pobre e alça do esterco o indigente[658]; derrubou poderosos de seus tronos e levantou da terra os humildes; encheu de bens os famintos[659], e quebrou os braços dos soberbos[660],

  1. 9.      confirmada assim, como digna de fé, a memória dos antigos relatos, e não somente para os fiéis, mas também para os infiéis, ele, o taumaturgo, executor de grandes obras, dono do universo, construtor de todo o mundo, todo-poderoso, bondade suprema, o um e único Deus! Cantemos a ele um cântico novo[661], respondendo interiormente ao que é único a fazer maravilhas, porque sua misericórdia é eterna; ao que feriu grandes reis e matou reis poderosos, porque sua misericórdia é eterna, porque em nossa humilhação lembrou-se de nós e nos livrou de nossos inimigos.
  2. 10.  Tomara nunca cessemos de aclamar com estes termos o Pai do universo! E quanto ao que é causa segunda de nossos bens, o introdutor do conhecimento de Deus, o mestre da verdadeira piedade, o destruidor dos ímpios e restaurador da vida, Jesus, salvador dos que estávamos desesperados, tomemos seu nome em nossas bocas e honremo-lo!
  3. 11.  Porque somente Ele, como Filho que é absolutamente único e santíssimo de um Pai santíssimo, por vontade do amor paterno aos homens, vestiu prazerosamente nossa natureza de homens, que jazíamos em profunda corrupção, e como médico excelentíssimo, por causa da salvação dos enfermos, "vê coisas terríveis e toca chagas repugnantes, e nas calamidades alheias colhe sofrimentos próprios", pois não somente nos salvou estando enfermos ou agoniados com terríveis chagas e feridas já putrefatas, mas inclusive aos que jazíamos entre os mortos Ele mesmo nos arrancou para si dos próprios abismos da morte, porque nenhum outro dos que estão no céu possui tanta força como para colocar-se ao serviço da salvação de tantos sem desprezo próprio.

12. Assim pois, somente Ele tocou nossa própria e gravíssima corrupção, somente Ele suportou nossos trabalhos, somente Ele tomou para si as penas de nossas iniqüidades[662]. E não nos levantou quando estávamos meio mortos, mas já completamente corrompidos e hediondos em tumbas e sepulcros. Assim antes como agora, com sua amorosa solicitude pelos homens, contra a esperança de todo o mundo e, portanto, da nossa, segue salvando-nos e fazendo-nos partícipes da abundância de bens do Pai, Ele, o vivificador, o que trouxe a luz, nosso grande médico, rei e Senhor, o Cristo de Deus.

  1. 13.     Mas então, vendo todo o gênero humano afundado em noite escura e em profundas trevas, por serem pervertidos por funestos demônios e pela ação dos espíritos inimigos de Deus, apareceu uma vez por todas e desatou as muitas e firmes amarras de nossas iniqüidades como se derrete a cera com os raios de sua luz[663].

14. Mas agora, ante tamanha graça e tão grande benefício, explodiu, por assim dizer, a inveja do demônio, odiento do bem e amigo do mal, que mobilizou contra nós todas suas hostes mortíferas. Primeiro, como cão raivoso que quebra seus dentes contra as pedras que lhe lançam e descarrega sua fúria, dirigida aos que o rechaçam, contra uns projéteis sem alma, dirigiu sua loucura selvagem contra as pedras dos oratórios e contra os materiais inanimados das casas, para fazer das igrejas - assim pelo menos acreditava para si - um deserto; depois, deixou escapar seus terríveis assobios e gritos de serpente, com ameaças de ímpios tiranos, ou com editos blasfemos de iníquos governantes, e finalmente, vomitou a morte, que é sua, e envenenou com peçonhas deletérias e mortais as almas por ele aprisionadas, e esteve a ponto de fazê-las morrer com sacrifícios mortíferos a ídolos mortos e atiçou contra nós toda a fera de forma humana e as bestas selvagens de toda espécie.

15. Mas novamente o anjo do grande conselho, o grande general do exército de Deus[664], depois do suficiente treinamento que demonstraram os maiores soldados de seu reino com sua paciência e sua constância em todos os tormentos, de novo surgiu assim, de repente, e varreu adversários e inimigos e reduziu-os a nada, até que parecesse que jamais tiveram nome, e, por outro lado, fez seus amigos e familiares avançarem além da glória diante de tudo, não somente dos homens, mas também dos exércitos celestes, do sol, da lua e das estrelas, do céu inteiro e do mundo.

16. De tal maneira que - coisa que nunca havia acontecido - os mais altos imperadores[665], conscientes da honra que d'Ele obtiveram, cuspiram no rosto dos ídolos mortos, pisotearam as criminosas cerimônias dos demônios e zombavam do antigo engano transmitido pelos seus antecessores; e ainda, reconheciam que há um só Deus, único e ele mesmo, benfeitor comum de
todos e deles próprios, e confessavam a Cristo como Filho de Deus, rei supremo de tudo; em esteias proclamavam-no salvador e, para memória imorredoura, fizeram também gravar com caracteres imperiais no meio da cidade que impera sobre as outras[666] da terra suas felizes empresas e suas vitórias contra os ímpios, de maneira que Jesus Cristo, nossos salvador, é o único dos que existiram desde os séculos a quem os próprios hierarcas da terra reconheceram, não mais como um rei comum saído dentre os homens, mas como verdadeiro Filho do Deus do universo, como a Deus o adoram.

  1. 17.     E com razão! Pois, que rei alguma vez alcançou tal grau de virtude que com seu nome preenchesse o ouvido e a língua de todos os homens da terra? Que rei estabeleceu leis tão piedosas e tão prudentes e teve também força bastante para fazê-las chegar aos ouvidos de todos os homens, desde o confim do mundo até o limite da terra habitada?
  2. 18.     Quem aboliu os bárbaros e selvagens costumes de povos selvagens com suas leis suaves e de amorosa humanidade? E quem, tendo sido combatido por todos durante séculos inteiros, demonstrou um vigor sobre-humano, tanto que a cada dia florescia e rejuvenescia durante toda sua vida?

19. E quem fundou um povo do qual nunca em todos os séculos se ouvira falar, e não o ocultou em qualquer rincão da terra, mas estabeleceu-o por todo lugar sob o sol? Quem protegeu seus soldados com armas de piedade, de tal maneira que suas almas nos combates contra os adversários pareciam mais fortes do que o diamante?

20. E que rei é tão poderoso e dirige uma campanha depois de morto? Levanta troféus vitoriosos contra os inimigos, e preenche todo lugar, região e cidade, grega ou bárbara, com dedicações de suas régias moradas e de templos divinos, como esses belíssimos ornamentos e oferendas que vemos neste templo? Porque também estes próprios objetos são realmente veneráveis e grandes, dignos de admiração e estupor, como provas claras que são da realeza de nosso Salvador. Porque também agora Ele falou, e as coisas se fizeram; Ele o mandou, e foram criadas[667] (e, quem resistiria à autoridade do rei e chefe universal, do próprio Verbo de Deus?). Isto, para uma conside­ração e uma interpretação exatas, necessitaria espaço e discurso próprios.

21. Em realidade, a quantidade e a qualidade do zelo dos que trabalharam não é julgada tão importante por aquele que chamamos Deus e que está contemplando o templo vivo que sois vós e vela pela casa de pedras vivas[668]e bem montadas, e assentada com toda segurança sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, cuja pedra angular é Jesus Cristo[669], a quem rechaça­ram, não somente os construtores daquela antiga edificação que já não existe, mas também os da edificação de muitos homens subsistente até hoje, por serem maus arquitetos de más obras. Mas o Pai a provou, e tanto então como agora a estabeleceu como cabeça de ângulo desta nossa Igreja comum.

  1. 22.  Em conseqüência, se alguém pensa a respeito, quem poderia atrever-se a descrever este templo vivo do Deus vivo?[670], cujo material de construção sois vós mesmos? Refiro-me ao maior santuário e o mais digno de Deus por toda a verdade da palavra, cujo interior mais profundo é inacessível e invisível para o vulgo, porque realmente é santo, e santo dos santos. E quem será capaz mesmo de abaixar-se para olhar dentro do recinto sagrado, se não unicamente o grande pontífice de todos?, o único a quem é permitido esquadrinhar os mistérios de toda alma racional?
  2. 23.  Mas talvez também seja possível a outro ser o segundo, depois d'Ele, um apenas, único entre os iguais: o que foi estabelecido chefe do exército aqui presente, a quem o primeiro e grande pontífice em pessoa, depois de honrá-lo com o segundo lugar dos ministérios sagrados daqui, instituiu como pas­tor de vosso divino rebanho, e a quem coube pela sorte vosso povo por escolha e por juízo do Pai, que assim o constituía seu servidor e intérprete, novo Aarão e novo Melquisedeque feito semelhante ao filho de Deus, que permanece e que Deus conserva continuamente pelas orações conjuntas de todos nós[671].
  3. 24.  A este pois, e a ele somente, depois do primeiro e sumo pontífice, é permitido, se não no primeiro posto, mas ao menos no segundo, ver e inspecionar os mais recônditos aspectos de vossas almas. Por sua experiência de longos anos, conhece-vos a cada um com exatidão; e por sua diligência e cuidado vos tem a todos bem-dispostos na ordem e na doutrina da piedade, e mais do que todos os outros é capaz de explicar com razões que rivalizam com as obras tudo o que ele mesmo levou a cabo com ajuda do poder divino.

25. Pois bem, nosso primeiro e sumo pontífice diz: tudo o que vê o Pai fazer, o Filho também o faz[672]. E assim também este[673], como se com os puros olhos de sua mente contemplasse o primeiro mestre, quantas coisas o vê fazer também realiza, e valendo-se delas como exemplos e arquétipos, tenta modelar suas imagens com a maior semelhança que lhe é possível, nada
devendo àquele Beseleel a quem Deus mesmo havia preenchido com o espírito de sabedoria, de inteligência e de outros conhecimentos técnicos e científicos, chamando-o para ser artífice da construção do templo dos tipos celestes por meio de símbolos[674].

  1. 26.     De igual maneira este homem, levando impresso em sua alma o Cristo inteiro, o Verbo, a Sabedoria e a Luz, nos é possível dizer com que grandeza de sen­timentos, com que mão liberal e insaciável de previsão e com que emulação de todos vós - pois vos traria grande orgulho a magnanimidade de vossas contribuições, não ficando de modo algum atrás dele em seu próprio pro­pósito - construiu este magnífico templo do Altíssimo, semelhante por sua natureza ao modelo melhor, quanto pode o visível sê-lo do invisível[675]. E este lugar - que também merece ser mencionado como o primeiro de todos -, ainda que por obra dos inimigos se achasse sepultado sob montes de todo tipo de imundícies, ele não o desdenhou nem cedeu à maldade dos culpados, apesar de ser-lhe possível ir a outro lugar - havia milhares deles pela cidade - onde acharia facilidade para o trabalho e estaria longe de problemas.

27. Ele mesmo foi o primeiro que se animou à tarefa. Logo, infundindo força com seu entusiasmo a todo o povo e formando com todos como uma grande e única mão, travou este primeiro combate. Ele pensava que exatamente esta igreja que havia sido destruída pelos inimigos, que havia penado a primeira e havia sofrido as mesmas perseguições que nós e inclusive antes de nós, que como uma mãe havia sido privada de seus filhos, esta igreja sobretudo tinha que participar também no gozo do magnífico presente do Deus santíssimo.

28. Efetivamente, o grande pastor, depois de espantar as feras, os lobos e todo tipo de bestas cruéis e selvagens, e depois de quebrar os dentes dos leões, como dizem as divinas Escrituras[676], novamente julgou conveniente juntar no mesmo lugar seus filhos, e com perfeitíssimo direito levantou o aprisco de seu rebanho para envergonhar o inimigo e o rebelde[677], e para oferecer uma refutação da audácia dos ímpios em sua luta contra Deus.

  1. 29.  E agora aqueles homens odientos de Deus já não existem, porque tampouco existiam[678]. Depois de haver causado e de haver sofrido por sua vez perturbações por breve tempo, e depois de suportar um castigo irrepreensível em justiça, eles mesmos se arruinaram por completo e arruinaram seus amigos e suas famílias, tanto que as predições gravadas outrora em esteias são reconhecidas agora como verdadeiras ante os fatos. Por meio destes, a palavra divina afirma como verdadeiras as outras coisas, mas também o que declara acerca daqueles:
  2. 30.  "Os pecadores desembainharam uma espada; esticaram seu arco para abater o pobre e o indefeso, para degolar o reto de coração. Oxalá sua espada penetre em seus próprios corações e seus arcos se quebrem![679]; e novamente: Sua memória se perdeu com o eco, e seus nomes estão apagados para sempre e pelos séculos dos séculos, porque realmente, achando-se entre males gritaram, mas não havia quem os salvasse; gritaram ao Senhor, e não os escutou[680]. Mesmo assim, travaram-se-lhes os pés e caíram. Mas nós nos levantamos e nos endireitamos[681]. E ante os olhos de todos mostra-se verdadeiro o que se predizia com estas palavras: Senhor, em tua cidade reduzirás a nada sua imagem[682].
  3. 31.  Eles, que levantaram uma luta contra Deus parecida com a dos gigantes, tiveram um final igualmente catastrófico. Por outro lado, o fim daquela[683], deserta e rechaçada pelos homens, foi como se viu, o da paciência de Deus, segundo proclama a profecia de Isaías, que diz assim:
  4. 32.  "Exulta, deserto sedento! Que se alegre o deserto e floresça como lírio! E a terra árida florescerá e exultará. Fortalecei-vos, mãos lânguidas e joelhos desfalecidos! Consolai-vos, pusilânimes de coração, fortalecei-vos, não temais! Vede que nosso Deus responde com um juízo e julgará. Ele mesmo virá e vos julgará, porque - diz - brotou água no deserto, e uma torrente na terra sedenta, e a que estava sem água se converterá em lago, e na terra sedenta haverá um manancial de água[684].
  5. 33.  E estas coisas, previstas antigamente em palavras, estão referidas nos livros sagrados. Mas sua realidade já não nos foi transmitida de ouvido, mas de fatos. Esta, a deserta, a sem água, a viúva, a indefesa, aquela cujas portas haviam derrubado a machadadas como bosques de lenha, a que em con­senso destruíram com machados e achas e na qual, depois de haver destruído seus livros, tocaram fogo ao santuário de Deus, profanaram em terra o tabernáculo de seu nome; esta, da qual todos arrancavam quando passavam pelo caminho depois que derrubaram sua cerca, a que o javali devas­tara desde o bosque e a fera solitária destroçara, agora, pelo poder mila­groso de Cristo e quando Ele mesmo o quis, veio a ser como um lírio, pois também então era castigada por vontade d'Ele, como o faria um pai cuida­doso, porque o Senhor repreende a quem ama e açoita a quem recebe como filho.

34. Assim pois, uma vez corrigida na devida medida, outra vez foi-lhe orde­nado de cima que se alegrasse, e florescerá como lírio e exalará para todos os homens um bom odor divino, porque, diz, brotou água no deserto, a corrente da divina regeneração do banho salvador. E agora, a que há pouco era deserto converteu-se em. lago, e na terra sedenta borbotou um manan­cial de água viva, e as mãos, antes lânguidas, fortaleceram-se realmente. E prova grande e manifesta da força dessas mãos são estas obras. Mas inclusive os joelhos, noutro tempo estropeados e desfalecidos, recobrando sua habitual força para andar, marcham bem retos pelo caminho do conhe­cimento de Deus e apressam seu passo até o familiar rebanho do Pastor santíssimo.

  1. 35.     E ainda que alguns tivessem suas almas embotadas pelas ameaças dos tiranos, tampouco os deixa sem cura o Verbo salvador. Muito pelo contrário, também estes ele cura e os exorta ao consolo de Deus, dizendo:

36. "Consolai-vos, pusilânimes de coração; fortalecei-vos, não temais! A palavra que predizia que aquela que se havia convertido em deserto por causa de Deus haveria de gozar de todos estes bens, foi ouvida por este nosso novo e bom Zorobabel com o agudíssimo ouvido de sua mente, depois daquele amargo cativeiro e da abominação da desolação[685]. Não desdenhou as ruínas mortas. Em primeiríssimo lugar, com súplicas e orações, e com o unânime sentimento de todos vós, aplacou o Pai, e tomando como aliado e colaborador o único que pode reanimar os mortos, levantou a que estava caída - depois de purificá-la e curá-la previamente de seus males - e envolveu-a com uma veste, não com a antiga dos tempos remotos, mas com aquela sobre a qual lhe instruíam os divinos oráculos quando claramente dizem: E a glória desta nova casa será maior do que a da primeira[686].

37. E assim, todo o terreno que demarcou era muito maior[687]. Por fora fortificou o recinto com um muro em toda a volta, de maneira que fosse uma defesa segura para toda a obra.

38. Abriu um vestíbulo amplo e de grande altura, que se voltava aos próprios raios do sol nascente, e com isto proporcionou aos que estão longe, fora dos muros sagrados, o poder contemplar sem restrição o que há dentro, quase fazendo voltar-se a vista dos estranhos à fé para suas primeiras entradas, de modo que ninguém pudesse passar ao largo sem que antes a dor lhe penetrasse na alma pela recordação da desolação passada e pela admiração da extraordinária obra de agora. Talvez esperasse que alguém, afetado por isso, se deixasse arrastar, e por seu próprio olhar se dirigisse à entrada.

  1. 39.      Mas a quem entrou pelas portas não se permitiu de imediato pisar com pés impuros e sujos os lugares santos do interior, mas, separando o mais possível o intervalo entre o templo e as primeiras entradas, adornou todo o derredor com quatro pórticos oblíquos, cercando assim o lugar em forma mais ou menos quadrangular, com colunas que se alçam de todas as partes e cujos intervalos se fecham em toda a volta com barreiras de treliça de madeira, a uma altura conveniente. O centro do átrio foi deixado livre para que se visse o céu, oferecendo assim um ar puro e aberto aos raios do sol.
  2. 40.  E ali colocou os símbolos das purificações sagradas: frente à fachada do templo fez construir fontes que, com o abundante fluir de sua corrente, facilitam a purificação para os que avançam dentro dos recintos sagrados. E este é o primeiro lugar dos que entram, lugar que proporciona a todos ornamento e beleza, e aos que ainda necessitam as primeiras iniciações, uma estância adequada.
  3. 41.  Mas, superando inclusive o espetáculo de tudo isto, fez as entradas do templo ainda muito mais abertas, com numerosos vestíbulos interiores. Numa só face - novamente o que cai sob os raios do sol - colocou três portas, e delas quis que a do meio fosse, por muito, superior às outras duas em altura e largura, e adornou-as, antes de tudo, com placas de bronze, presas com ferros, e com variados desenhos em relevo, e sujeitou a esta, como a uma rainha, as outras duas na qualidade de escolta.
  4. 42.  De igual maneira dispôs também para os pórticos de um e de outro lado do templo o número dos vestíbulos; idealizou também, para ter mais luz de cima, diferentes aberturas sobre o edifício e as adornou rodeando-as com finos e multicoloridos trabalhos em madeira.

Quanto ao edifício basilical[688], consolidava-o com materiais mais ricos e abundantes, sem regatear gastos.

  1. 43.  Aqui me parece supérfluo andar descrevendo com palavras o comprimento e a largura do edifício, esta esplêndida formosura e sua grandeza, superiores a toda palavra, o aspecto brilhante das obras, assim como sua altura, que chega ao céu, e os preciosos cedros do Líbano colocados acima de tudo, dos quais nem o oráculo divino silencia a menção, pois diz: Revigoram-se as árvores do Senhor e os cedros do Líbano que ele plantou[689].
  2. 44.  Para que necessito eu agora andar compondo uma descrição exata da sapientíssima e arquitetônica disposição, assim como da soberba beleza de cada uma das partes, quando o testemunho da vista torna desnecessário o ensi­namento que chega aos ouvidos? Mas assim é que, depois de haver assim terminado o templo, adornou-o com tronos mui elevados para honrar os que presidem, e ainda com bancos dispostos em ordem para os comuns, segundo corresponde. E depois de tudo isto, pôs no meio o altar, como santo dos santos, e para que não fosse acessível à massa, cercou-o também com treliçados de madeira cuidadosamente adornados com finos trabalhos de arte até em cima, oferecendo assim um admirável espetáculo a quantos o vêem.
  3. 45.  Mas deve-se saber que tampouco descuidou do pavimento. Também este fez brilhar com todo tipo de adornos em pedra de mármore. E por último passou ao exterior do templo e construiu êxedras e edifícios muito grandes de um e de outro lado, habilmente ligados pela face ao edifício basilical, formando um todo e unidos com passadiços que vão ao edifício central. E todas estas construções levou-as a cabo nosso mui pacífico Salomão[690], o que edificou o templo do Senhor, para os que ainda estão necessi­tando a purificação e a ablução que se dão pela água e o Espírito Santo, de tal modo que já não é palavra, mas que foi feita realidade a profecia lida mais acima.
  4. 46.  Porque também agora ocorre em verdade que a glória desta nova casa será maior do que a da primeira.

Efetivamente, depois que seu Pastor e Senhor sofreu a morte por ela, uma vez por todas, e depois que na paixão transformou o corpo de imundície que por ela havia vestido em corpo brilhante e glorioso, e depois de livrar da corrupção a carne e levá-la à incorrupção, era necessário e conveniente que também esta Igreja colhesse de igual modo os frutos dos desígnios do Salvador. Posto que realmente recebeu d'Ele uma promessa de bens muito melhores que estes, deseja receber de maneira suficiente e pelos séculos vindouros a glória muito maior da regeneração na ressurreição de um corpo incorruptível em companhia do coro dos anjos de luz nos palácios de Deus, além dos céus e com o próprio Cristo Jesus, benfeitor e salvador universal.

47. Mesmo assim, enquanto isto, no tempo presente, a que antes se achava viúva e deserta, depois que pela graça de Deus está rodeada de flores, converteu-se realmente em um lírio, segundo diz a profecia, e tendo tomado novamente a veste nupcial e cingindo-se a coroa da divindade, por meio de Isaías aprende a dançar, enquanto com cantos de louvor apresenta os sacrifícios de ação de graças a seu rei e Deus.

48.  Ouçamo-la dizer: Alegre-se minha alma no Senhor, porque vestiu-me com uma veste de salvação e uma túnica de alegria. Cingiu-me uma diadema como a um esposo, e como a uma esposa enfeitou com jóias. E como terra que faz crescer suas flores, e como jardim que fará germinar suas-sementes, assim o Senhor fez germinar a justiça e o regozijo diante de todas as nações[691]. Ao som destas palavras, pois, ela dança.

49. Mas, em que termos lhe responde o Verbo celestial, o próprio Jesus Cristo? Ouve o Senhor dizer: Não temas porque te desonraram nem te inquietes porque te ultrajaram. Porque esquecerás tua vergonha perpétua e não te lembrarás mais do ultraje da viuvez. O Senhor não te chamou como mulher abandonada e diminuída nem como mulher odiada desde a juventude. Disse teu Deus: por breve tempo te abandonei, e em minha grande misericórdia terei misericórdia de ti. Num momento de indignação afastei meu rosto de ti, e numa misericórdia perpétua terei misericórdia de ti, disse o Senhor que te livrou[692].

50. Desperta, desperta, tu que bebes da mão do Senhor o vaso de sua ira. Porque o vaso da queda, o vaso de minha ira bebeste e o esgotaste, e não havia quem te consolasse de todos teus filhos que engendraste, e não havia quem te tomasse pela mão. Vede que tomei de tua mão o vaso da queda, o vaso de minha ira, e dele não mais beberás, e o porei nas mãos dos que te maltrataram, dos que te humilharam.

51. Desperta, desperta! Veste-te a força, veste-te tua glória. Sacode o pó e levanta-te. Senta-te. Desata as cadeias de teu pescoço[693]. Levanta teus olhos em torno, vê a todos teus filhos reunidos. Vede, juntaram-se e vieram a ti. Por minha vida, diz o Senhor, que te revestirás de todos eles como adorno e deles te cingirás como noiva. Porque teus desertos, e tuas ruínas e tuas terras assoladas agora serão apertadas para os que te habitam, e os que te devoravam serão lançados longe de ti.

  1. 52.  Porque te dirão ao ouvido teus filhos, os que tinhas perdidos: meu lugar é estreito, faça-me lugar para que possa habitar; e dirás em teu coração: quem me engendrou estes? Eu estava sem filhos e viúva, mas estes, quem os criou? Eu fiquei só e abandonada, de onde me vêm estes?[694]
  2. 53.  Isto profetizou Isaías. Isto se achava consignado desde longo tempo nos livros sagrados, acerca de nós, mas era necessário, de certa forma, que percebêssemos alguma vez nas obras a infalibilidade destas predições.
  3. 54.  Mas como o esposo, o Verbo, pronunciou estas palavras para sua própria esposa, a sagrada e santa Igreja, era razoável que o padrinho, aqui pre­sente, ajudado com as orações unânimes de todos vós e depois de oferecer vossas próprias mãos, despertasse esta, a deserta, a que jazia caída, a que não tinha esperança entre os homens. E pela vontade de Deus, rei universal, e pela manifestação do poder de Jesus Cristo, conseguiu levantá-la, e uma vez ressuscitada, preparou-a como lhe ensinava a descrição dos sagrados oráculos.
  4. 55.      Grandíssima maravilha esta e que excede toda admiração! Sobretudo para aqueles que fixam sua atenção somente na aparência do exterior. Mas ainda mais admiráveis que estas maravilhas são os arquétipos e seus protótipos inteligíveis, assim como seus divinos modelos; quero dizer a renovação do edifício divino e racional nas almas.
  5. 56.      Este edifício realizou-o a sua própria imagem o próprio Filho de Deus, e em tudo e por tudo o dotou de divina semelhança, de natureza imortal e de substância incorpórea, racional, livre de toda matéria terrena e por si mesma espiritual: depois de começar a constituí-la, uma vez por todas, no ser a partir do não ser, fez dela para si mesmo e para o Pai uma esposa santa e um templo sacratíssimo, o que bem claramente confessa e manifesta Ele mesmo quando diz: Habitarei neles e em meio deles passarei e serei seu Deus, e eles serão meu povo[695]; e a alma perfeita e purificada, assim criada desde o princípio, era tal que levava em si a imagem do Verbo celestial.
  6. 57.  Mas quando, por inveja e ciúmes do demônio, amigo do mal, converteu-se em sensual e amiga do mal por livre escolha dela mesma[696], ao retirar-se dela pouco a pouco a divindade e ficar como privada de um protetor, tornou-se presa fácil e vulnerável ao ataque dos que há longo tempo a queriam mal. Abatida pelas torres de assédio e os mecanismos dos adversários invisíveis e dos inimigos espirituais, derrubou-se em queda extraordinária, até não ficar de pé pedra sobre pedra de sua virtude, antes, toda ela jazia por terra, inteiramente morta e privada por completo de seus naturais pensamentos acerca de Deus.
  7. 58.  Em realidade, tendo caído esta, a mesma que havia sido feita à imagem de Deus, não a devastou esse javali que procede do bosque, visível para nós, mas certo demônio corruptor e selvagens feras espirituais que, depois de inflamá-la com paixões como com dardos acesos de sua própria maldade, puseram fogo ao santuário realmente divino, de Deus, e profanaram em terra o tabernáculo de seu nome, para logo, depois de enterrar a desgraçada sob montões de terra, privá-la de toda esperança de salvação.

59. Mas, quando já havia sofrido o merecido castigo de seus pecados, o que cuida dela, o Verbo salvador e emissor de luz divina, obedecendo ao amor do Pai, todo santidade para com os homens, novamente voltou a recebê-la.

  1. 60.     Então, tendo eleito em primeiro lugar as almas dos supremos imperadores[697], valendo-se deles, amantíssimos de Deus, limpou inteiramente a terra habitada de todos os indivíduos ímpios e funestos e até dos terríveis tiranos, odientos de Deus. Logo trouxe à luz do dia os homens bem conhecidos por Ele, que em outro tempo haviam-se consagrado com sua vida a Ele e andavam ocultando-se ao abrigo de sua proteção, como numa tempestade de males, e honrou-os mui dignamente com a magnificência do Pai. E logo, também por meio destes[698], purificou e limpou as almas pouco antes manchadas e cobertas de material de toda espécie e montes de terra, que eram as ordens ímpias, usando como enxadas e ancinhos os impressionantes ensinamentos de suas doutrinas[699].

61. E quando terminou a tarefa de deixar brilhante e radiante o solar de vossas mentes, as de todos, então o entregou adiante a este guia, sapientíssimo e mui amado de Deus. E ele, homem de grande discernimento e sensatez em tudo o mais, reconhecendo e discernindo bem a mente das almas que lhe couberam pela sorte, tendo-se posto a edificar, por assim dizer, desde o primeiro dia, esta é a hora que ainda não terminou, pois segue montando em todos vós o ouro brilhante, a prata acrisolada e pura, e até as pedras preciosas e de grande preço, tanto que com suas obras está cumprindo em vós a sagrada e mística profecia em que se diz:

  1. 62.     Vede que estou te preparando a pedra de carbúnculo, os fundamentos de safira, as ameias de jaspe e tuas portas de pedras de cristal e tua cerca de pedras escolhidas; e teus filhos serão ensinados de Deus, e tua prole terá grande paz. E serás edificado na justiça[700].

63. Ao edificar, efetivamente, na justiça, ele dividia as forças de todo o povo conforme o mérito: uns ele rodeava somente de uma cerca exterior amuralhando-os com uma fé sem erro (numeroso e grande é o povo incapaz de suportar uma construção mais forte!); outros, confiando-lhes as entradas da casa, mandava ficar às portas e guiar os que entravam, pois não sem razão
são considerados como os vestíbulos do templo; e outros apoiava nas primei­ras colunas do exterior que rodeiam o átrio em quadrilátero, fazendo-os avançar nos primeiros contatos com a letra dos quatro evangelhos. E outros ainda, vai juntando apertadamente a um e outro lado ao redor do edifício basilical, posto que ainda são catecúmenos, em estado de crescimento e de progresso, ainda que não muito separados nem muito longe da visão do mais interior, próprio dos fiéis.

  1. 64.      Tomando dentre estes últimos as almas puras, que como o ouro foram purifi­cadas no banho divino, também a algumas delas apoiava em colunas muito mais fortes que as do exterior, nas doutrinas íntimas e místicas da Escritura, enquanto vai iluminando as outras com aberturas que dão para a luz.
  2. 65.  E adorna o templo inteiro com o único e grandíssimo vestíbulo da glorificação do primo e único Deus, rei universal, e a cada lado do poder soberano do Pai apresenta os segundos raios de luz, Cristo e o Espírito Santo. Quanto ao resto, através do edifício inteiro, vai demonstrando com abundância e muita variedade a claridade e luminosidade da verdade em cada zona.

E depois de selecionar em todo lugar e de todas as partes as pedras vivas, sólidas e bem firmes das almas, com todas elas vai construindo a grande e régia casa, radiante e plena de luz, por fora e por dentro, pois não somente suas almas e suas mentes, mas também seus corpos, iluminam-se com o múltiplo e florido adorno da castidade e da sobriedade.

  1. 66.  Há ainda neste santuário tronos e inúmeros bancos e assentos: outras tantas almas sobre as quais pousam os dons do Espírito divino, como os que em outro tempo viram os sagrados apóstolos e seus acompanhantes, aos quais se manifestaram distribuídas línguas como de fogo que pousaram sobre cada um deles[701].
  2. 67.  Mas no principal de todos[702] assenta-se igualmente o próprio Cristo inteiro, enquanto que nos que vêm depois dele, em segundo lugar, somente participações do poder de Cristo e do Espírito Santo, em proporção com o lugar que a cada um compete. As almas de alguns inclusive podem ser bancos de anjos, dos que foram entregues a cada um como pedagogos e custódios.
  3. 68.  E o venerável, grande e único altar, qual poderia ser se não a absoluta pureza e santo dos santos da alma do sacerdote comum de todos? De pé, a sua direita, o grande pontífice do universo, Jesus mesmo, o unigênito de Deus, com olhar radiante e com as mãos voltadas, vai tomando de todos o aromático incenso e os sacrifícios incruentos e imateriais apresentados por meio de orações, e os envia ao Pai celestial e Deus do universo. Ele mesmo é o primeiro a adorar e o único a render ao Pai a adoração que lhe corresponde, e logo lhe suplica também que permaneça perpetuamente favorável e propício para com todos nós.

69. Assim é o grande templo que o Verbo, o grande construtor do universo construiu por toda a terra habitada sob o sol, depois de ser Ele mesmo quem fabricou sobre a terra esta imagem espiritual do que há mais além das abóbadas celestes, para que seu Pai pudesse ser honrado e adorado através de toda a criação e de todos os seres viventes e racionais que há sobre a terra.

  1. 70.  Mas a legião sobre os céus, os modelos que ali há das coisas daqui, a assim chamada Jerusalém de cima, o monte Sion supraceleste e a supraterrena cidade do Deus vivo, na qual inúmeros anjos em assembléia e uma Igreja de primogênitos registrados nos céus estão celebrando com suas teologias inefáveis e para nós inconcebíveis seu criador e supremo Senhor do universo, nenhum mortal será capaz de cantá-lo como é devido, porque realmente nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que realmente Deus preparou para os que o amam[703].
  2. 71.  Posto que fomos considerados dignos de ter parte nestes bens, assim homens como crianças e mulheres, pequenos e grandes, todos juntos e com um só coração e uma só alma, confessemos e aclamemos sem cessar jamais o autor de tão grandes bens para nós, o que perdoa propiciamente todas as nossas iniqüidades, o que sana todas nossas enfermidades, o que resgata nossas vidas da corrupção, o que nos coroa com misericórdia e compaixão, o que sacia de bens nosso desejo, porque não agiu conosco segundo nossos pecados nem nos pagou conforme nossas iniqüidades, já que tão longe quanto está o oriente do ocidente, assim afastou de nós nossas iniqüidades. Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadeceu dos que o temem[704].
  3. 72.  Reavivemos a memória de todos estes bens não somente agora, mas também em todo momento sucessivo. Agora pois, tendo sempre ante os olhos, de noite e de dia, a todas as horas, e por assim dizer, a cada inspiração, o autor e diretor chefe da presente assembléia festiva e deste esplêndido e brilhante dia, amemo-lo e veneremo-lo com toda a força de nossas almas. E agora, ponhamo-nos de pé e supliquemo-lhe com voz forte e grande disposição, para que, abrigados até o fim sob seu redil, nos salve e nos outorgue como prêmio a inquebrantável, inamovível e eterna paz em Cristo Jesus, nosso Salvador, pelo que seja glorificado por todos os séculos dos séculos. Amém."

 

V

[Cópias das leis imperiais referentes aos cristãos]

1.   Bem, mas no que segue, citemos também as traduções das disposições imperiais de Constantino e de Licínio, traduzidas do latim.

 

Cópia das disposições imperiais traduzidas do latim.

2.   'Ao considerar, já há tempo, que não se há de negar a liberdade da religião, mas que se deve outorgar à mente e à vontade de cada um a faculdade de ocupar-se dos assuntos divinos segundo a preferência de cada um, tínhamos ordenado aos cristãos que guardassem a fé de sua escolha e de sua religião.

  1. 3.             Mas como ocorreu que naquele decreto em que aos mesmos se outorgava semelhante faculdade parece que se acrescentavam claramente muitas e diversas condições, talvez se desse que alguns deles foram pouco depois violentamente afastados da dita observância.
  2. 4.      Quando eu, Constantino Augusto, e eu, Licínio Augusto, nos reunimos feliz­mente em Milão e nos pusemos a discutir tudo o que importava ao proveito e utilidade públicas, entre as coisas que nos pareciam de utilidade para todos em muitos aspectos, decidimos sobretudo distribuir umas primeiras disposições em que se asseguravam o respeito e o culto à divindade, isto é, para dar, tanto aos cristãos quanto a todos em geral, livre escolha para seguir a religião que quisessem, com o fim de que tanto a nós quanto aos que vivem sob nossa autoridade nos possam ser favoráveis a divindade e os poderes celestiais que existam.
  3. 5.      Portanto, foi por um saudável e retíssimo arrazoamento que decidimos tomar esta nossa resolução: que a ninguém se negue em absoluto a faculdade de seguir e escolher a observância ou a religião dos cristãos, e que a cada um se dê a faculdade de entregar sua própria mente à religião que creia que se adapta a ele, a fim de que a divindade possa em todas as coisas outorgar-nos sua habitual solicitude e benevolência.
  4. 6.             Assim era natural que déssemos por decreto o que era de nosso agrado: que, suprimidas por completo as condições que se continham em nossas primeiras cartas a tua santidade acerca dos cristãos, também se suprimisse tudo o que parecia ser inteiramente sinistro e alheio a nossa mansidão, e que agora cada um dos que sustentam a mesma resolução de observar a reli­gião dos cristãos, observe-a livre e simplesmente, sem impedimento algum.
  5. 7.      Tudo isto decidimos manifestar da maneira mais completa a tua solicitude, para que saibas que nós demos aos mesmos cristãos livre e absoluta faculdade de cultivar sua própria religião.
  6. 8.             Já que estais vendo o que precisamente lhes demos sem restrição alguma, tua santidade compreenderá que também a outros, a quem queira, dá-se-lhes faculdade de prosseguir suas próprias observâncias e religiões - o que precisamente está claro que convém à tranqüilidade de nossos tempos -, de sorte que cada um tenha possibilidade de escolher e dar culto à divindade que queira.

Isto é o que fizemos, com o fim de que não pareça que menoscabamos o mínimo a honra ou a religião de ninguém.

9.   Mas, além disto, em atenção às pessoas dos cristãos, decidimos também o seguinte: que seus lugares em que anteriormente tinham por costume reunir-se e acerca dos quais já em carta anterior enviada a tua santidade havia outra regra, delimitada para o tempo anterior, se parecer que alguém os tenha comprado, seja de nosso tesouro público, seja de qualquer outro, que os restitua aos mesmos cristãos, sem reclamar dinheiro nem compensação alguma, deixando de lado toda negligência e todo equívoco, E se alguns, por acaso, os receberam como doação, que estes mesmos lugares sejam restituídos o mais rapidamente possível aos mesmos cristãos.

  1. 10.     Mas de tal maneira que, tanto os que haviam comprado ditos lugares como os que os receberam de presente, se pedirem alguma compensação de nossa benevolência, possam acudir ao magistrado que julga no lugar, para que também se proveja a ele por meio de nossa bondade.
  2. 11.     Tudo o que deverá ser entregue à corporação dos cristãos, pelo mesmo, graças a tua solicitude, sem a menor dilação.

E como ocorre que os mesmos cristãos não somente têm aqueles lugares em que costumavam reunir-se, mas que se sabe que também possuem outros lugares pertencentes, não a cada um deles, mas ao direito de sua corporação, isto é, dos cristãos, em virtude da lei que anteriormente mencionei mandarás que todos esses bens sejam restituídos sem o menor protesto aos mesmos cristãos, isto é, a sua corporação, e a cada uma de suas assembléias, guardada, evidentemente, a razão exposta acima: que aqueles, como dissemos, que os restituírem sem recompensa, esperem de nossa benevolência sua própria indenização.

12. Em tudo isto deverás oferecer à dita corporação dos cristãos a mais eficaz diligência, para que nosso comando se cumpra o mais rapidamente possível e para que também nisto, graças a nossa bondade, se proveja à tranqüilidade comum e pública.

  1. 13.     Efetivamente, por esta razão, como também ficou dito, a solicitude divina por nós, que já experimentamos em muitos assuntos, permanecerá assegurada por todo o tempo.

14. E para que o alcance desta nossa legislação benevolente possa chegar ao conhecimento de todos, é preciso que tudo o que nós temos escrito tenha preferência e por ordem tua se publique por todas as partes e se leve ao conhecimento de todos, para que a ninguém se possa ocultar esta legislação, fruto de nossa benevolência."

 

Cópia de outra disposição imperial que também foi tomada assinalando que a doação foi feita somente à igreja católica.[705]

15. "Saúde, estimadíssimo Anulino[706]. É costume de nossa benevolência o seguinte: que nós não somente queremos que não se cause dano ao que precisamente pertence ao direito alheio, mas que inclusive se restitua, estimadíssimo Anulino.

  1. 16.     Daí que queiramos que, ao receber esta carta, se, em cada cidade ou inclu­sive em outros lugares, alguns destes bens pertenciam à Igreja católica dos cristãos e agora os detenham cidadãos ou outras pessoas, faças com que ditos bens sejam restituídos imediatamente à mesmas igrejas, posto que decidimos que precisamente aquilo que as ditas igrejas possuíam antes seja restituído a seu direito.
  2. 17.     Por conseguinte, já que tua santidade está comprovando que a ordem deste nosso comando é evidente, apressa-te para que tudo, sejam jardins, casas ou qualquer outra coisa que pertença ao direito das ditas igrejas, seja-lhes restituído o mais rapidamente possível, de sorte que chegue a nosso conhe­cimento que aplicaste a esta nossa ordem a mais escrupulosa obediência. Que tudo te vá bem, estimadíssimo e mui querido Anulino."

 

Cópia de uma carta imperial, pela qual manda que se reúna um concílio de bispos em Roma, sobre a unidade e a concórdia das igrejas.

  1. 18.     "Constantino Augusto a Milcíades, bispo dos romanos, e a Marcos: Muitos importantes documentos me têm sido enviados da parte do ilustríssimo procônsul da África Anulino, nos quais se menciona que o bispo da cidade dos cartagineses Ceciliano é acusado de muitas coisas por alguns de seus colegas com sede na África, e a mim me parece sumamente grave que nestas províncias, que a divina providência voluntariamente confiou a minha so­licitude e nas quais é muito numerosa a população, encontre-se uma multidão persistindo no pior, como se estivesse dividida, e que entre os próprios bispos existam diferenças.
  2. 19.     Pelo que, decidimos que o próprio Ceciliano, com dez bispos dos que pare­cem acusá-lo e outros dez que ele mesmo possa crer necessários para sua própria causa, embarque para Roma e ali, estando vós presentes - assim como também vossos colegas Retício, Materno e Marino[707], aos quais mandei por esta causa apressarem-se a ir a Roma -, possa ser ouvido, o que se ajusta, como sabes, à lei augustíssima.

20. Mesmo assim, para que possais ter acerca de todos estes assuntos um conhe­cimento completo, anexo a minha carta as cópias dos documentos que me enviou Anulino e remeto-os também a vossos colegas anteriormente citados. Quando os lerdes, vossa firmeza decidirá de que maneira haverá que exa­minar com o maior escrúpulo a dita causa e dar-lhe fim conforme o direito,
posto que não vos é ocultado que estou dispensando à legítima Igreja católica um respeito tão grande que por nada do mundo quero que permitais cisma ou divisão em lugar algum. Que a divindade do grande Deus vos guarde por muitos anos, estimadíssimo."

 

Cópia de uma carta imperial pela qual manda que se faça um segundo concilio sobre a eliminação de toda DivisãO entre os bispos.

  1. 21.      "Constantino Augusto a Cresto, bispo dos siracusanos. Já em ocasião anterior, quando alguns, com ânimo vil e perverso, começaram a dividir-se acer­ca do culto do santo e celestial poder e da religião[708] católica, querendo eu cortar semelhantes discussões entre eles, ditei umas disposições de tal natureza que, enviando alguns bispos da Gália aos das partes contrárias que lutavam entre si obstinada e ferozmente, e achando-se também presente o bispo de Roma, aquilo que parecia estar em litígio pudesse solucionar-se por efeito de sua presença unida a um cuidadoso exame.
  2. 22.  Mas o que ocorre, posto que alguns, esquecendo-se de sua própria salvação e da veneração devida à santíssima religião, ainda hoje não cessam de pro­longar suas peculiares inimizades e não querem conformar-se com a sentença já ditada, declarando que, em realidade, somente alguns poucos aportaram suas próprias opiniões e afirmações, ou até mesmo que, sem haver sido examinado com exatidão tudo o que devia ser examinado, apressaram-se a emitir o juízo a toda pressa e precipitadamente; disto veio a resultar que os mesmos que deveriam ter uma concórdia fraterna e unânime, separaram-se uns dos outros vergonhosamente, e mais, abominavelmente, e deram motivo de zombaria aos homens cujas almas são alheias à santíssima religião. Devido a isto tive que tomar providências para que o mesmo precisamente que deveria ter cessado por livre assentimento depois do juízo já determinado, possa chegar a um termo, ao menos agora, com a presença de muitos.

23. Como pois ordenamos a numerosos bispos de diferentes e incontáveis lugares que se reúnam na cidade de Aries pelas calendas de agosto[709], pensamos escrever-te também a ti para que tomes do governador da Sicília, o ilustríssi­mo Latroniano, um veículo público, e juntando a ti pelo menos outros dois da segunda ordem[710] que tu mesmo venhas a escolher, e depois de tomares ainda três criados que possam servir-vos no caminho, te apresentes esse mesmo dia no lugar acima indicado.

24. Desta maneira, mediante tua firmeza e a compreensão unânime e concorde dos demais reunidos, ao ser ouvido tudo o que se dirá da parte dos que agora estão divididos - aos quais igualmente ordenei estarem presentes -, aquilo mesmo que por causa de uma vergonhosa disputa entre companheiros tem se mantido até agora de forma errada, poderá, ainda que lentamente, ser novamente conduzido à religião devida, à fé e à concórdia fraterna. Que o Deus Todo-poderoso te conserve são por muitos anos."

 

VI

Cópia de uma carta mediante a qual se faz doação de dinheiro às igrejas.

1.   "Constantino Augusto a Ceciliano, bispo de Cartago.

Posto que em todas as províncias, particularmente nas Áfricas, nas Numídias e nas Mauritânias[711], determinei que se outorgasse algo para os gastos de alguns ministros designados da legítima e santíssima religião católica, despa­chei uma carta para o perfeitíssimo Urso, diretor geral das finanças da África, indicando-lhe que providenciasse para abonar a tua firmeza três mil follis.

  1. 2.            Tu, por conseguinte, quando acusardes o recebimento da indicada quantia de dinheiro, manda que este dinheiro seja repartido a todas as pessoas acima mencionadas conforme o documento que Osio te enviou.
  2. 3.            Mas se perceberdes que falta algo para o cumprimento deste meu plano rela­tivo a eles, deverás pedir sem demora a Heráclides, o procurador de nossos bens, o quanto saibas que é necessário, já que, achando-se aqui presente, dei-lhe ordens para que se preocupasse de pagar-te sem a menor vacilação, no caso de que tua firmeza lhe pedisse algum dinheiro.
  3. 4.     E como tenho informes de que alguns homens de pensamento inconstante estão querendo afastar o povo da santíssima e católica Igreja com perverso engano, saiba que dei ordens semelhantes ao procônsul Anulino e também ao representante dos prefeitos, Patrício, que se achavam presentes, para que, além do mais, dediquem também a isto a devida preocupação e não se permitam descuidar deste assunto.
  4. 5.            Portanto, se virdes que alguns homens assim persistem nesta loucura, apela sem a menor vacilação aos juízes acima citados e apresenta-lhes este assunto para que eles, como lhes ordenei quando estavam presentes, os convertam ao bom caminho.

Que a divindade do grande Deus te guarde por muitos anos."

 

VII

[Da imunidade dos clérigos]

Cópia de uma carta imperial mediante a qual ordena que os presidentes das igrejas sejam eximidos de toda função pública civil.

1. "Saúde, estimadíssimo Anulino. Como parece, por uma série de fatos, que sempre que a religião em que se conserva o supremo respeito ao santíssimo poder do céu foi desprezada, foi causa de grandes perigos para os assuntos públicos, e por outro lado, quando foi admitida e preservada legalmente proporcionou ao nome romano enorme fortuna e uma prosperidade sin­gular a todos os assuntos dos homens - pois isto é obra dos benefícios divinos -, decidi, estimadíssimo Anulino, que aqueles varões que com a devida santidade e com a familiaridade desta lei estão prestando seus serviços pessoalmente ao culto da divina religião recebam a recompensa de seus próprios trabalhos.

2. Por esta razão, aqueles que dentro da província a ti confiada estão prestando pessoalmente seus serviços a esta santa religião na Igreja católica, que é presidida por Ceciliano, e os que se costuma chamar clérigos, quero que, sem mais e uma vez por todas, fiquem isentos de toda função pública civil, para que não ocorra que por algum erro ou por um extravio sacrílego vejam-se afastados do culto devido à divindade; antes, estejam ainda mais entregues ao serviço de sua própria lei sem estorvo algum, já que, se eles rendem à divindade a maior adoração, parece que acarretarão incontáveis benefícios aos assuntos públicos. Que tenhas saúde, meu estimadíssimo e mui querido Anulino."

 

VIII

[Da posterior perversidade de Licínio e de sua morte]

  1. 1.            Tais dons, pois[712], nos concedia a divina e celestial graça da manifestação de nosso Salvador, e tão abundantes eram os bens que por meio de nossa paz se outorgava a todos os homens. E desta maneira o nosso era celebrado entre regozijo e grandes reuniões festivas.
  2. 2.            Mas nem a inveja inimiga do bem, nem o demônio, amante do mal, podiam suportar a contemplação do que viam; como tampouco para Licínio o sucedido aos tiranos anteriormente mencionados[713] foi suficiente para uma atitude prudente. Ele que havia sido considerado digno de um governo bem próspero, digno da honra do segundo posto depois do grande imperador Constantino e digno de afinidade e parentesco do mais alto grau[714], ia se afastando da imitação dos bons e, em troca, copiava a perversidade e malícia dos ímpios tiranos. E ainda que tivesse visto com seus próprios olhos o final catastrófico destes, preferiu segui-los em seu sentimento a permanecer na amizade e boa disposição de seu superior.
  3. 3.     Presa da inveja para com o benfeitor universal, provoca contra ele uma guerra execrável e terrível, sem respeito pelas leis da natureza e sem trazer à mente a memória dos juramentos, do sangue e dos pactos.
  4. 4.     De fato, que sinais de verdadeira benevolência não lhe havia outorgado o boníssimo imperador! Não lhe regateou seu parentesco nem lhe negou esplêndidas núpcias com sua irmã, antes até, considerou-o digno de compartilhar sua nobreza, que vinha de seus pais, e seu sangue imperial ancestral, e também havia-lhe proporcionado poder desfrutar do governo supremo como cunhado e co-imperador, posto que havia-lhe dado a graça de uma parte não menor de povos sujeitos a Roma, para que os governasse e administrasse[715].
  5. 5.            Mas ele, por sua vez, agia contrariamente a isto e cada dia imaginava intrigas contra seu superior e imaginava todo gênero de conspirações, como se res­pondesse com males a seu benfeitor. Assim é que, em primeiro lugar, tratava de ocultar seus preparativos fingindo ser amigo, e aplicando-se à astúcia e ao engano, esperava alcançar com toda facilidade o resultado apetecido.
  6. 6.            Mas deve-se saber que aquele tinha Deus como amigo, protetor e guardião, que, trazendo à luz as conspirações urdidas contra ele secretamente e nas sombras, ia desbaratando-as. Tão grande força e virtude tem a arma da piedade para rechaçar os inimigos e preservar a própria salvação! Guarnecido com ela, nosso imperador, amado de Deus, ia esquivando as conspirações do infame astuto.
  7. 7.            Este, por sua parte, quando viu que seus preparativos ocultos de modo algum andavam conforme seus desígnios, já que Deus ia manifestando a seu amado imperador todo engano e toda maldade, e não podendo já dissimular por mais tempo, declarou abertamente a guerra.
  8. 8.            Decidido, efetivamente, a fazer a guerra contra Constantino, apressava-se já a formar suas tropas também contra o Deus do universo, a quem sabia que aquele honrava, e logo pôs-se a atacar - moderada e silenciosamente a princípio - seus próprios súditos adoradores de Deus, que jamais haviam causado o mínimo incômodo a seu governo. E agia assim porque sua maldade inata o forçava a uma terrível cegueira.
    1. 9.             Ocorre que ele não tinha ante os olhos a memória dos que haviam perseguido os cristãos antes dele, nem sequer a daqueles de quem ele mesmo havia sido instrumento de ruína e de castigo pelas impiedades em que haviam tomado parte. Pelo contrário, voltando as costas a um pensamento prudente, e mais, em termos exatos, transtornado pela loucura, tinha decidido fazer a guerra ao próprio Deus, como protetor de Constantino, em vez de ao protegido.
    2. 10.  Em primeiro lugar expulsou de sua própria casa todos os que eram cristãos, com o que o desgraçado privou a si mesmo da oração destes por ele, oração que costumavam fazer por todos, segundo ensinamento ancestral[716]; mas logo foi dando ordens para que em cada cidade se separasse e degradasse os soldados que não escolhessem sacrificar aos demônios[717]. E isto ainda era coisa pouca se o compararmos com as medidas maiores.
    3. 11.     Que necessidade há de recordar uma por uma e sucessivamente as coisas que este inimigo de Deus perpetrou e como sendo o maior violador das leis inventou leis ilegais?[718] Pelo menos é certo que impôs a lei de que ninguém tivesse a humanidade de repartir alimentos aos que penavam nos cárceres, que ninguém se compadecesse dos que padecessem de fome nas prisões e, em uma palavra, que ninguém fosse bom nem fizesse o menor bem, nem sequer aqueles que por sua própria natureza se deixam arrastar à compaixão por seus próximos. Esta lei era, evidentemente, a mais desavergonhada e a mais cruel de todas, já que passava por cima de toda natureza civilizada e continha ainda como castigo que os compassivos sofressem as mesmas penas que seus compadecidos e que seriam acorrentados e encarcerados os que prestassem serviços humanitários aos condenados, sofrendo o mesmo castigo que eles.

12. Tais eram as ordens de Licínio. Que necessidade temos de enumerar detalha­damente suas inovações acerca das núpcias ou suas disposições revolucioná­rias a respeito dos que deixam esta vida? Atreveu-se a abolir as antigas leis romanas, reta e sabiamente estabelecidas, e introduziu no lugar delas algumas leis bárbaras e incivilizadas, verdadeiramente ilegais e contra as leis. Inventava também inumeráveis acusações contra as nações submetidas, toda classe de extorsões de ouro e prata, novos cadastros e lucrativas multas a homens que já não estavam nos campos, mas que tinham morrido há tempo.

  1. 13.     E que classe de desterros inventou ainda o inimigo dos homens contra pessoas que nenhum dano tinham lhe causado? E as detenções de homens nobres e notáveis dos quais separava suas legítimas esposas e as entregava a alguns criados lascivos para que as ultrajassem com suas torpezas? E ele mesmo, um velhote, quantas mulheres casadas e quantas donzelas não vexou para satisfazer a paixão desenfreada de sua alma? Que necessidade temos de alongar a conta, se o excesso de suas últimas maldades deixou as primeiras pequenas e reduzidas a quase nada?

14. Certo é que, no cúmulo de sua loucura, procedeu contra os bispos. Por crer que estes, como servidores do Deus supremo, eram contrários ao que ele fazia, urdia seus preparativos, ainda não a plena luz, por medo ao mais forte[719], mas sim ocultamente e com falsidade, e deles ia eliminando os mais conspícuos valendo-se da confabulação dos governadores[720]. E o gênero de morte usado contra eles era muito estranho e inaudito até então.

  1. 15.     O certo é que o que foi realizado em torno de Amasia e as demais cidades do Ponto superou a todo excesso de crueldade. Ali, das igrejas de Deus, algumas foram novamente arrasadas por completo, e outras foram fechadas para que ninguém fosse a elas segundo o costume nem oferecessem a Deus os cultos devidos.
  2. 16.     Efetivamente, por pensar nisto com sua má consciência, não acreditava que se fizessem orações por ele, antes, estava persuadido de que nós fazíamos tudo e aplacávamos a Deus em favor do imperador amigo de Deus. Desde então, começou a fazer cair seu furor sobre nós.
  3. 17.     Assim foi. Os governadores aduladores, persuadidos de que faziam o que queria o infame, oprimiam alguns bispos com os castigos habitualmente reservados aos malfeitores, e desta forma detinha-se e se castigava sem pretexto algum, como aos homicidas, os que nada de mal tinham feito. Outros sofreram um novo gênero de morte: esquartejados seus corpos em muitos pedaços com uma espada, depois deste cruel e horripilante espetáculo, eram lançados ao fundo do mar para pasto dos peixes.
  4. 18.     Ante estes fatos reiniciaram-se as fugas dos homens piedosos, e novamente os campos, os vales solitários e os montes começaram a acolher os servos de Cristo. E como desta maneira o ímpio tinha êxito nestas medidas, chegou mesmo a conceber a idéia de ressuscitar a perseguição contra todos.
  5. 19.     Seu pensamento se reafirmava e nada o impedia de pô-lo em ação, se o Deus que luta em favor das almas que lhe pertencem, prevendo o que suce­deria, não tivesse rapidamente feito brilhar, como em trevas profundas e noite escuríssima, uma grande luminária e ao mesmo tempo um salvador para todos: seu servo Constantino, a quem levou pela mão para esta obra com braço poderoso.

 

IX

[Da vitória de Constantino e do que este permitiu aos súditos do poder

romano]

1. A este, por conseguinte, foi que Deus outorgou desde cima, como fruto digno de sua piedade, o troféu da vitória contra os ímpios. Em troca, precipitou o criminoso com todos seus conselheiros e amigos aos pés de Constantino.

  1. 2.            Efetivamente, tendo aquele feito avançar seus atos até extremos de loucura, o imperador amigo de Deus concluiu que já era insuportável. Fazendo seu cálculo prudente e somando a sua humanidade a firmeza do juiz, decide acudir em socorro dos que sofriam sob o tirano. Desembaraçou-se de alguns breves contratempos e pôs-se em movimento para recobrar a maior parte do gênero humano.
  2. 3.            Até então, efetivamente, havia utilizado com ele somente a humanidade, e havia-se compadecido de quem não era digno de compaixão, sem proveito nenhum, já que o outro não se afastava de sua maldade, antes até, aumentava ainda mais sua raiva contra as nações submetidas e já não deixava nenhuma esperança de salvação para os maltratados, tiranizados como estavam por uma fera espantosa.
  3. 4.     Por isto, juntando seu ódio ao mal com seu amor ao bem, o defensor dos bons avança junto com seu filho Crispo, humaníssimo imperador, estendendo sua destra salvadora a todos os que pereciam. Logo, como se tivessem guias e como aliados a Deus, rei universal, e a seu Filho, salvador de todos, pai e filho, ambos de uma vez, separam em círculo sua formação contra os inimigos de Deus e conseguem para si uma fácil vitória, já que Deus lhes dispôs tudo no confronto conforme seu plano.
  4. 5.            Efetivamente, de súbito e com mais rapidez do que se diz, os que ontem e anteontem respiravam morte e ameaça[721], já não existiam[722]; nem de seus nomes havia memória; suas imagens e monumentos recebiam seu merecido desdouro, e o que em outro tempo Licínio contemplou com seus próprios olhos nos ímpios tiranos, isto mesmo ele sofreu em pessoa, por não arrepen­der-se nem corrigir-se ante os castigos de seus vizinhos. Depois de compartir com estes o mesmo caminho da impiedade, caiu merecidamente no mesmo precipício que eles.
    1. 6.             Mas, enquanto ele jazia prostrado desta maneira, Constantino, o vencedor máximo, que sobressaía em toda virtude religiosa, e seu filho Crispo, impe­rador amado de Deus e semelhante em tudo a seu pai, recobraram o familiar Oriente e apresentavam reunido em um, como antigamente, o governo romano, conduzindo sob a paz de ambos a terra toda, desde o sol nascente, em círculo por uma e outra parte do orbe habitado, e pelo norte e o meio dia, até o limite extremo do Ocidente.
    2. 7.      Em conseqüência, eliminava-se de entre os homens todo medo aos que antes os pisoteavam, e em troca, celebravam-se brilhantes e concorridos dias de solenes festas. Tudo explodia de luz. Os que antes andavam cabis-baixos olhavam-se mutuamente com rostos sorridentes e olhos radiantes, e pelas cidades, assim como pelos campos, as danças e os cantos glorificavam em primeiríssimo lugar o Deus rei e soberano de tudo - porque isto haviam aprendido -, e em seguida o piedoso imperador, junto com seus filhos amados por Deus.
    3. 8.            Havia perdão dos males antigos e esquecimento de toda impiedade; goza­va-se dos bens presentes e esperavam-se os vindouros. Por conseguinte, estendiam-se por todo lugar disposições do vitorioso imperador cheias de humanidade e leis que levavam a marca da munificência e verdadeira piedade.
    4. 9.     Expurgada assim, realmente, toda tirania, o império que lhes correspondia reservava-se seguro e indiscutível somente para Constantino e seus filhos, os quais, depois de eliminar do mundo antes de tudo o ódio a Deus, cons­cientes dos bens que Deus lhes havia outorgado, tornaram manifesto seu amor à virtude, seu amor a Deus, sua piedade para com Deus e sua gratidão, mediante obras que realizavam publicamente à vista de todos os homens.


* NT: Nas notas de rodapé que dão referência a versículos bíblicos de livros em que há diferença de divisão entre as versões católica e reformada, esta última aparece entre parênteses. Ex.: 105 Sl 67:32 (68:31).

[1] 1 Tm, 6:20.

[2] At 20:29.

[3] Is 53:8.

[4] Mt 11:27.

[5] Pv 8:23.

[6] Jo 1:1-3.

[7] Gn 1:26.

[8] Sl 32:9.

[9] Gn 18:1-3

[10] Gn 18:25.

[11] Sl 106 (107):20.

[12] Gn 19:24.

[13] Gn 32:28.

[14] Gn 32:30.

[15] Js 5:14.

[16] 1 Co 1:24.

[17] Js 5:13-15.

[18] Ex 3:4-6. 19

[19] Pv 8:12, 15-16.

[20] Pv 8:22-25, 27-28, 30-31.

[21] Esta visão tão pessimista não provém das Escrituras, mas da filosofia grega.

[22] Dn 7:9-10.

[23] Dn 7:13-14.

[24] Ex 25:40 cf. Hb 8:5.

[25] Lv 4:5-16; 6:22.

[26] Nm 13:16.

[27] Ausé é a forma usada na LXX, assim como Jesus mais adiante; no texto masorético os nomes são Oséias e Josué.

[28] Lm 4:20.

[29] Sl 2:1-2.

[30] Sl 2:7-8.

[31] Recorde-se que "Cristo" significa "ungido".

[32] Is 61:1; Lc 4:18-19.

[33] Sl 44:7-8 (45:6-7).

[34] Sl 109(110):1.

[35] Sl 109:3-4(110:4).

[36] Gn 14:18-20.

[37] Is 66:8.

[38] Is 65:15.

[39] Sl 104 (105):15.

[40] Gn 15:6.

[41] Gn 12:3; 22:18.

[42] Gn 18:18.

[43] Mq 5:1 (5:2).

[44] Lc 2:2.

[45] At 5:37.

[46] Gn 49:10.

[47] Escravos dos templos.

[48] Dn 9:24-27.

[49] Mt 1:1-17; Lc 3:23-38.

[50] Gn 38:8; Dt 25:5-6; Lc 20:28.

[51] Mt 1:15-16.

[52] Lc 3:23-24. Nesta passagem Africanus comete um erro: Em Lucas Melqui está em quinto lugar.

[53] Mt 1:16.

[54] Lc 3:23-24.

[55] Lc 3:38.

[56] Espécie de procurador, talvez não apenas militar mas também administrativo.

[57] Jdt 5:5;14:10 (livro não pertencente ao cânone hebraico).

[58] Rt 1:16-22; 2:2; 4:19-22.

[59] Ex 12:38; Dt 23:8.

[60] Nm 36:8-9.

[61] Mq 5:l (5:2); Mt 2:5-6.

[62] Mt 2:1-7; 16:13-15.

[63] O Mar Morto.

[64] No ano 29 a.C. Herodes matou sua segunda esposa, Mariana; em 7 a.C. os filhos que teve dela, Alexandre e Aristóbulo, e apenas cinco dias antes de sua morte, em 4 a.C. matou Antípatro, filho de sua primeira mulher, Doris.

[65] Aos setenta anos, provavelmente em março ou abril de 4 a.C.

[66] Mt 2:22.

[67] Lc3:1.

[68] Lc 3:23.

[69] Mt 3:13.

[70] Mt 4:17; Mc 1:14.

[71] Lc 3:2; Mt 26:57.

[72] Mt 26:3-57; Jo 11:49; 18:13, 24, 28.

[73] Mt 10:1-ss.; Mc 3:14-ss.; Lc 6:13; 9:1-ss.

[74] Lc 10:1.

[75] Mt 14:1; Mc 6:14-29; Lc 3:19-20; 9:7-9.

[76] Engana-se o autor. Quem foi desterrado para Viena foi Arquelau; Herodes o Jovem foi desterrado para Lion (Lugdunum).

[77] Mt 10:2-4; Mc 3:16-19; Lc 6:14-16.

[78] At 4:36; 9:27; 11:22-30; 12:25; 13:15.

[79] Gl 2:1, 9, 13.

[80] 1 Co 1:1.

[81] Gl 2:11.

[82] Significando tradição passada por escrito.

[83] At 1:23-26.

[84] Tradição oral, sem registro escrito.

[85] Para Mt 10:3 e Mc 3:14, 18. Tadeu era um dos doze, mas em Lucas ele não aparece.

[86] 1 Co 15:5-7.

[87] Cf. 12:3.

[88] Eusébio provavelmente copiou os documentos já traduzidos anteriormente.

[89] Abgaro o Negro.

[90] Gn 19:20.

[91] At l:2-ss.;Jo 16:5.

[92] Mt 10:1.

[93] Isto seria os anos 28-29 d.C; o texto segue a Era Selêucida, iniciada em 1º de outubro de 312a.C.

* Este livro foi composto com extratos de Clemente, de Tertuliano, de Josefo e de Fílon.

[94] At 6:1-6.

[95] At 7:58-59.

[96] Gl 1:19.

[97] Gl 1:19.

[98] vide I:XIII:5.

[99] vide I:XIII: 11-18.

[100] At 8:3.

[101] At 8:5-13.

[102] At 8:13.

[103] Não mais ao tempo de Eusébio, mas da fonte por ele consultada.

[104] At 8:26-39.

[105] Sl 67:32 (68:31).

[106] At 9:15.

[107] At 9:3-6; 22:6-9; 26:14-19.

[108] Sl 18:5 (19:4); Rm 10:18.

[109] At 11:19-26.

[110] At 11:27.

[111] At 11:28-30.

[112] Caio César Augusto Germânico, mais conhecido como Calígula.

[113] Alabarca, arrecadador superior de impostos.

[114] Jo 19:15. Mas parece que Josefo indica que isto ocorreu pouco depois da chegada de Pilatos, portanto antes da paixão.

[115] At 12:1-2.

[116] At 12:13-17.

[117] At 12:19, 21-23.

[118] Em seus manuscritos Josefo fala de uma coruja.

[119] O Novo Testamento chama-o Herodes, Josefo prefere Agripa; na realidade, tinha os dois nomes.

[120] At 5:34-36.

[121] At 11:29-30.

[122] A identificação de Simão o herege com Simão o Mago é duvidosa.

[123] A estátua, encontrada em 1574, tem a inscrição: SEMONI SANCO DEO FIDIO SACRUM, sendo uma homenagem a um antigo deus Sabino SEMO.

[124] 2 Co 10:5.

[125] At 8:18-23.

[126] i.é. o demônio. Sobre a estátua, vide nota 123.

[127] Ef 6:14-17; 1Ts 5:8.

[128] Clemente na verdade diz que Pedro "nem o impediu nem o estimulou".

[129] At 2:45.

[130] At 4:34-35.

[131] Distritos em que era dividido o Egito.

[132] Fílon não fala de igreja, como diz Eusébio, mas de habitação sagrada, com o duplo nome de oratório privado e monastério (lugar para uma só pessoa).

[133] Eusébio trata Fílon como "um dos nossos", um escritor cristão, no que é seguido por S. Jerônimo, apesar de este duvidar da autenticidade do texto de Fílon.

[134] O segundo livro foi perdido totalmente.

[135] Desta obra só se conservaram fragmentos.

[136] Isto indica que Eusébio já não conheceu diretamente esta obra, que está perdida.

[137] São na verdade duas obras: Sobre a emigração e Sobre a vida do sábio perfeito segundo a justiça.

[138] Só se conserva completa uma tradução armênia; em grego somente o que foi transmi­tido por Eusébio.

[139] Obra perdida.

[140] Vide XVII:7-ss.

[141] Rm 15:19.

[142] At 18:2, 18-19,23.

[143] Estas adagas eram as sicae, o que deu origem à palavra sicário, aquele que mata com a adaga e a traição.

[144] At 21:38.

[145] At 25:8-12; 27:1-2.

[146] Cl 4:10.

[147] At 28:30-31.

[148] Tradição escrita, pela expressão utilizada.

[149] 2 Tm 4:16-17.

[150] 2 Tm 4:18.

[151] 2 Tm 4:6.

[152] 2Tm4:11.

[153] 2 Tm 4:16.

[154] Em princípios do século IV, quando Eusébio escrevia esta obra, alguns negavam que Paulo tivesse feito duas viagens a Roma.

[155] Entre os anos 54 e 59, tempos de calma e bem-estar, Nero ouvia mais os conselhos moderados de Burro e Sêneca do que os de sua mãe Agripina.

[156] At 25:11-12; 27:1.

[157] At 23:13-15; 25:3.

[158] Verão ou outono de 62, entre a morte de Festo e a chegada de seu sucessor Luceius Albinus.

[159] Vide I:V

[160] Hegesipo nasceu no ano 110, pode ter conhecido alguns membros da comunidade primitiva, ainda que muito velhos, mas não pode ser de forma alguma "da primeira geração" pós-apostólica.

[161] Não fica claro de quem Tiago seria sucessor.

[162] Rm 2:6; Sl 62:13 (62:12); Pv 24:12; Mt 16:27; Ap 22:12.

[163] Jo 12:42.

[164] Mt 26:64; Mc 14:62; At 7:56.

[165] Jr 35:2-19.

[166] Vespasiano começou a guerra contra os judeus em 67, mas Jerusalém foi sitiada por seu filho Tito em 70.

[167] Desconhece-se este trecho nos manuscritos de Flavio Josefo, como Eusébio, contrá­rio a seu costume, não cita obra nem livro, pode tê-la recolhido de outro autor, como Orígenes.

[168] Agripa II (50-100).

[169] Refere-se aos sepulcros ou túmulos de Pedro e Paulo.

[170] O autor provavelmente estava pensando nos habitantes, escrevendo "entre os quais" e não "onde".

[171] 1 Pe 1:1.

[172] Rm 15:19.

[173] Esta obra de Orígenes está perdida.

[174] 2 Tm 4:21.

[175] Isto é, canônica.

[176] Rm 15:19.

[177] Gl 2:7-10.

[178] Fp 2:25.

[179] 1 Tm 1:3.

[180] Tt 1:5.

[181] Cl  4:14.

[182] Lc 1:2-3.

[183] Rm 2:l6;2 Tm 2:8.

[184] 2 Tm 4:10.

[185] 2 Tm 4:21.

[186] Fp 4:3.

[187] At 17:34.

[188] At 7:58-60.

[189] At 12:2.

[190] Mt 28:19.

[191] Mt 24:19-21.

[192] Os números dados por Josefo e citados por Eusébio devem ser exagerados levando em conta a população da Palestina na época. Para Tacitus os assediados em Jerusalém eram uns 600.000. Josefo cita como total de prisioneiros para toda duração da guerra o número de 97.000, de todas as idades.

[193] Exatamente em setembro do ano 70.

[194] Lc 19:42-44.

[195] Lc 21:23-24.

[196] Lc 21:20.

[197] Era portanto a festa dos Tabernáculos (Setembro-Outubro).

[198] Luceius Albinus, procurador entre 62 e 64.

[199] Não se sabe em que passagem da escritura poderia encontrar-se este oráculo.

[200] Sl 2:8.

[201] Rm 10:18.

[202] Nasceu no primeiro ano de Calígula (37-38 d.C), entrou em contato com os romanos em 64. Em 66 comanda parte das forças revolucionárias da Galiléia e cai prisioneiro dos romanos em 67. Desde sua libertação em 69 toma parte dos acontecimentos ao lado dos romanos e vive em Roma o resto de seus dias.

[203] Esta é a única referência que existe sobre esta estátua.

[204] Conserva-se apenas a versão grega, perdeu-se a aramaica.

[205] Esta obra não foi escrita por Josefo, mas por um autor contemporâneo ou pouco posterior.

[206] Lc 24:18; Jo 19:25. Escrito Cléopas em português.

[207] Não há outro registro sobre esta ordem e a perseguição conseqüente; é difícil avaliar o valor histórico desta citação.

[208] O duodécimo ano do reinado de Domiciano corresponde a 93 d.C.

[209] Fp 4:3, a identificação com este Clemente não tem o menor fundamento.

[210] Tradição escrita, consta das Memórias de Hegesipo.

[211] Ap 13:17-18.

[212] O do anticristo.

[213] Não se sabe quem eram estes hereges.

[214] No sentido de descendentes.

[215] Mt 13:55; Mc 6:3.

[216] Soldado veterano mobilizado para serviço dos magistrados em funções adminis­trativas.

[217] Mt 16:27; Jo 18:36; At 10:42; Rm 2:6; 2 Tm 4:1.

[218] Pode tratar-se da perseguição à Igreja de Jerusalém, de onde vinham os acusados, mas nada se sabe sobre este decreto.

[219] O mesmo referido acima como bispo.

[220] 2 Co 12:2-4.

[221] Mt 4:12.

[222] Mc 1:14.

[223] Lc 3:19-20.

[224] Jo 2:11.

[225] Jo 3:23-24.

[226] Vide II:XV.

[227] Lc 1:1-4.

[228] Do hebraico ebionim, significando pobres.

[229] Vide II:XXV:6.

[230] Ap 2:6-15.

[231] At 6:5.

[232] O dito é equívoco, significava originalmente que se deve colocar a carne sob as provações mais rigorosas. Os nicolaítas interpretaram-no em sentido licencioso.

[233] Mt 6:24; Lc 16:13.

[234] Sob o império de Trajano

[235] Mc 1:30; diz apenas que Pedro era casado, nada fala sobre filhos.

[236] Esta declaração de Clemente não tem respaldo na Bíblia.

[237] Segundo 1 Co 7:8 Paulo não estava casado. A afirmação de Clemente baseia-se numa leitura de Fp 4:3 diferente do texto aceito.

[238] Vide II:XXV:5.

[239] Jo 13:25; 21:20.

[240] Ex 28:36-38.

[241] At 21:8-9.

[242] Ou seja, Trajano.

[243] Na verdade Simeão.

[244] Jo 19:25.

[245] Vide XX: 1.

[246] (= Simeão).

[247] Segundo estes dados, Simeão teria nascido no ano 13 a.C, sendo portanto mais velho que seu primo Jesus.

[248] 1 Tm 6:20; gnosis significa conhecimento.

[249] Caio Plínio Cecilio Segundo, conhecido como Plínio o Jovem, sobrinho e filho ado­tivo de Plínio o Velho, autor da Historia naturalis.

[250] Plínio foi governador da Bitínia em 111-112.

[251] Esta expressão fica obscura no texto grego.

[252] O terceiro ano de Trajano foi 100-101, mas Clemente deve ter morrido antes, Evaristo provavelmente assumiu em 99.

[253] 1 Co 4:4.

[254] A passagem, que pode ter sido tirada do Evangelho dos Hebreus, corresponde a Lc 24:38-40.

[255] Fp 2:16.

[256] 1 Co 3:10; Ef 2:20.

[257] Significa a doutrina cristã vivida.

[258] Mt 19:21; Mc 10:21; Lc 18:22.

[259] 2 Tm 4:5.

[260] Rm 15:20-21.

[261] At 1:23-24.

[262] Eusébio apenas assinala que o relato se encontra em Papias e no Evangelho dos hebreus. É muito possível que se trate do mesmo que consta em Jo 7:53-8:11.

[263] Ano 109-110.

[264] O bispo Cerdon.

[265] Segundo os dados de Eusébio (vide III:34), Evaristo termina em 108-109.

[266] O ano 18 de Trajano, antes de setembro de 115.

[267] O historiador Dion Casio chama este líder de André.

[268] Provavelmente vinda das Memórias de Hegesipo.

[269] O décimo segundo ano de Adriano foi 128-129.

[270] Mais propriamente "Filho de estrela".

[271] Vide III:XXVI.

[272] Apesar desta fama, perderam-se todos seus escritos, conhecidos apenas por fragmen­tos conservados por Clemente de Alexandria.

[273] Nada sabemos desta obra, exceto por citações de outros autores.

[274] O futuro imperador Marco Aurélio.

[275] Eusébio não chega a se entender com os nomes nem com os títulos dos imperadores, pois anuncia uma carta de Antonino mas o cabeçalho é de Marco Aurélio, e ainda assim com falhas.

[276] Se a carta é de Marco Aurélio, como indica o cabeçalho, refere-se a Antonino, mas se o autor é Antonino, alude a Adriano.

[277] Vide III:XXVIII:6.

[278] Tt 3:10-11.

[279] Tempos de Marco Aurélio.

[280] O original não tem a palavra "todo", mas esta aparece no endereçamento da carta abaixo.

[281] Usa-se o termo "peregrino" ou "forasteiro" para expressar a condição do cristão como estando de passagem por este mundo.

[282] Espécie de comissário de polícia nomeado pelo procônsul para guardar a ordem pública nas cidades.

[283] Rm 13:1; I Pe 2:13.

[284] Presidente do concilio da província da Ásia, e como tal, sumo sacerdote e diretor dos jogos públicos.

[285] O confector era quem dava o golpe de misericórdia aos homens e às feras ao fim dos combates.

[286] As Atas de Pionio.

[287] Dos imperadores Marco Aurélio e Lúcio Vero.

[288] De "kíon" = cachorro.

[289] "A verdade deve ser honrada mais do que o homem, ainda que este homem seja Homero."

[290] De todas, só chegaram a nós as chamadas Apologias I e II e o Diálogo com Trifon, ainda que com algumas lacunas.

[291] Marco Aurélio.

[292] Isto é, o ano 168-169.

[293] Sucessor de Inácio (vide III:36:14).

[294] São os tempos de Marco Aurélio.

[295] A causa não se refere à frase anterior, mas à argumentação sobre a origem das heresias.

[296] Não se sabe a quais apócrifos e a quais hereges se refere.

[297] Márcion era natural cio Ponto, daí o cuidado especial para com as heresias.

[298] At 15:28.

[299] 1 Co 3:1-2; Hb 5:12-14.

[300] Mt 13:25.

[301] Ap 22:18-19.

[302] Desconhecida.

[303] Exceto pelos três livros A Autólico, todos seus livros se perderam.

[304] Nada se sabe sobre os tratados de Felipe e de Modesto Contra Márcion. Perderam-se assim como os de Justino.

[305] Um dos manuscritos dá o título Sobre a natureza do homem.

[306] Neste ponto do manuscrito aparecem sete letras que não fazem sentido e são interpre­tadas de diferentes formas por diversos estudiosos.

[307] Pode tratar-se de uma repetição do título citado acima ou de uma obra distinta.

[308] Procedimento contrário às ordem de Trajano.

[309] Não se tem notícia de tais editos contra os cristãos, pode ser uma referência às deci­sões de Marco Aurélio contra os que propagavam novas crenças, não especificamente contra os cristãos.

[310] Exceto pelo que é dito nesta obra, nada sabemos sobre Cláudio Apolinário, bispo de Hierápolis. Todas as suas obras foram perdidas.

[311] Gn 1:27.

[312] A explicação tradicional sobre a relação de pontos tão distantes é que as igrejas destas cidades seriam formadas principalmente por cristãos emigrados da Ásia Menor, mas existe a possibilidade de que Eusébio tenha confundido a Galácia do Ponto com a Gália do ocidente.

[313] Depois de destacar a irritação popular contra os cristãos, declara-se o causador: o "adversário", Satanás.

[314] Hb 10:33.

[315] Rm 8:18.

[316] Pode ser traduzido também como "advogado".

[317] Jo 16:2.

[318] Jo 7:38; 19:34; Ap 21:6.

[319] 1Pe 5:8.

[320] Mt 25:46.

[321] Alusão à norma apostólica de At 15:29, não implica que ainda estivesse vigente em Lion.

[322] Martírio significa originalmente "testemunho".

[323] Eram considerados criminosos comuns.

[324] 1 Co 9:25.

[325] Provavelmente pelo confector.

[326] Is 27:1.

[327] Cartaz obrigatório para condenados que eram cidadãos romanos, mas a mente do redator pode estar mais próxima ao cartaz sobre a cruz de Jesus (Mt 27:37; Mc 15:26; Lc 23:38; Jo 19:19).

[328] A "Virgem Mãe" é a Igreja.

[329] Ez 18:23; 33:11; 2 Pe 3:9.

[330] Marco Aurélio na verdade atém-se em sua resposta à regra de Trajano em sua carta a Plínio.

[331] Atalo seria uma exceção.

[332] Mt 22:11-13.

[333] At 19:9; 2 Pe 2:2.

[334] Ap 22:11.

[335] Fp 2:6.

[336] Devido ao corte da citação, não aparece a quem se refere, mas trata-se sem dúvida do demônio.

[337] A Igreja.

[338] O estilo de vida de Alcibíades não indica que fosse necessariamente um montanista.

[339] 1 Tm 4:3-4.

[340] Não o mesmo Alcibíades mencionado acima, mas um companheiro de Montano.

[341] Entre 174 e 178.

[342] Marco Aurélio.

[343] Importante cidade da Capadócia, sede da XII legião. Não é estranho que tivesse em suas fileiras bom número de cristãos, ainda que não fossem a maioria.

[344] Vide II:2:4; 25:4; III:33:3. O Apologeticum. não foi dirigido ao senado, mas aos governadores.

[345] 2 Tm 4:21.

[346] Aos seguidores de Simão e Carpócrates.

[347] Ef 4:7.

[348] Vide I:I:1;III:III: 1-3.

[349] Supõe-se as duas formas: oral e escrita.

[350] Ap 13:18.

[351] i.e. aceita-o entre as Escrituras canônicas.

[352] Os Setenta traduzem "partenas" (virgem), enquanto os outros traduzem "neanis" (jovem).

[353] Não se sabe exatamente de que terras se trata, se da própria Índia ou do sudeste da Arábia.

[354] Tempos de Cômodo, ainda que se possa entender que sejam os de Panteno.

[355] Não se conseguiu identificar estes mestres, exceto o último, que pode ser Panteno.

[356] Vide IV:V1:4.

[357] Sobre este só se sabe o que aqui diz Eusébio.

[358] Vide IV:XVI:7; IV:XXIX.

[359] Esta queda pode significar a heresia como também a perda do cargo presbiteral.

[360] Vide IV:XXI; IV:XXVI: 1; IV:XXVII.

[361] Gl 3:15.

[362] É como os bispos se dirigiam aos presbíteros e às vezes a seus colegas de episcopado.

[363] Mt 7:15.

[364] Quer dizer, outras vítimas (do diabo), não outras duas mulheres.

[365] Mt 23:31.

[366] Jo 14:26.

[367] Isto é: começaram a "profetizar" como Montano.

[368] Como veremos mais tarde, Montano tinha suas finanças bem organizadas, por isso podemos entender literalmente o cargo atribuído a Teodoto.

[369] O anônimo antimontanista, cf. 16:2.

[370] Dos hereges.

[371] Ef 4:11-13; 1 Co 1:4-8; 13:8-10.

[372] Provavelmente refere-se a Marco Aurélio e a seu co-augusto Lúcio Vero.

[373] Todas suas obras se perderam.

[374] Montano convocava a uma entrega total a obra do Espírito, ainda que às custas de romper com o cônjuge.

[375] 1 Co 9:14.

[376] Ou seja, do martírio.

[377] No templo grego era a câmara mais interna, tem aqui o sentido de arquivo.

[378] Mt 10:9-10.

[379] Mt 7:16; 12:33.

[380] Desconhecido.

[381] O nome de Cristo.

[382] Inferior ou baixa, significando costeira, não é denominação administrativa.

[383] Não consta que por essa época (ca. 150-155) o imperador habitasse na Ásia.

[384] Eusébio deve basear-se em algum presumido decreto imperial que tomou por autêntico.

[385] Tigidius Perennis, prefeito do pretório entre 183 e 185.

[386] Eunuco não no sentido estrito, mas de "contido".

[387] Falta o verbo no original, talvez por um corte descuidado.

[388] Esta carta de Irineu a Victor teve como efeito a suspensão da excomunhão.

[389] Enviava-se a eucaristia em sinal de comunhão.

[390] Eirenaios = pacífico.

[391] Apesar do título, trata-se apenas de um acordo existente na prática das igrejas da Palestina e a de Alexandria.

[392] Na Síria.

[393] Todas as obras mencionadas foram perdidas, exceto a Demonstração da pregação apostólica, encontrada em 1904 numa versão armena.

[394] Ironia que joga com a palavra geometria e a passagem de Jo 3:31.

[395] Tratava-se da crítica textual dos Setenta.

[396] Possivelmente trata-se do mesmo acima chamado de Asclepiadoto.

[397] Nem de Hermófilo nem de Apoloníades sabe-se mais do que o dito aqui e que foram discípulos de Teodoto o curtidor.

[398] A fama do filho deu nome ao pai.

[399] Esta obra existiu: a Apologia de Orígenes, composta por Panfilo e Eusébio, da qual só nos resta uma tradução latina do primeiro livro.

[400] Eusébio equivoca-se aqui, Demétrio já estava há doze ou treze anos no episcopado.

[401] Teria cerca de quinze anos.

[402] Certamente dava aulas particulares de gramática.

[403] Os diretores da escola catequética tinham se retirado para longe de Alexandria, o que demonstra o caráter localizado da perseguição.

[404] Talvez seja exagero, já que ele abandonou o ensino como fim e não o estudo como meio.

[405] Mt 10:10; 6:34.

[406] 2 Co 11:27.

[407] Filósofos gentios, no sentido próprio da palavra.

[408] Mt 5:33-34.

[409] Isto é, o batismo.

[410] Dn 9:24.

[411] Mt 19:12.

[412] Septimio Severo é sucedido por seus dois filhos: Geta e Caracalla, pouco depois Caracalla manda assassinar Geta e fica só no império. Caracalla era um apelido, seu nome era Marco Aurélio Antonino.

[413] Habitantes de Antinoe ou Antinópolis, às margens orientais do Nilo.

[414] Até 1886-87, quando se descobriu um grande fragmento deste Evangelho em Akhmin, no Egito, só se conhecia a respeito o que Eusébio relata do escrito de Serapion.

[415] Mt 10:40.

[416] Ou seja, rascunhos, esquemas. Esta obra se perdeu, exceto por fragmentos conserva­dos por Eusébio.

[417] Isto é, Mt e Lc anteriores a Mc.

[418] Mais do que amizade pessoal, trata-se de ter os mesmos mestres (os "pais"), e manter o mesmo ensinamento.

[419] Para Eusébio Adamancio era um segundo nome de Orígenes, para outros autores seria um apelido.

[420] Segundo Jerônimo, Heraclas já era presbítero. Orígenes deixa-o encarregado da es­cola catequética para dedicar-se a um ensino superior, dando origem à verdadeira Escola de Alexandria.

[421] Isto é, que se seguiam umas às outras, talvez Eusébio queira dizer que são versões parciais e que somente utilizando as três seria possível ter todo o AT em grego.

[422] Há evidências de que Irineu, já antes de Orígenes, tenha utilizado as Hexaplas.

[423] A obra de Porfírio em 15 livros Contra os cristãos foi perdida, assim como as res­postas que suscitou.

[424] Heraclas, presbítero, conserva o manto de filósofo.

[425] Possivelmente o levante de Alexandria e a sangrenta repressão de Caracalla, em 215.

[426] Os copistas passavam para linguagem corrente as notas dos taquígrafos, as calígrafas as passavam a limpo e multiplicavam os exemplares.

[427] 1 Pe 5:13.

[428] 2 Co 3:6.

[429] Rm 15:19.

[430] Mt 16:18.

[431] Orígenes é o primeiro a informar sobre a dúvida existente sobre a autenticidade de 2 Pe.

[432] Jo 21:25.

[433] Ap 10:4.

[434] 2 Co 11:6.

[435] Os capítulos 26 e 27 estão em ordem inversa à do índice, conforme o original.

[436] De Alexandre Severo.

[437] Mt 3:16; Mc 1:10; Lc 3:22; Jo 1:32.

[438] Cesaréia da Palestina.

[439] Chegaram a Cesaréia a caminho de Beirute para estudar leis, seu encontro com Orígenes mudou o rumo de suas vidas.

[440] Vide l:VII:22ss.

[441] Is 30:6.

[442] Dos Comentários de Orígenes sobre os profetas restam fragmentos insignificantes.

[443] De Felipe, o Árabe.

[444] Contra Celso é a única obra de Orígenes conservada integralmente no texto original.

[445] Todos perdidos.

[446] Parece portanto que Orígenes sobreviveu aos tormentos da perseguição, ainda que mortalmente ferido. Infelizmente todas estas cartas se perderam.

[447] Prefeito do Egito.

[448] Originalmente um intendente militar, nessa época um tipo de investigador ou espião.

[449] Pode referir-se a filhos assim como a alunos ou aos criados.

[450] O filho de Dionísio, a que dedicou sua obra Sobre a natureza.

[451] Hb 10:34.

[452] Possivelmente uma extensão da disputa entre Décio e Felipe, antes de seu desenlace anunciado no fim do parágrafo.

[453] Mt 24:8-10; 24:24.

[454] Mt 19:23; Mc 10:23; Lc 18:24.

[455] Mácar significa feliz, afortunado.

[456] Os alexandrinos consideravam-se gregos, distintos étnica e culturalmente dos egípcios.

[457] Ez 18:23; 33:11; 2 Pe 3:9.

[458] O nome correto era Novaciano, mas Eusébio é seguido por outros autores gregos.

[459] Não é possível determinar se "todos" se refere ao concilio em Roma ou também aos pastores de outras províncias. O texto permite também entender que se tenha tomado "uma decisão para todos", ainda que adotada em Roma.

[460] Neste capítulo Eusébio lista as cartas de Dionísio que encontrou juntas num volume ou coleção.

[461] Dionísio de Alexandria será freqüentemente chamado "Dionísio o Grande", esta é a primeira vez.

[462] Primeiro em categoria não em tempo.

[463] Sobre Marino nada mais se sabe, o texto entre parênteses deveria seguir ao nome de Mazabanes (deslize dos copistas).

[464] 1 Co 5:7.

[465] Frase muito utilizada pelos autores eclesiásticos, é atribuída a Cristo.

[466] É a primeira vez que se dá este título ao bispo de Alexandria, na mesma época os presbíteros de Roma o davam também a Cipriano. O bispo de Roma ainda tardará em recebê-lo.

[467] Dt 19:14.

[468] O rigor extremo e inflexível de Deus para com os pecadores.

[469] Sem piedade, por negar o perdão aos caídos.

[470] Profissão de fé.

[471] Isto é, rebatizar. Dionísio parece convencido da validade do batismo daquele homem.

[472] Isto é, entre os penitentes que ainda excluídos da comunhão eucarística participavam da oração comum.

[473] Ap 13:5.

[474] Não é possível saber quais, uma pode ser a citação ao Apocalipse, a outra foi cortada da carta de Dionísio.

[475] É a época de 253 a 257.

[476] Aos demônios.

[477] Ez 13:3.

[478] Ef 4:6: Cl 1:17.

[479] O nome Macriano derivaria de makrós, i.é, longo, distante.

[480] Valeriano foi derrotado em 260 pelos persas, cujo rei Sapor (Xapur) I o fez sofrer todo tipo de vexames Valeriano morreu no cativeiro.

[481] Ez 66:3-4.

[482] Macriano

[483] Ex 20:5.

[484] Os filhos de Macriano (Macriano o Jovem e Quieto) não conseguiram impor-se, foram derrotados e mortos.

[485] Tob 12:7 (livro deuterocanônico).

[486] Pro-prefeito e depois prefeito do Egito.

[487] At 5:29.

[488] Pequeno lugar não localizado, mas muito distante de Alexandria.

[489] O deportado tinha que mudar-se por seus próprios meios ao lugar da condenação; a desobediência era castigada com a morte.

[490] Esta pergunta responde à acusação de Germano.

[491] 1 Co 5:3.

[492] Cl 4:3.

[493] Quer dizer, confissões de fé ante as autoridades.

[494] 2 Co 11:17.

[495] Is 49:8; 2 Co 6:2.

[496] Vide VI:XL:5-9.

[497] Alexandria.

[498] Não é possível saber de que ilha pode ser esta. É possível que em vez de nésos (ilha) Eusébio tenha escrito nósos (doença), neste caso poderia tratar-se da grande peste de 252.

[499] Na perseguição de Diocleciano.

[500] Galieno havia promulgado um edito geral, a resolução guardada por Eusébio apenas aplica ao Egito as disposições daquele.

[501] Não é o reconhecimento do cristianismo como "religio licita", mas reconhece o direito das igrejas locais de possuírem bens próprios.

[502] Era o bastão de mando do Centurião, chamado vitis; por metonímia o próprio grau de centurião recebeu este nome.

[503] O edito de Galieno não reconhecia o cristianismo como "religio licita", podendo portanto ocorrer casos como o de Marino.

[504] Em Cesaréia da Palestina.

[505] Na atual distribuição de capítulos este não tem título.

[506] Mt 9:20 ss; Mc 5:25 ss; Lc 8:43 ss.

[507] O culto cristão às imagens parece já ser um fato; Eusébio o vê como influência pagã.

[508] Gl 1:19.

[509] Não se refere a um caráter festivo, mas à festa da Páscoa.

[510] Provavelmente do ano 262, precedida pelas repercussões da revolta de Macriano contra Galieno.

[511] Nm 14:22-23.

[512] Gn 2:10-13. Aqui identifica o Giom com o Nilo.

[513] Os não cristãos.

[514] Ex 12:30.

[515] O autor "seu", isto é, dos outros, é Tucídides, cuja descrição da peste em Atenas é famosa desde a antigüidade.

[516] Macriano, o que convenceu Valeriano a perseguir os cristãos e tratou de derrubar Galieno.

[517] Já o fora desde que seu pai o associou ao império como co-augusto em 253, voltou a sê-lo em Alexandria por breve intervalo.

[518] Is 42:9; 43:19.

[519] Ap 17:8-11.

[520] Galieno, em oposição a Valeriano.

[521] Galieno cumpria o sétimo ano de seu império ao fim do ano 260, tempo longo para um imperador daquela época. Para Dionísio há outro motivo para comentá-lo: o fim da per­seguição. A Páscoa de 262 anunciava-se especialmente alegre.

[522] Isto é, "Revelação".

[523] Daqui até o final do parágrafo já foi citado em III:XXVIII:4-5.

[524] Ap 22:7-8. Ao contrário do que diz Dionísio, a frase "e eu, João..." não pertence à oração anterior, mas começa uma nova.

[525] Ap 1:1-2.

[526] Ap 1:4.

[527] 1 Jo 1:1.

[528] Mt 16:17.

[529] 2 Jo l;3 Jo 1.

[530] Ap 1:9.

[531] Ap 22:7-8.

[532] At 12:25.

[533] At 13:5.

[534] At 13:13.

[535] Vide III:XXXIX:6.

[536] 1 Jo 1:1.

[537] Jo 1:14.

[538] 1 Jo 1:1-2.

[539] 1 Jo 1:2-3.

[540] 2 Co 12:1-9; Gl 1:12; 2:2; Ef 3:3.

[541] Eusébio começa a falar de pessoas e fatos que considera contemporâneos seus: aque­las porque morreram depois de seu nascimento; destes porque também ocorriam depois de seu nascimento. E o único ponto de referência para fixar aproximadamente a data deste.

[542] Eusébio toma por anos os onze meses do pontificado de Sixto II (martirizado em 6 de agosto de 258), isto leva a várias incongruências cronológicas.

[543] Isto parece indicar que em Antioquia existia uma espécie de concilio permanente, com sessões mais ou menos intermitentes, até a definitiva, que terminou com a deposição de Paulo de Samosata.

[544] Conforme indicado em 28:2, deve-se entender isto como uma última sessão do conci­lio que já durava alguns anos.

[545] Este capítulo, assim como o XVII, não figura no índice e carece de título.

[546] 1 Co 5:12.

[547] 1 Tm 6:5.

[548] Despacho interior do pretório, onde os juízes ditavam sentenças.

[549] 1 Tm 4:12; Tt 2:7.

[550] 2 Tm 2:21; 3:17.

[551] 1 Co 10:12.

[552] 1 Tm 3:16.

[553] A heresia de Artemas (ou Artemon) datava já de pelo menos sessenta anos, não é possível determinar se ele ainda vivia.

[554] Refere-se ao assassinato de Aureliano em finais de agosto de 275.

[555] Jo 19:11.

[556] Isto é, consolador ou Espírito Santo.

[557] Jo 14:16-17.

[558] Bairro mais importante de Alexandria.

[559] Trata-se de Ptolomeu Filométor e não de Ptolomeu Filadelfo.

[560] 2 Co 3:15-18.

[561] Teodoto = dom de Deus; bispo (episcopos) = o que cuida de.

[562] A Vida de Panfilo, escrita em 311-313 e perdida.

[563] Sem dúvida a escola catequética.

[564] Isto é, a grande perseguição, executada por Diocleciano.

[565] Por recurso retórico Eusébio exagera a boa vontade dos imperadores, esquece o que antes disse sobre Aureliano e seus predecessores. Depois da morte de Aureliano a Igreja tinha paz, mas nada mais.

[566] Lm 2:1-2.

[567] Sl 88 (89):40-46. Nos sete primeiros livros este salmo sempre prediz a destruição de Jerusalém, o juízo sobre os judeus; neste é aplicado à perseguição, juízo divino sobre os cristãos.

[568] Sl 106(107):40.

[569] Do ano de 303. A perseguição começou em 23 de fevereiro, mas o edito só foi exposto ao público no dia seguinte. Eusébio atém-se à Palestina, onde a perseguição chega em finais de março.

[570] Perda inclusive do direito de cidadania.

[571] Eusébio começa a descrever a perseguição sem dar-nos alguma razão para esta mudança na política de Diocleciano, antes tão favorável.

[572] Entre 7 de junho e 17 de novembro de 303, depois da promulgação do terceiro edito.

[573] Refere-se ao demônio, autor primeiro da perseguição.

[574] Não se conseguiu nunca identificá-lo.

[575] Augusto Diocleciano e César Galério.

[576] Os demais servidores imperiais companheiros de Pedro.

[577] São na realidade o segundo e terceiro editos, do segundo semestre de 303.

[578] Refere-se aos pagãos.

[579] Fp 2:6-8.

[580] 1 Co 12:31.

[581] 1 Jo 4:18.

[582] O texto não se explica e resulta francamente sem sentido.

[583] Novamente o texto fica obscuro.

[584] Cuidados pelos próprios perseguidores, já que "ninguém deve morrer em conseqüên­cia da tortura".

[585] Isto supõe já promulgado o quarto edito, em 304.

[586] Ex 22:20.

[587] Ex 20:3.

[588] O edito de tolerância de Galerio. Aparentemente Eusébio pretendia com isto terminar sua obra.

[589] Ou seja, Diocleciano.

[590] Diocleciano obrigou Maximiano Hercúleo, o segundo augusto, a abdicar junto com ele em primeiro de maio de 305. Sucederam-nos com o título de augustos os césares Galerio e Constâncio Cloro, e foram nomeados césares Severo e Maximino Daza.

[591] Praticamente Constâncio Cloro e Severo ficaram com todo o Ocidente, Galerio e Maximino Daza se apropriaram do Oriente.

[592] Primeiro entre os tetrarcas.

[593] Também traduzido como Magnêncio ou Magêncio.

[594] A maior parte das referências a Maxêncio provém de autores da propaganda de Constantino, não sendo portanto isentas. Maxêncio efetivamente parou a perseguição contra os cristãos e inclusive construiu uma basílica, que Constantino veio a renomear com seu próprio nome.

[595] Com o edito de tolerância de 311.

[596] Eusébio deve referir-se apenas a Galério e Maximino, a frase não se aplica a Constantino e Licínio.

[597] Galério.

[598] O paganismo, ou melhor, a religião do Império.

[599] Diocleciano e Maximiano como augustos; Galério e Constâncio Cloro como césares.

[600] Como visto acima, o nome de Maximino não aparece no cabeçalho do edito de tole­rância, mas ele teve que assiná-lo com os outros imperadores e por algum tempo teve que respeitá-lo.

[601] Como se vê, é uma repetição do que já foi dito. Eusébio deve ter se esquecido de apagar o texto duplicado.

[602] A carta aparenta refletir o pensamento dos quatro imperadores, mas na verdade expressa a vontade pessoal de Maximino.

[603] Cancela um edito anterior que mandava perseguir os cristãos; não se sabe qual.

[604] Maximino Daza, ou Daia.

[605] Como não havia outros lugares de reunião, isto equivalia a proibir todo tipo de as­sembléia religiosa.

[606] Teotecno significa "filho de Deus".

[607] Teotecno.

[608] Zeus, protetor da amizade.

[609] Maximino.

[610] São as "Memórias" mencionadas em I:IX:3.

[611] As atas do processo.

[612] Mt 24:24.

[613] Os encarregados de sua publicação.

[614] O nome técnico atual é Antraz.

[615] Sons musicais ruidosos eram usados para afastar os maus espíritos que acompanha­vam a morte; este uso durou pelo menos até o final da Idade Média.

[616] Maxêncio e Maximino.

[617] Soldado de infantaria com armadura pesada.

[618] Maxêncio foi obrigado a seguir junto com o exército.

[619] Ex 15:4-5.

[620] A ponte de barcas estava preparada como armadilha contra Constantino, mas rom­peu-se antes do tempo. Maxêncio morreu afogado no Tibre.

[621] Sl 7:16-17 (7:15-16).

[622] Ex 15:10.

[623] Ex 14:31.

[624] Ex 15:1-2.

[625] Ex 1511.

[626] Soldados liberados de funções mais pesadas que exerciam o policiamento e o acom­panhamento de oficiais superiores.

[627] Por direito de antigüidade, ainda que apenas como césar, correspondia-lhe a dignida­de de primeiro augusto.

[628] Licínio.

[629] Sl 32(33): 16-19.

[630] Maximino publicou este edito antes de ver-se totalmente perdido em Tarso, provavel­mente com a intenção de ganhar o apoio dos cristãos contra Licínio.

[631] Maximino trata de lançar a culpa sobre os oficiais ou funcionários superiores.

[632] Esta expressão, que já encontramos aplicada a Herodes (vide I:8:5), indica alguma enfermidade grave e mesmo mortal.

[633] Cláudio Culciano, prefeito do Egito, foi quem condenou Fileas e Filoromo (vide VIII:IX:7-X:6).

[634] SL 97 (98): 1-2.

[635] Mt 13:17.

[636] Sl 45(46):9-10.

[637] Sl 36 (37):35-36.

[638] Rm 12:5; 1 Co 12:12.

[639] Ez 37:7-10.

[640] At 4:32.

[641] Sl 148:12.

[642] Todos os comentaristas concordam que se trata do próprio Eusébio, então já bispo de Cesaréia.

[643] Ainda que o nome não seja citado, trata-se de Paulino.

[644] Também chamado Bezalel.

[645] Ex 31:2; 35:30-34.

[646] Sl 43:2 (44:1).

[647] Sl 135 (136):12.

[648] Sl 47:9 (48:8).

[649] 1 Tm 3:15.

[650] Sl 86 (87):3.

[651] Sl 121 (122):1.

[652] Sl 25 (26):8.

[653] Sl 47:2 (48:1-2)

[654] Sl 44:3 (45:2).

[655] Sl 71 (72): 18.

[656] Jó 9:10.

[657] Dn 2:21.

[658] Sl 112 (113):7.

[659] Lc 1:52-53.

[660] Jó 38:15.

[661] Sl 97 (98): 1.

[662] Is 53:4-5.

[663] Sl 57 (58):9.

[664] Js 5:14.

[665] Os augustos Constantino e Licínio.

[666] Só pode se referir a Roma e ao arco de Constantino.

[667] Sl 32 (33):9; 148:5.

[668] 1 Pe 2:5.

[669] Ef 2:20-21.

[670] 1 Co 3:16-17.

[671] Está se referindo ao bispo de Tiro, Paulino.

[672] Jo 5:19.

[673] Paulino.

[674] Ex 31:2-4; Hb 8:5.

[675] O edifício material é imagem visível da Igreja.

[676] Sl 57:7 (58:6).

[677] Sl 8:2-3.

[678] Ap 17:8,11.

[679] Sl 36 (37):14-15.

[680] Sl 17:42(18:41).

[681] Sl 19:9 (20:8).

[682] Sl 72 (73):20.

[683] A Igreja.

[684] Is 35:1-7. Para Eusébio o deserto de Isaías é imagem da Igreja.

[685] Dn 9:27.

[686] Ag 2:9.

[687] Eusébio começa a descrever os planos e a construção da igreja. É o mais antigo relato deste tipo, e ele fez o mesmo sobre outras igrejas. Devemos lembrar que Eusébio não era arquiteto, mas um orador comprometido com os recursos da retórica.

[688] A igreja propriamente dita.

[689] Sl 103 (104):16.

[690] Jogo de palavras com o nome Salomão, que significa "pacífico".

[691] Is 61:10-11.

[692] Is 54:4-8.

[693] Is 51:17-18; 22-23; 52:1-2.

[694] Is 49:18-21.

[695] 2 Co 6:16.

[696] O orador vai comparar a igreja material com o templo espiritual, às vezes com simbolismos difíceis de explicar satisfatoriamente.

[697] Os augustos, Constantino e Licínio.

[698] Os bispos que haviam permanecido fiéis.

[699] Alusão aos apóstatas arrependidos e admitidos à penitência.

[700] Is 54:11-14.

[701] At 2:3. Sem dúvida alusão ao bispo e seu presbitério.

[702] No bispo.

[703] 1 Co 2:9.

[704] Sl 102(103):3-5, 10, 12-13.

[705] Os documentos seguintes afetam somente a Igreja do Ocidente, por isso aparece apenas o nome de Constantino.

[706] Este documento é dirigido ao governador proconsular da África.

[707] Bispos, respectivamente, de Autun, Tréves-Colônia e Aries.

[708] A palavra no original é "airéseos", donde vem "heresia", e que significa escolha ou opção.

[709] 12 de agosto de 314.

[710] Isto é, dois presbíteros.

[711] O uso do plural se deve à divisão da diocese da África em províncias por parte de Diocleciano.

[712] Aqui se retoma o assunto do capítulo 4, interrompido pela inserção dos documentos dos capítulos 5-7.

[713] Maxêncio e Maximino.

[714] Licínio casou-se com a irmã de Constantino em fevereiro de 313.

[715] Contrariamente ao que diz Eusébio, Licínio não devia o império a Constantino, mas a Galério, que junto com Diocleciano e Maximiano, tornou-o augusto, enquanto a Constantino concediam apenas o título de césar. Eusébio deve referir-se mais à condescendência de Constantino para com Licínio ao fazer as pazes após a intentona deste contra ele em 314.

[716] 1 Tm 2:1-2.

[717] A motivação desta perseguição foi mais política. Determinado a levantar-se contra Constantino, tinha que eliminar o obstáculo que para ele eram os cristãos, os do palácio, que poderiam descobrir e delatar seus planos, e os militares, especialmente os graduados.

[718] Estas leis não foram feitas diretamente contra os cristãos, mas foram estes os mais afetados.

[719] Isto é, por medo a Constantino.

[720] Forjavam-se pretextos legais para justificar as mortes, o que indica que não houve edito contra os hierarcas eclesiásticos.

 

[721] At 9:1.

[722] Ap 17:8-11.